Ofensiva imperialista e os interesses dos EUA no golpe de 2016
Por Luís Eduardo Fernandes*
Na primeira década do século XXI, acompanhamos a emergência de governos populares na América Latina, oriundos de movimentos populares, partidos de esquerda e centro-esquerda e das resistências às consequências nefastas do processo de liberalização financeira capitalista e dos choques “neoliberais” que tanto massacraram os povos latino americanos.
Trata-se de experiências heterogêneas com diferentes graus de organização popular, radicalização política, composição social, conquistas populares e enfrentamento ao imperialismo, em especial o estadunidense. Se, por um lado, houve uma relativa melhora nas condições de vida, mesmo que mínima, da maioria da população, por outro também constatamos que, mesmo nas experiências mais avançadas, como na Venezuela, não se produziu uma clara estratégia econômica de enfrentamento ao poder financeiro do grande capital contemporâneo.
Talvez o caso brasileiro, através dos governos petistas, tenha sido a experiência “progressista” mais moderada e acomodada aos ditames da burguesia brasileira e sua associação negociada ao imperialismo. O presente artigo se propõe a apresentar um pequeno balanço das relações Brasil–EUA durante os governos petistas. Não pretendemos realizar uma espécie de história diplomática dos acordos de cooperação e missões comerciais, mas sim apresentar elementos econômicos e políticos fundamentais para desenvolvermos a nossa hipótese inicial de que, de maneira indireta, os interesses estadunidenses também influíram para o processo de impeachment da presidente Dilma. Portanto, destrincharemos os seguintes pontos: a) as relações comerciais entre os respectivos países e a proposta da Alca; b) o chamado “diálogo estratégico” e a política dos EUA de contenção à Venezuela bolivariana; c) os acordos jurídicos, policiais e a “luta contra a corrupção”; e, finalmente, d) a questão do pré-sal e da Petrobrás.
As relações comerciais Brasil–EUA e o congelamento da Alca
No início da década de 2.000, os EUA eram os principais investidores na economia brasileira. Segundo Moniz Bandeira (2015), seu estoque de investimentos diretos no Brasil aumentou de 18,9 bilhões de dólares em 1994 para 35,6 bilhões em 2000. Por isso, mesmo após a “Carta aos Brasileiros”, a extrema-direita norte-americana e parte de Wall Street viam Lula com desconfiança, por conta do seu passado sindical e vinculado às esquerdas, assim como por sua proximidade com políticos non gratos em Washington, como Fidel Castro e Hugo Chávez.
Depois de eleito, o primeiro país a ser visitado por Lula da Silva foram os EUA. No encontro com Bush, Lula manteve a promessa de não suspensão do pagamento da dívida externa, manteve as linhas diretivas da política macroeconômica anterior e defendia uma política exterior sem enfrentamentos diretos aos EUA. Os diálogos sobre a Alca, embora já desgastados e contando com diversas críticas de setores empresariais e populares no Brasil, mantiveram-se mais por conveniência política do que por interesses comerciais.
As negociações sobre a Alca se arrastavam desde 1994, fazendo parte de um projeto do EUA de recuperar sua balança comercial negativa junto à Europa e parte da Ásia através da abertura de mercados na América Latina. A abertura, contudo, não seria recíproca: os EUA manteriam tarifas protecionistas para produtos latino-americanos em seu território. O Brasil, sendo o país com maior parque industrial latino-americano, maior diversidade econômica e de parceiros, sofreria sérias consequências caso assinasse o acordo, ainda mais com a permanência de tarifas elevadas nos EUA em produtos brasileiros como o suco de laranja, a soja, o algodão e o aço.
Mesmo durante o período de FHC, no Palácio do Planalto houve certa resistência à Alca. Essa resistência convertia-se em alinhamento automático às posições dos EUA em outros temas, mas de fato o governo Lula habilmente contribuiu para congelar as negociações da Alca. Apesar disso, esse congelamento não foi realizado sem tensões internas no Brasil e externas com os EUA.
O confronto entre interesses comerciais de Brasil e EUA, já intensificados na conferência de Cancun em 2003, tornou inevitável o colapso da Alca em 2005. Segundo Moniz Bandeira (2015), após intensos debates, os países do Mercosul, liderados pelo Brasil, apresentaram uma proposta conjunta, a ser debatida na reunião dos ministros, marcada para novembro, em Miami. Essa proposta colocava as negociações em “três trilhos”, prevendo a derrubada de barreiras comerciais para outros países em desenvolvimento em um prazo menor que o que viesse a ser fixado para Canadá e Estados Unidos e deixando os temas sensíveis, como normas de proteção a investimentos e à propriedade intelectual e a abertura de compras negociadas, podendo ser aceitos separadamente pelos países que o quisessem. O que acarretou o fracasso da reunião foi, assim, o mesmo tipo de impasse que ocorrera em Cancun.
