A tempestade que se avizinha

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O perigo de que o partido da guerra se torne predominante no seio das classes dominantes, perante uma crise de dimensões não controláveis, é enorme. O atraso na compreensão da gravidade do momento adensa os perigos. O silêncio dos políticos burgueses sobre os perigos para a Humanidade e a necessidade de lutar pela paz é ensurdecedor.

A crise sistémica do capitalismo entrou numa nova e mais perigosa fase. As velhas potências imperialistas – EUA, europeias e Japão – estão a braços com uma profunda alteração na correlação mundial de forças no plano económico. Enfrentam (como na Síria) a resistência de povos e países à sua dominação; o perigo iminente duma nova derrocada económica; e o descontentamento e revolta crescentes dos trabalhadores contra a sua exploração desenfreada, mesmo nos países do centro imperialista (veja-se os EUA). As velhas classes dominantes recusam aceitar o fim da sua dominação hegemónica, mas as dificuldades geram crescentes contradições no seio dos EUA, na União Europeia e entre as duas margens do Atlântico. Reforça-se o partido da violência e guerra. Este início de ano é marcado por uma nova corrida armamentista (incluindo nuclear) e o multiplicar de ameaças de guerra, cada vez mais abertas, contra a Rússia e a China. A Humanidade enfrenta de novo o perigo real dum conflito de grandes proporções, cujas consequências seriam catastróficas.

A nova corrida às armas

A revista The Economist faz manchete (27.1.2018) com: «A próxima guerra». Em editorial, afirma que «nos últimos 25 anos a guerra ceifou demasiadas vidas [mas …] uma confrontação devastadora entre as grandes superpotências mundiais permaneceu quase inimaginável. [Mas hoje] um conflito numa escala e duma intensidade nunca vistas desde a segunda guerra mundial é de novo plausível». Na mesma altura, a revista Time (1.2.2018) dedicava a sua capa, ilustrada com um cogumelo atómico, ao tema «Tornando a América de novo nuclear». A revista dá conta do plano aprovado pelo governo Trump para gastar «1,2 biliões [triliões, na nomenclatura dos EUA] de dólares para reformular por inteiro o complexo de armas nucleares», ou seja, «modernizar a vetusta ‘triade nuclear’ de [aviões] bombardeiros, submarinos e mísseis baseados em terra».

Nas últimas semanas foram divulgadas as novas versões dos principais documentos-guia da política militar dos EUA, a Estratégia de Segurança Nacional (Dezembro de 2017) e a Avaliação da Postura Nuclear (Nuclear Posture Review, Fevereiro de 2018). Ambos apontam para uma clara escalada da corrida armamentista, impulsionada pela forte presença de militares no governo Trump, e para a militarização do espaço e ciberespaço. Há episódios de preparação psicológica das populações para uma guerra. No dia 13 de Janeiro, a Agência governamental para as emergências no Hawai enviou para todos os telemóveis um falso alerta sobre um ataque em curso com mísseis balísticos que iria atingir aquele Estado dos EUA. Após 38 minutos (!) de pânico generalizado, veio o desmentido (New York Times, 13.1.2018). Três dias depois, o episódio repetiu-se no Japão, por obra da emissora nacional NHK (NYT, 16.1.2018).

Os planos de escalada bélica são acompanhados por orçamentos que aumentam drasticamente as despesas militares. O orçamento dos EUA para 2018 «atribui 716 mil milhões de dólares para despesas militares, um aumento de 13% face a 2017» (The Guardian, 9.2.2018). A mesma fonte sublinha que só os 80 mil milhões de dólares adicionais neste orçamento militar dos EUA «excedem o orçamento militar de qualquer outro país, à excepção da China». O aumento é «superior em 7% ao que fora solicitado pela Casa Branca» de Trump, facto digno de registo, pois segundo o New York Times (8.2.2018), a aprovação do Orçamento na Câmara de Representantes (por 240 a 186 votos) só foi possível porque 73 Democratas compensaram os 67 Republicanos que votaram contra (não pelo aumento das despesas militares, mas pela ausência de cortes que os compensassem). A política de militarização e guerra não é uma novidade de Trump – sempre foi consensual entre os partidos do grande capital nos EUA.

