É preciso separar o joio do trigo
Se ainda há algum espaço para um debate ideológico na atual cena pós-moderna, eis então um que não tarda por esperar. No último final de semana, a revista Veja publicou mais uma falcatrua envolvendo o chamado Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Como nos conta ninguém menos que Leandro Konder, após a morte de Stalin, na antiga URSS, e as denúncias proferidas pelo novo secretário-geral do PCUS Khruschev sobre o que ele chamou de “culto à personalidade”, os abalos no movimento comunista internacional se fizeram sentir em toda parte, inclusive aqui no Brasil.
O PCdoB, surgido dum racha do PCB, é produto desse processo. Sob o impacto da revolução na China, esse partido se insere na luta armada, na crença de que a revolução iria se encaminhar da periferia (“campo”) para o centro (“cidade”). O massacre do Araguaia, pode-se dizer, foi o auge daquela malfadada tentativa de promover mudanças estruturais na sociedade brasileira.
Os tempos mudaram, e as táticas, agora para se chegar ao poder, também. O PCdoB, depois dos anos 80 com a concorrência do PT, não se importou em ser o aliado coadjuvante deste partido e, mais tarde, das chamadas “frentes populares”. As suas práticas, para quem conhece o movimento popular brasileiro por dentro, são assaz conhecidas: vão das fraudes sem limites (de atas, documentos até eleições) e ameaças de agressão física no movimento sindical às criações de entidades de fachada, de cima para baixo, sem nenhuma organicidade, feitas única e exclusivamente para forjar (e monopolizar) uma representatividade inautêntica e ilegítima do segmento em questão.
A União Nacional dos Estudantes, outrora orgânica e combativa, sob o domínio ininterrupto em sua direção desse partido, desfigurou-se, deixou de ser sinônimo de rebeldia e ousadia para ser o que hoje ela é: um espaço onde os jovens, ao invés de pioneirismo e rebeldia característicos, são objeto de manipulação segundo os interesses do partido, e todo vigor de suas energias e criatividade é desviado dos problemas centrais e contemporizado com questões menores. Aliás, o ministro que a Veja acusa de ter recebido “dinheiro na garagem” vem de lá; podemos dizer que sua escola política foi esta UNE.
Certa vez, indagado por um entrevistador sobre o PPS, o atual secretário-geral do PCB – o Partido Comunista Brasileiro –, Ivan Pinheiro, respondeu: “Aquilo lá é um caso de Procon”. A ironia feita por Pinheiro era em relação ao termo “socialista” representado pela última letra daquela sigla. O mesmo serve aqui, por analogia, para o “caso” do PCdoB. Ninguém vai duvidar, ou é preciso ser muito incauto, que quem frauda urnas em eleições sindicais, ou faz do voto na época da eleição moeda de troca (você me dá seu voto, e aqui está sua recompensa), vai ter o pudor de no ministério, “administrando” quantias milionárias de recursos, governar sem se servir de expedientes ilícitos. Mas aqui se interpõe um dilema: “Não será que os fins justificariam os meios?”. Mas, então, quais seriam os “fins” do PCdoB, para que a interpretação “maquiavélica” portasse algum sentido digno?
Essa é a questão. O PCdoB não faz nada – nem no campo político, nem no campo popular –, na prática, para justificar a manutenção em sua sigla da letra “C”, a que abrevia “Comunista”. O seu “Programa Socialista para o Brasil”, apesar de aparentemente antenado com o debate em curso e de toda sua retórica (em tese), não passa, na prática, de uma construção abstrata, aponta para uma sociedade ideal nunca a ser alcançada, mas para a qual devemos marchar, como se esta viesse um dia, sem data e hora marcadas, do céu ao encontro da terra. Mas o problema é que da fé que têm os cristãos no apocalipse os “comunistas” do PCdoB são todos ímpios.
Em que consistiria, então, o Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento, vinculado à transição para o socialismo, defendido no Programa? Qual é o núcleo desse projeto e, por conseguinte, da sua “perspectiva de socialismo”? Aqui se desfaz o castelo de areia. Como não é uma construção abstrata, segundo os fundadores do socialismo científico a sua proposta consiste única e exclusivamente na superação, do ponto de vista concreto, do trabalho assalariado pelo trabalho “livre-associado”, ou emancipado, como dirá um dos seus signatários, o filósofo alemão Karl Marx. Como a sociedade no seu todo se estrutura a partir do trabalho, a mudança na sua forma, superando a parcela do trabalho que não é paga pela repartição de toda a produção conforme as necessidades de toda a coletividade social, já sem classes, significaria, por consequência, o fim dos conflitos econômicos, do Judiciário como regulador dos mesmos, da escassez, da destruição ambiental, etc. Seriam, portanto, estas as diferenças concretas da sociedade vigente para a socialista, bem como os indicadores de uma e de outra numa perspectiva de transição orgânica para a segunda, também conhecida como primeira fase do comunismo.
O PCdoB – já que um dos seus inspiradores teóricos não desvencilhava nunca teoria da prática, ao contrário, dizia ser esta última o critério da verdade – está por demais longe de uma consistente convergência programática com os postulados do materialismo histórico e dialético defendidos pelos fundadores do socialismo científico. Não faz jus, programática e praticamente, ao que a matriz fundante desta tradição, permeada de desvios e deturpações, legou e ressoou como bases para edificação de uma nova sociedade. O episódio do ministro Orlando é só mais um entre vários outros a confirmar esta tese.
*Rogério Castro é jornalista e mestre em serviço social