Diante do impasse, os EUA procuraram negociar acordos parciais com setores da economia brasileira, em especial com o agronegócio, a fim de aumentar as pressões na negociação geral. Não por acaso, na época, Roberto Rodrigues, Ministro da Agricultura, e Luiz Fernando Furlan, Ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, criticaram a intransigência brasileira nas negociações da Alca.
É notório que a luta contra a Alca não se restringiu aos salões e conferências diplomáticas. A esquerda latino-americana, movimentos populares, nacionalistas e setores democráticos organizaram uma extensa e vigorosa campanha continental contra a Alca, inclusive com verdadeiras sublevações populares antineoliberais e anti-imperialistas em alguns países como Argentina, Bolívia, Equador e Venezuela.
Esse é um dado político e social extremamente relevante. As heterogêneas sublevações populares combinadas com a eleição de representantes de movimentos, partidos e líderes de esquerda e centro-esquerda fizeram emergir uma nova correlação de forças no continente com, no mínimo, mais independência em relação aos EUA.
No período, os Estados Unidos priorizavam suas ações internacionais na região da Eurásia e do Oriente Médio. A “guerra ao terror” tinha poucas implicações diretas na América Latina. A falta de apoio e a pouca quantidade de aliados na América Latina fizeram o governo norte-americano recuar do projeto da Alca, priorizar acordos bilaterais e potencializar o diálogo estratégico (na verdade, tático) com a maior economia da América Latina e a experiência menos radical de um governo de centro-esquerda no continente.
A questão energética
Em outubro de 2003, Oldair Dias Gonçalves, então presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), anunciou que o Brasil estava a converter-se no sétimo país a produzir urânio enriquecido em escala industrial, com capacidade para suprir 60% das necessidades de suas usinas nucleares e exportar até 12,5 milhões de dólares ao ano, a partir de 2014.
Segundo Moniz Bandeira (2015), no início do primeiro semestre de 2004, os EUA intensificaram as pressões para que o Brasil aderisse a um Protocolo Adicional específico ao acordo de salvaguarda do TNP (Tratado de não proliferação de armas nucleares), dando aos inspetores da AIEA maior autoridade para fazer verificações intrusivas no seu programa nuclear. Esse protocolo adicional, que estava em negociação desde 1992, seria voluntário, mas a AIEA pretendeu fazê-lo impositivo e ir além da prática regular. Exigia também que o Brasil suspendesse todos os programas de enriquecimento e reprocessamento que já houvesse começado e permitisse quantas inspeções fossem necessárias em qualquer parte do território.
Para o historiador brasileiro, esse problema evidenciou o grande erro do governo de FHC ter assinado o TNC, ao passo que Índia, Israel e Paquistão não aderiram. Além disso, Moniz Bandeira (2015) apresenta algumas das razões por detrás desta pressão norte-americana:
Por trás dessa campanha contra a atitude do governo de Lula da Silva havia,certamente, o interesse econômico e, igualmente, político e militar-estratégico. O Brasil, como sexta maior reserva mundial de urânio e
tecnologia própria, comercialmente competitiva, demonstrou que podia alcançar a autonomia na produção de combustível nuclear, fonte de energia da maior importância, ante a perspectiva de esgotamento das reservas mundiais de petróleo, ainda na primeira metade do século XXI […]
O governo brasileiro não assinou o ato adicional, denunciou as nações pertencentes ao conselho de segurança da ONU, dentre elas os EUA, por não estarem destruindo parte do seu arsenal nuclear e, em 2010, mediou o impasse, juntamente com a Turquia, sobre o programa nuclear iraniano. Mais uma vez, apesar de não confrontar diretamente os interesses norte-americanos, a maior inserção internacional de um país emergente como o Brasil tensionava os interesses estratégicos de manutenção da hegemonia econômica, política e militar do imperialismo norte-americano.