O aumento espectacular nas despesas militares não é exclusivo dos EUA. As principais potências europeias seguem o mesmo caminho, financiando simultaneamente (até ver) a NATO e a construção do chamado exército europeu (‘Cooperação Estruturada Permanente’ na linguagem cifrada de Bruxelas). Os mesmos governos que afirmam não haver dinheiro para despesas sociais, e que já gastaram biliões a sustentar o sistema financeiro, preparam-se agora para multiplicar as despesas militares. Para a guerra, como para o grande capital, não há despesa ou endividamento ‘incomportável’. O orçamento militar alemão para 2018 subiu 3,9%, prevendo aumentos de 5,3 mil milhões até 2021 (marketwatch.com, 13.3.2017), e é previsível que o próximo governo alemão os reforce ainda mais. O governo francês decidiu gastar 300 mil milhões de euros até 2025 no seu orçamento militar (incluindo 45 mil milhões em armas nucleares), com aumentos anuais de 1700 milhões até 2023 e de 3 mil milhões em 2024 e 2025 (Le Monde, 7-8 de Fevereiro de 2018). Nessa altura a França gastará 2% do PIB em despesas de guerra, o montante fixado pela NATO e que Trump tão insistentemente reclama. Quase em simultâneo, o governo espanhol anunciou (El País, 24.1.2018) que vai duplicar os gastos militares nos próximos sete anos, alcançando 18,5 mil milhões de euros, ou seja 1,53% do PIB. Em Portugal, os Ministros da Defesa e Negócios Estrangeiros assinaram (Público, 25.1.2018) um artigo conjunto onde, pelo meio de lamentáveis vassalagens à NATO, anunciam a intenção (não quantificada) de «num futuro próximo» reforçar os gastos militares «nomeadamente através da aquisição de novas aeronaves de transporte médio e do reforço da nossa capacidade naval» no âmbito NATO.

É evidente o enorme perigo de tudo isto. O militarismo anda sempre de mãos dadas com a reacção, no plano externo e interno. Não é casual a promoção da extrema-direita e o apadrinhamento do fascismo (como na Ucrânia). O ex-Ministro da Defesa dos EUA, William Perry, declarou que «A nova corrida armamentista já começou. […] O perigo dum conflito nuclear é hoje maior do que durante a Guerra Fria» (Time, 1.2.2018). Basta olhar para o que se passou no início de Fevereiro para compreender o perigo real de que, de forma intencional ou não, a Humanidade seja arrastada para um conflito nuclear: no curto espaço de uma semana foram abatidos na Síria, em combate, um avião russo, outro israelita e um helicóptero turco, tendo aviões dos EUA atacado posições do governo sírio na martirizada região de Deir El-Ezzor (junto às maiores reservas de petróleo do país), matando dezenas de soldados sírios.

Como resultado das invasões e agressões directas ou por interpostos bandos terroristas ao serviço do imperialismo, há muitos anos que a catástrofe da guerra generalizada faz parte do presente, e não do futuro, dos povos do Médio Oriente. Mas o perigo dum embate directo entre as forças (convencionais ou não) das duas maiores potências nucleares é diário, em particular naquela região do planeta. Não pode mesmo ser excluída uma enorme provocação dos partidários da guerra, que conduza ao desastre.

A causa de fundo: o capitalismo e a sua crise

A guerra é inseparável da História do capitalismo na sua fase imperialista. O Século XX testemunhou duas guerras mundiais, fruto da agressividade imperialista e das rivalidades entre potências imperialistas pelo controlo de recursos e mercados e pela hegemonia. A Segunda Guerra Mundial, gerada pela mais violenta e agressiva expressão de capitalismo que a História registara até então – o nazi-fascismo – teve ainda a marca indelével da grande crise do capitalismo dos anos 30, e do ódio visceral aos trabalhadores e aos povos, em particular à União Soviética socialista. O mundo mudou muito nas últimas décadas. Mas a essência do capitalismo não mudou – nem mudará. A comprová-lo está o último quarto de Século. O profundo desequilíbrio na correlação mundial de forças que se seguiu às vitórias contra-revolucionárias no Leste da Europa abriu portas à violência e agressividade do capitalismo, quer no plano interno, quer a nível internacional. A destruição das conquistas sociais dos povos e a brutal ofensiva exploradora foi acompanhada pelo gradual desmantelamento da ordem internacional instituída após a derrota do nazi-fascismo, e pela escalada das guerras de agressão abertas. A lista dos povos vítimas da barbárie imperialista nestes últimos 25 anos é extensa. A expansão da NATO, do ponto de vista geográfico e nas auto-atribuídas ‘missões’, fala por si. Os alvos da fúria imperialista são quaisquer países que não aceitem submeter-se aos diktats imperiais, independentemente dos seus sistemas sociais e políticos. A não aceitação das ordens da superpotência global é casus belli – motivo de guerra. Quem pensou que aceitando desarmar-se poderia assegurar a sua sobrevivência (como o Iraque de Saddam Hussein ou a Líbia de Qadafi) descobriu tarde demais que a realidade era precisamente ao contrário: os acordos assinados nada valem para o imperialismo e a entrega de armas não convencionais e/ou sistemas de mísseis é apenas o prelúdio para a invasão das potências imperialistas e a destruição do país ‘recalcitrante’. As queixas das grandes potências capitalistas em relação a (reais ou falsos) programas de rearmamento de países que têm sido alvo da sua agressividade e ameaças, como a Rússia, o Irão, a China ou a Coreia do Norte, são de uma hipocrisia sem limites. Viram a realidade de pés para o ar, apresentando as vítimas como carrascos e os carrascos como vítimas. Basta ler o The Economist para perceber que aquilo que as potências imperialistas receiam não é serem alvos de agressão, mas sim a perda da sua hegemonia e, em particular, a perda da impunidade alcançada após o desaparecimento da URSS, que lhes permitia atacar sem receio de resposta por parte das suas vítimas.

