Os avatares do punitivismo: o discurso de Sérgio Moro
Por Jones Manoel – militante do PCB de Pernambuco
A Bíblia, esse grande livro, avisa aos fiéis do cristianismo que o anticristo vem sob várias formas: inclusive como o Messias. O punitivismo e a legitimidade da máquina de moer trabalhador preto e pobre no Brasil (sistema carcerário) também pode apresentar várias formas. O discurso reacionário, protofascista, como o de Jair Bolsonaro, é fácil de identificar. Mas o punitivismo também acha disfarces bem mais sutis.
Tive o desprezar de assistir toda entrevista do juiz Sério Moro ao programa Roda Viva. No programa, o juiz de Curitiba defende, enfaticamente, a prisão imediata após julgamento de segunda instância alegando que através do princípio constitucional da presunção de inocência, muitos empresários e políticos brasileiros – “pessoas que nunca foram presas” – escapam da prisão por intermédio de recursos infinitos, contando com a lentidão da justiça. Todas as vezes que defendeu o endurecimento penal e as restrições ao Estado de Direito, Sério Moro justificou sua decisão, além de uma pobre dogmática jurídica, com o fim da impunidade para o andar de cima – os ricos e poderosos. Na aparência, a maioria da esquerda brasileira concorda com Sérgio Moro, correto? Afinal, quem não gostaria de ver os gerentes do sistema político e os grandes burgueses do país atrás das grades? Na realidade, porém, a questão é mais complexa do que parece.
O sistema penal burguês se estrutura como um sistema de gestão diferencial das ilegalidades que têm, organicamente, uma dimensão classista, racista, patriarcal e colonial. Não é uma questão de escolha de governo (embora um governo de esquerda pode e dever combater aspectos brutalizantes desse sistema), mas de forma política. Toda medida de endurecimento penal, até as destinadas aos crimes de colarinho branco, termina alargando a malha penal para os de baixo. A classe dominante, mediante diversas estruturas e relações, sempre será a menos atingida pelo poder punitivo em todas as suas dimensões (desde a ação da polícia, passando pela sentença de privação de liberdade até o cumprimento da sentença e a vida pós-cárcere). O que Sérgio Moro e os entrevistadores do Roda Viva não falaram é que o Brasil já é a terceira maior população carcerária do mundo e que toda e qualquer medida de endurecimento penal não vai provocar uma prisão em massa de Marcelos Odebrechts, mas sim de Silvas da favela.
Sob a desculpa de não libertar “corruptos”, atiçando um justo ódio a figuras como Eduardo Cunha, Sérgio Cabral e José Sarney, personagens como Moro escondem que sua cruzada punitiva terá como alvo final o jovem negro da favela, o cliente preferencial do sistema carcerário. É fundamental, indispensável, não cair nessas armadilhas e reconhecer o punitivismo com qualquer avatar que ele se apresente.
Ilustração: Conjur.com.br