Um ponto mais convergente entre os países, valorizado conjunturalmente pelo governo brasileiro, foi o dos acordos relativos ao etanol. Brasil e EUA são os dois maiores produtores de etanol no mundo e, a partir da visita de Bush ao país em 2007, os governos firmaram acordos na perspectiva de uma composição estratégica no setor. No entanto, com a crise econômica de 2008 e, principalmente, a descoberta do pré-sal pela Petrobrás secundarizaram, para o governo brasileiro, o enfoque na produção de etanol.
Anunciada em 2007, a descoberta do pré-sal inseriu de vez o Brasil no mapa da geopolítica do petróleo, com a perspectiva de colocar o país como um exportador relevante deste combustível. Até hoje, desconhece-se o exato potencial desse fenômeno, com estimativas de que, na camada entre os estados do Espírito Santo e Santa Catarina, estão cerca de 80 bilhões de barris de petróleo. Para Igor Fuser, além da alta produtividade nos poços, o que também diferencia o pré-sal é o baixo risco geológico. Em mais de 90% dos poços perfurados verificou-se a existência de petróleo (FUSER, 2018).
Diante de tal quadro e a emergência de intensas pressões no seio da sociedade civil brasileira, o governo brasileira opta por adotar um marco regulatório do pré-sal moderadamente nacionalista, utilizando um modelo de exploração adaptado de países como Líbia, Nigéria, Rússia e China. O regime de partilha mantinha a preferência do Estado e da Petrobrás na exploração, mas concedia parte da exploração de poços a empresas estrangeiras. Essa medida não agradou parte das classes dominantes brasileiras, principalmente as vinculadas ao mercado financeiro, as quais questionavam a excessiva participação estatal no modelo e duvidavam da capacidade tecnológica e administrativa da Petrobrás em poder explorar tamanhas riquezas.
Conforme já apontamos, mais do que uma necessidade interna, o controle norte-americano de grande parte da produção de petróleo e outras fontes de energia no mundo é uma peça-chave estratégica para a garantia de sua hegemonia imperial. A descoberta de relevantes reservas de petróleo no Brasil e a ascensão de governos populares de esquerda e centro-esquerda na América Latina fizeram os EUA acionarem a sua tradicional política de contenção, reativando a IV Frota. Oficialmente, o governo norte-americano explicou que a reativação da IV Frota se devia ao combate ao terrorismo e ao tráfico de drogas na Colômbia e na tríplice fronteira. No entanto, segundo Cristina Pecequillo (2012):
A reativação da Quarta Frota é reflexo direto das descobertas das reservas de petróleo do pré-sal brasileiro e de gás em Angola. Além disso, corresponde a uma tentativa de exercer poder militar em uma região de baixa projeção norte americana, frente às ações da Venezuela, e suas relações extracontinentais com a Rússia e o Irã. E, finalmente, é uma busca de reocupação de espaço geopolítico no hemisfério diante do incremento da presença da China na América do Sul em busca de matérias primas como alimentos e recursos energéticos, somada a suas ações de fortalecimento político de alianças de geometria variável com o Brasil […].
Contudo, a política de contenção dos EUA não se restringiu à arena militar. Tratou-se de um conjunto de ofensivas em campos diferentes. Ao priorizar ações diretas na Eurásia e no Oriente Médio e com perda de influência na América Latina, num primeiro momento, cabia ao imperialismo norte-americano combater e isolar os polos mais radicalizados e mais antiamericanos do continente, tendo como vanguarda a Venezuela de Chávez. Nesse sentido, a abertura de diálogos estratégicos e o reconhecimento do Brasil enquanto potência regional e líder global, em nossa visão, também faz parte deste objetivo.
A abertura de diálogos estratégicos com o Brasil e a contenção à Venezuela
A partir de janeiro de 2005, o início do segundo mandato de George Bush caracterizava-se por mudanças táticas na agenda da política externa norte-americana. Apesar de não alterar o conteúdo estratégico de sua doutrina de “guerra ao terror”, os EUA tentaram retomar o diálogo multilateral e melhorar a relação com as potências regionais, como os BRICS (traços na política externa que foram mantidas durante o governo Obama). Os EUA realizam alguns recuos táticos, como a questão do programa nuclear indiano, a defesa da entrada do Japão no Conselho de Segurança da ONU e o apreço pela pretensão global brasileira.
Segundo diplomatas, ministros e o próprio presidente Lula (PECEQUILO, 2012), os diálogos entre as nações amadureceram muito e entraram em um novo patamar de respeito e parcerias. Os EUA, ao menos conjunturalmente, apoiavam o papel do Brasil na América do Sul, sua liderança no Mercosul, a criação da UNASUL e suas pretensões globais. Mesmo antes de 2005, os EUA foram os grandes articuladores para que o Brasil fosse o país líder das tropas da ONU na ocupação militar do Haiti.