Entretanto, o parasitismo e poder hegemónico do grande capital financeiro não apenas conduziu ao empobrecimento de grande parte da Humanidade, como corroeu as próprias bases do sistema capitalista. O castelo de cartas do moderno sistema financeiro abriu fendas tão profundas que os Estados ao serviço do grande capital se viram forçados a intervir com um arsenal não convencional de medidas para suster a derrocada. Mas uma década após a eclosão da grande crise de 2007-2008, multiplicam-se novos sinais de perigo. As bolhas especulativas regressaram em força aos mercados financeiros, alimentadas pela entrega de dinheiro fácil ao grande capital. Qualquer tentativa de abandonar essas políticas faz de novo estremecer o sistema financeiro, como testemunha a nova crise bolsista de Fevereiro de 2018. A economia produtiva (aquilo que os próprios propagandistas do sistema chamam ‘economia real’, confessando a natureza artificial da especulação financeira) não arranca. O mecanismo de reprodução do capital está quebrado. E as políticas generalizadas de empobrecimento dos povos agravam ulteriormente a situação. O problema de fundo permanece e novas eclosões de crise estão no horizonte, com a agravante de que os ‘mecanismos não ortodoxos’ já foram gastos. Os bancos centrais e Estados nacionais, após assumir como seus os colossais endividamentos e perdas do grande capital privado, estão em situação crescentemente insustentável.

A somar a toda esta realidade está a profunda e aparentemente imparável alteração da correlação de forças económicas mundial, com a ascensão de novas potências, algumas das quais não abdicam da sua soberania nacional. A China, em particular, é já hoje a maior economia do mundo (calculando o PIB em Paridade de Poder de Compra) e responsável por boa parte do crescimento económico mundial. Paradoxalmente, o crescimento de novas potências económicas foi em parte alimentado pelas políticas de deslocalização de capital dos centros imperialistas para esses países, na procura simultânea de maximizar lucros e de criar condições para a ofensiva social das últimas décadas contra os trabalhadores do centro imperialista. A escalada de hostilidade dirigida simultaneamente contra a Rússia e a China (em particular pelos EUA) visa acirrar as contradições internas naqueles países, nos quais existem sectores abertos ao compromisso e que alimentam ilusões sobre a verdadeira natureza do sistema de poder nos EUA, um objectivo que em alguns outros países em ascensão teve êxito. Mas, ao mesmo tempo, essa hostilidade fortalece os sectores que compreendem que a única hipótese de sobrevivência dos respectivos países reside na procura duma ordem alternativa no plano económico, financeiro e político.