Na verdade, o crescimento e a projeção brasileira de suas políticas sociais e empresas transnacionais freavam a ampliação de um terceiro polo abertamente anti-imperialista entre os governos populares, tendo a experiência bolivariana na Venezuela como vanguarda. Ter o Brasil de Lula como modelo latino-americano seria o exemplo de que a ordem mundial comportaria a ascensão de lideranças e partidos operários, desde que estes orquestrassem grandes negociações nacionais em prol da expansão das relações capitalistas e não questionassem estrategicamente o status quo internamente e externamente.
Nesse sentido, apesar da grande proximidade comercial e política, o Brasil de Lula e a Venezuela de Chávez competiam pela liderança regional. Uma competição travada não meramente entre países e interesses comerciais, mas sim uma disputa político-ideológica de concepções de sociedade e integração latino-americana.
Essas tensões se manifestaram, principalmente, nas propostas de organismos multilaterais de ambos os governos. Chávez, num primeiro momento, apostou suas fichas na ALBA. A ALBA era, inicialmente, uma “alternativa bolivariana” à proposta da Alca, feita pelos Estados Unidos. Naquele contexto, em que havia ainda poucos líderes dispostos a assumir uma postura mais ofensiva frente à potência hemisférica, a ideia venezuelana teve pouco eco, contando apenas com o apoio de Cuba. Em 2004, a ALBA ganhou forma como um tratado comercial bilateral e, após a derrocada da ALCA, em 2005, esse novo arranjo pleiteou o papel de alternativa às articulações capitalistas. No ano seguinte tiveram lugar as adesões de Bolívia, Nicarágua, Dominica, Honduras (até 2010), Equador, São Vicente e Granadinas, Antígua e Barbuda, Santa Lúcia, São Cristóvão e Nevis e Granada ao bloco.
Em 2009 ocorre uma mudança no acrônimo ALBA, que deixa de ser “alternativa bolivariana” para ser chamado de “Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América – Tratado de Comércio dos Povos”. Além do viés comercial que já estava presente desde o início, a principal característica desse bloco é o foco na dimensão social e em projetos de cooperação entre os países nas áreas de educação, saúde e cultura, por meio dos projetos grannacionales, garantindo aos seus membros a erradicação do analfabetismo e outros avanços sociais (ALIANZA BOLIVARIANA PARA LOS PUEBLOS DE NUESTRA AMÉRICA, 2013).
Outra proposta do governo bolivariano foi o Banco do Sul (BS). Após um intenso processo de negociação, Bolívia, Equador, Brasil e Argentina entraram como membros em 2007, ano em que o convite para integrar o BS foi estendido a todos os países da UNASUL. Envolto em aparente convergência, na realidade, o projeto do Banco do Sul possuía significados diferentes para os países, conforme as necessidades de cada um. Para a Venezuela, o organismo deveria ter a mesma função do Fundo Monetário Internacional (FMI), agindo como um emprestador de última instância para os países da região, porém sem as condicionalidades “maléficas” e com uma estrutura decisória igualitária. A Bolívia e o Equador almejavam que a prioridade do banco fosse o desenvolvimento social e a criação de uma moeda única, uma vez que suas economias são altamente dolarizadas. Já o Brasil tinha em mente um organismo similar ao seu Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), ou seja, de financiador de projetos de infraestrutura e desenvolvimento.
O convênio constitutivo do Banco do Sul foi assinado em 2009 pelos presidentes de Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, Paraguai, Uruguai e Venezuela. Cinco países chancelaram o documento em seus parlamentos, mas Brasil e Paraguai ainda tramitam sua aprovação. No Brasil, o convênio do Banco do Sul foi aprovado pela Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados em 2013, mas até 2017 não foi apreciado pelo plenário da casa.
Ou seja, a liderança brasileira na América do Sul sem se antagonizar à ordem mundial capitalista e à hegemonia dos EUA era um pouco melhor para os interesses norte-americanos. Nesse sentido, a política externa petista apostou grande parte das suas fichas na perspectiva de um diálogo estratégico com os EUA, continuado por Obama, a fim de expandir a gradual projeção brasileira no cenário internacional.
Essa aposta se relaciona com a própria política interna petista que visava viabilizar uma grande conciliação nacional em torno da expansão da internacionalização do capitalismo brasileiro. Como já bastante discutido pelo pensamento social brasileiro, o imperialismo, inclusive estadunidense, não é um fenômeno externo à formação social brasileira. Ele se associa e se alia a frações significativas das classes dominantes brasileiras. Ao depender e se aliar ao agronegócio, à burguesia industrial e financeira, o petismo naturalmente deveria desenvolver um diálogo mais ameno, enfrentar os conflitos de interesses comerciais, cumprir os contratos e os ditames do capital financeiro e realizar concessões às pressões do imperialismo norte-americano.
O governo Obama, ao menos nos discursos, valorizava ainda mais a projeção global brasileira. Acordos comerciais e na cooperação técnica são ampliados, a partir de 2009 a balança comercial entre os países se torna favorável aos EUA, mas apesar do reconhecimento ao Brasil e demais emergentes esse reconhecimento é baseado na manutenção da hegemonia norte-americana. É durante o período do primeiro presidente negro dos EUA que se ampliam novas formas de intervenção do imperialismo, como destaca Moniz Bandeira, principalmente através da desestabilização de regimes contrários aos interesses do império norte-americano, financiamento de grupos de extrema direita, incremento da guerra virtual, espionagem e guerra jurídica.
Parece-nos que, no caso brasileiro, sob um discurso de diálogos estratégicos e reconhecimento da projeção brasileira, articula-se, conjuntamente com setores das classes dominantes e frações privilegiadas do Estado brasileiro, uma progressiva guerra jurídica a fim de reenquadrar o Brasil e a América Latina à hegemonia norte-americana, radicalizar choques neoliberais na economia brasileira e abrir mercados para empresas norte-americanas.
A guerra jurídica
Apesar de escrevermos sobre a influência dos EUA no golpe de 2016, seria um equívoco tratarmos tal influência desarticulada da própria dinâmica das lutas de classes no Brasil, assim como os privilégios secularmente existentes no interior do Estado brasileiro como legado do regime escravista colonial. Obviamente, neste breve artigo não temos o espaço devido para relacionarmos com a devida profundidade a ação e interesses do imperialismo norte-americano com uma análise esmiuçada das frações e disputas no interior da burguesia brasileira.
Também reconhecemos que as ações que culminaram no golpe de 2016 tiveram como protagonistas as classes, frações e grupos sociais internos ao Brasil. Sabemos, porém, que a hegemonia norte-americana, mais do que a hegemonia de um Estado-nação sobre os demais, representa a dominação do capital em expansão globalmente. O golpe de 2016 representou essa inserção do Brasil numa fase da acumulação capitalista ainda mais espoliativa e predatória, cujo aprofundamento corresponde à manutenção, ao menos passageira, da hegemonia norte-americana.
O poder judiciário, no Brasil, é um exemplo do caráter autocrático do Estado brasileiro. Uma verdadeira caixa-preta cujo funcionamento dá-se com base em sistemas hierárquicos nos quais os ocupantes dos postos mais importantes não são eleitos pelo povo (no máximo, são escolhidos entre seus pares), além do peso que o o sistema judiciário em nosso país representa no consumo de nossa riqueza. Dados mostram que a Justiça custa ao Brasil 1,3% do PIB (três vezes o programa Bolsa Família). Comparando-se com outros países, vê-se o tamanho da diferença, conforme demonstra o gráfico abaixo. Temos um custo alto para serviços de pouca qualidade e muito morosos.
Durante os governos Lula e Dilma esses privilégios não foram enfrentados. Ao contrário, as indicações ao STF, através de um discurso republicano, primaram pelo burocratismo e pela conciliação com as estruturas hierárquicas e corporativas do poder judiciário. Ampliou-se a chamada autonomia do Ministério Público e concepções vinculadas ao chamado “populismo penal”, militarização da segurança pública e de guerra às drogas cresceram. Os índices da população carcerária no Brasil apenas aumentaram e o grau de autonomia do judiciário era visto como um necessário avanço “democrático”.
O elo de aproximação do poder judiciário, do Ministério Público e das polícias com instituições norte-americanas deu-se, principalmente, através de programas de cooperação no combate ao tráfico de drogas e de combate à corrupção. Em 2001, Brasil e EUA firmaram um acordo de cooperação jurídica entre os países para fins de troca de informações e inteligências, o que possibilitou a legalização, por exemplo, da atuação livre do FBI e da CIA em território brasileiro.