Se é raro os arautos do capitalismo confessarem a real natureza do sistema e a sua profunda crise, é cada vez mais frequente ouvir a Rússia e China usadas como bode expiatório da escalada militarista e belicista em curso. Vai ficando em segundo plano a invocação do ‘terrorismo’ (boa parte do qual patrocinado, financiado e armado pelas potências da NATO e seus aliados regionais) como pretexto para guerras, despesas militares, leis securitárias ou agressões. Antes de falar em ameaças terroristas, a nova National Security Strategy dos EUA afirma que «A China e a Rússia desafiam o poder, a influência e os interesses Americanos, tentando provocar a erosão da segurança e prosperidade americanas». Alexander Mercouris (theduran.com, 8.2.2018) sublinha a confissão implícita nesta afirmação: os dias da ‘superpotência única hegemónica’ são coisa do passado. Menos diplomático, o editorial do The Economist (27.1.2018) afirma que aqueles países «são hoje Estados revisionistas, que querem desafiar o status quo» e, com a habitual inversão de responsabilidades, ameaça: «Se a América permitir que a China e Rússia estabeleçam hegemonias regionais […] ter-lhes-à dado luz verde para prosseguirem os seus interesses através da força bruta. Da última vez que isso foi feito, o resultado foi a Primeira Guerra Mundial». Para o anglo-saxónico The Economist não há dúvidas. Agora que o Sol já se pôs sobre o Império Britânico, têm de ser os EUA a potência hegemónica. Como a Alemanha imperial descobriu há um Século atrás, a alternativa oferecida aos países em ascensão económica é entre a vassalagem (o termo é de Zbigniew Brzezinski) e a guerra. Para o The Economist, essa hegemonia deve ser imposta com o sangue – e o endividamento – do povo norte-americano: «A América tem de compreender que é o principal beneficário do sistema internacional e que é a única potência com a capacidade e os recursos para o proteger dum ataque sustentado». Tese que conduz à questão suscitada por Trump: se é assim, porque não hão de ser os lucros também Americanos?

Longe dos mitos propagandísticos para as grandes massas, já há 20 anos (3.1.1998) o The Economistpublicava um longo artigo defendendo uma aliança hegemónica euro-atlântica sobre o planeta, falando num «explosivo rectângulo [energético] entre a Arábia e o Cazaquistão» e perguntando-se: «em que direcção irão correr os oleo/gasodutos, de quem será o dinheiro que vai decidir a questão, será necessário algo mais musculado do que dinheiro»? A revista respondia falando duma potencial «guerra Euro-asiática». Já então falava na necessidade «de aliar um longo alcance nuclear com um alcance também não nuclear, não apenas porque a maioria das crises é melhor enfrentada por meios não nucleares [!!], mas também porque mesmo um ataque nuclear bem sucedido [sic] tem de ser seguido por soldados no terreno que possam assegurar que permaneça bem sucedido [!]». Também há quase duas décadas, o General Loureiro dos Santos (DN, 13.3.2000) previa uma guerra mundial, como resultado da «disputa dos recursos mundiais» e perante a ascensão de novas potências, referindo em particular a China e a Rússia, que «reúnam capacidade para se opôr ou desafiar os Estados Unidos. E os Estados Unidos precisarão de actuar. Isso não será para já, mas dentro de 15, 20 anos é praticamente inevitável». E dava voz à perigosíssima, mas reveladora, banalização das armas nucleares: «A arma atómica continuará a ser uma arma muito importante […] mas para as grandes potências deixará de ser um obstáculo» [sic].

As habituais patranhas que agora se inventam para tentar justificar a corrida belicista das velhas potências imperialistas esbarram contra a franqueza destas afirmações, escritas quando ainda Putin não era Presidente e o mundo parecia uma coutada dos EUA. Uma guerra global para preservar a sua hegemonia faz parte dos planos de importantes sectores do imperialismo desde há muito. São o fruto duma visão de dominação do mundo que encara as soberanias dos povos e os interesses das classes trabalhadoras como meros entraves descartáveis. O perigo de que o partido da guerra se torne predominante no seio das classes dominantes, perante uma crise de dimensões não controláveis, é enorme. O atraso na compreensão da gravidade do momento adensa os perigos. O silêncio dos políticos burgueses sobre os perigos para a Humanidade e a necessidade de lutar pela paz é ensurdecedor.

Cabe aos trabalhadores e aos povos – as principais vítimas de todas as guerras – erguer com urgência a bandeira da luta pela paz e contra os delirantes planos de guerra que ameaçam multiplicar muitas vezes a já de si enorme tragédia em que vive hoje boa parte da Humanidade. É necessária a solidariedade com os povos que estão na primeira linha das agressões imperialistas. E os trabalhadores dos principais centros imperialistas são também vítimas do capitalismo: basta olhar para a dramática situação social nos EUA e em muitos países da UE. O inimigo da paz é também o inimigo dos trabalhadores e dos povos de todo o mundo. É essa a base social da vasta frente anti-imperialista e contra a guerra que urge erguer e que poderá travar o monstro decadente, mas feroz, do grande capital internacional.

*Este artigo foi publicado em “O Militante”, Edição nº 353 – Mar/Abr 2018

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