Curiosamente, as concepções de “guerra às drogas” e de “combate à corrupção” emergem nos anos de 1970, nos Estados Unidos, período, conforme já relatamos, de reestruturação do capitalismo internacional e do imperialismo norte-americano. A “guerra contra o narcotráfico” promovida pelos EUA tem um aspecto econômico, político e militar. O aspecto econômico busca impedir que surja uma forte burguesia nos países periféricos apoiada neste grande negócio, já que isto permitiria o controle de um negócio mundial que alcança cifras em torno de trilhões de dólares. Daí sua política de repressão seletiva, que ataca os pequenos produtores, com a destruição das plantações de coca na Bolívia, Peru e Colômbia, e os consumidores, sem atacar os grandes atravessadores que detêm os maiores lucros no processo, principalmente as máfias americanas e os grandes bancos, que recolhem o grosso dos lucros do narcotráfico.
Já o combate à corrupção se fortalece com uma lei norte-americana, aprovada em 1977. A Foreign Corrupt Practices é uma lei que pune as empresas listadas nas bolsas dos EUA e que tenham se envolvido em corrupção (propina) no exterior. Trata-se de mais um mecanismo de possível controle dos EUA na regulação das disputas interimperialistas.
No século XXI, a guerra jurídica e a “luta contra a corrupção” aparenta já ser o grande elo de intervenção do imperialismo norte-americano no continente latino-americano. Um documento lançado em 2016, assinado por 23 acadêmicos norte-americanos na América Latina (dos quais, boa parcela trabalhou no governo Obama), sustentava que o próximo presidente dos EUA deveria trabalhar com os governos da América Latina para estabelecer um painel independente de juristas e autoridades públicas para coordenar a batalha que os países da região estão travando contra a corrupção nos setores público e privado.
Os graves problemas econômicos experimentados pelos países da região, em especial na América do Sul, são apontados como oportunidade para os EUA. Os Estados Unidos são o primeiro ou o segundo maior parceiro comercial de praticamente todos os países da região e, diferente da China, importa bens e serviços mais sofisticados, de modo geral, segundo o manifesto. Os acadêmicos sustentam uma política externa dos EUA mais próxima e intervencionista, fortalecendo a OEA.
Desde a descoberta do pré-sal, a Petrobrás era um alvo direto da guerra jurídica articulada pelo imperialismo norte-americano e setores da classe dominante brasileira. No Brasil, a política do governo de promover o avanço da oligopolização da economia nacional, mediante relações privilegiadas com o governo, gerava fissuras e disputas políticas, econômicas e regionais interburguesas. Já para os EUA, era fundamental abrir mais mercados às corporações norte-americanas a exploração do pré-sal e outros setores econômicos no Brasil, na América Latina e África.
Em 2013, os documentos divulgados por Edward Snowden, ex-analista contratado pela NSA, comprovam a espionagem da então presidente Dilma, assessores, ministros e diretores da Petrobrás. A resposta da presidente foi de denúncia na Assembleia da ONU e cancelamento de sua viagem agendada aos EUA. Após o pedido formal de desculpas do presidente Obama, Dilma amenizou o tom das suas críticas. Em 2014, sites nos EUA ofereciam recompensas para que investidores fizessem denúncias de corrupção da Petrobrás com base na lei FCPA (SILVA JÚNIOR, 2014).
A questão da corrupção estrutural é endêmica às disputas entre as grandes corporações, na fase imperialista do capitalismo. A corrupção é um instrumento para a reprodução ampliada do capital, porque através dela maximizam-se lucros, neutralizam-se concorrências e reparte-se parte da extração de mais-valia com agentes públicos e privados que viabilizaram esse processo. A edificação de leis internacionais, tratados e acordos anticorrupção é mais uma peça da guerra comercial que se intensifica com o declínio econômico do polo imperialista ocidental e com o crescimento de novos centros capitalistas regionais.
Em 2011, o governo brasileiro se recusou a assinar um tratado na OMC que apontava pela necessidade de maior transparência nas licitações públicas. O acordo era restrito a um pequeno número de países europeus e os EUA. Parte do objetivo do acordo era viabilizar a participação competitiva de empresas norte-americanas e europeias nas licitações de prestações de serviços na Copa do Mundo de Futebol, em 2014, e nos Jogos Olímpicos, em 2016. O governo brasileiro foi pressionado e a questão repercutiu na imprensa brasileira (CHADE, 2011).
O caldo cultural anticorrupção na sociedade brasileira era crescente. A conciliação do PT com diversas oligarquias políticas, com a maioria delas vinculadas ao PMDB, a política de privilégios com as empresas chamadas de “campeãs nacionais”, a oposição à direita liderada pela grande mídia tendo como principal diretriz a questão moral e, até mesmo, um certo oportunismo eleitoral de partidos de esquerda ajudaram a contribuir para que o diagnóstico quase consensual de que a corrupção seria o principal problema do país.
A pressão por um aparato legislativo mais punitivo, maior “independência” do judiciário e do Ministério Público foram, assim, pautas incorporadas pelos governos petistas e sua base de sustentação. Desde a primeira década dos anos 2000, setores do judiciário brasileiro e, até mesmo, da Polícia Federal firmavam parcerias, cursos de capacitação e troca livre de informações.
Segundo documento divulgado pelo Wikileaks, em 2009, após a boa receptividade do seminário sobre “crimes financeiros ilícitos”, promovido pelo “Projeto Pontes” (bancado com recursos dos EUA), cursos de formação em São Paulo e Curitiba foram solicitados por juízes, promotores e policiais brasileiros interessados em aprofundar o conhecimento sobre como, por exemplo, arrancar, de maneira prática, revelações de acusados de lavagem de dinheiro e outras testemunhas.
Sérgio Moro participou do seminário na condição de palestrante, em outubro de 2009, expondo, de acordo com o telegrama recebido pelo governo dos EUA, as “15 questões mais frequentes nos casos de lavagem de dinheiro nas cortes brasileiras”.
Em 2014, o Ministério da Justiça organiza reuniões do Grupo de Trabalho sobre Suborno Transnacional da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do Grupo de Trabalho Anticorrupção do G-20. Nestas reuniões, representantes brasileiros falaram dos esforços de combate a corrupção no país, dentre estes a Operação Lava-Jato, e requereram ajuda. Os EUA, por meio do FBI, ampliaram a equipe no Brasil especializada na lei de combate à corrupção no exterior (FCPA) a fim de facilitar a troca de informações.
Os impactos da Operação Lava-Jato não se encerram exclusivamente no Brasil, mas avançam para o resto da América Latina. Em 2018, além da condenação do ex-presidente Lula, outros oito ex-presidentes (ou ex-vice-presidentes) latino-americanos foram condenados ou já estão presos, sendo a maioria lideranças de centro-esquerda e com relações diretas com a expansão do capitalismo brasileiro. O curioso é que a guerra jurídica é revestida de legalidade nacional e internacional e a cooperação internacional entre Brasil e EUA foi a base legal para tais intervenções e associações.
Apontamentos conclusivos
O presente artigo procurou sintetizar um balanço das relações Brasil–EUA, durante os governos Lula e Dilma, a fim de compreender um possível interesse norte-americano no impeachment de 2016 da presidente Dilma. Acreditamos que conseguimos apontar razões bem factíveis para isto. O ciclo de expansão do capitalismo brasileiro, acomodado num pacto social conjuntural, e a projeção global do Brasil e sua associação com os BRICS eram um entrave estratégico para a garantia da hegemonia do imperialismo norte-americano.
Não se tratava de um entrave político-ideológico: a política externa petista não tinha como objetivo questionar a ordem mundial liderada pelos EUA. Mas procurava reformá-la e aumentar a competitividade internacional de grandes empresas brasileiras, a fim de prolongar ainda mais o pacto social entre as classes dentro do país, conforme tentamos explicar, através da valorização do salário mínimo, programas sociais de transferência de renda, manutenção dos contratos e tripé macroeconômico pró-capital financeiro e investimentos na formação de transnacionais brasileiras.
Constatamos também que as relações com os EUA, apesar de conterem algumas tensões comerciais e políticas, a partir de 2005, se notabilizaram por um diálogo mais recorrente, intenso e o que se convencionou chamar de “estratégico”. Os EUA reconheciam o Brasil como potência regional e liderança global, com o governo Lula fazendo o contraponto moderado necessário a governos abertamente anti-imperialistas como o da Venezuela de Chávez.
No entanto, a descoberta do pré-sal e a política de privilégios dos governos petistas às transnacionais brasileiras eram elementos que se chocavam com os interesses estratégicos dos EUA na América Latina. Os Estados Unidos tinham que lidar com o seu déficit fiscal, comercial e as consequências da crise de 2008 e a retomada da influência estadunidense na América Latina passa a ser fundamental para a manutenção de seu projeto imperial.
Nesse sentido, os EUA desenvolvem dois tipos de política no continente. A mais coercitiva, através de ameaças, bloqueios econômicos e financiamentos a grupos de extrema-direita e golpistas como na Venezuela. E uma mais branda, a partir do financiamento de ONGs e grupos de jovens contra a corrupção, pressões midiáticas e, principalmente, a guerra jurídica, como foi no Brasil e espalhou-se para a Argentina, Equador, Peru, El Salvador, dentre outros países.
Obviamente, não concordamos com afirmações taxativas de que as ações do judiciário brasileiro, em especial a Operação Lava-Jato, seriam produtos exclusivamente da ação direta do imperialismo estadunidense. Tais afirmações, além de serem simplistas, não compreendem a complexidade da guerra jurídica. Uma guerra, independentemente de suas características, pressupõe também a disputa de hegemonia nos âmbitos econômicos, políticos e culturais. A doutrina de guerra jurídica orquestrada pelos interesses imperialistas articula-se com importantes aliados entre as classes dominantes brasileiras, burocracia estatal e grande mídia. E, é claro, sendo determinante a luta de classes no país. Grandes eventos e transformações não ocorrem somente por meio de grandes conspirações, mas fruto da ação direta ou consentida das massas.
As manifestações em 2013, no Brasil, revelaram uma enorme explosão social. Foram os primeiros grandes protestos sociais na história recente do país que passaram longe de qualquer influência petista. A pauta política e cultural da hegemonia imperialista para a América Latina acabou por ser predominante na síntese política das manifestações, como a luta contra a corrupção e ineficiência dos serviços públicos. No entanto, as manifestações também revelaram o início do esgotamento do modelo econômico e político petista e a insatisfação das massas urbanas. Posteriormente, a resposta do governo Dilma foi a inflexão neoliberal e antipopular nos rumos do governo.
Nesse sentido, nesse breve artigo ensaístico (que pretendemos aprofundar), podemos afirmar que os interesses dos EUA não são estranhos a setores da classe dominante brasileira. Após 2016, o enfraquecimento de transnacionais brasileiras abriu mercado para empresas norte-americanas e seus sócios minoritários brasileiros. Segundo Brier Mier (2018), a Boeing está prestes a tomar o controle acionário da Embraer, conglomerado aeroespacial de capital misto, terceiro maior fabricante de aviões do mundo. Após um encontro com diretores da Monsanto em fevereiro de 2018, a administração Temer anunciou planos de legalizar o uso do pesticida Glifosato, da Monsanto, que fora recentemente proibido na Europa. Logo após leiloar oito campos de petróleo offshore para corporações petroleiras internacionais como Chevron e Shell em outubro de 2017, Michel Temer providenciou um decreto presidencial com cerca de R$1 trilhão em abatimento de impostos para companhias petrolíferas estrangeiras atuantes no Brasil. M Microsoft Monsanto, Boeing, Ch
Mais do que uma mera troca de governos, disputas entre oligarquias políticas e frações da burguesia brasileira, nos parece que desvendarmos o real significado do golpe de 2016 requer compreendermos as novas dinâmicas da acumulação capitalista pós-crise de 2008 e as disputas interimperialistas.
Não por acaso, após 2008, a combinação de crises econômicas e políticas estourou no Oriente Médio, Ucrânia e países emergentes, como Turquia, Rússia e Brasil. Grandes manifestações de massa tomaram as ruas, sem lideranças e organizados por redes sociais.
Obviamente, a insatisfação social das classes populares e classes médias urbanas nesses países é um fenômeno que se relaciona com a própria dinâmica das lutas de classes locais. Ao nos depararmos, porém, com as resultantes que estes protestos sociais tiveram (a ascensão fascista na Ucrânia, o crescimento da influência de grupos fundamentalistas mulçumanos no poder no Oriente Médio e o fortalecimento de organizações terroristas como o Estado Islâmico, a guerra civil na Síria, as sanções econômicas à Rússia, o cerco às liberdades democráticas na Turquia e o golpe jurídico parlamentar no Brasil) percebemos que as mudanças ocorridas, se não totalmente favoráveis aos interesses dos EUA, ao menos enfraqueceram possíveis inimigos e adversários de seus interesses.
*Membro do comitê central do PCB e doutorando em serviço social UFRJ