Brasil atende a interesses do latifúndio e do capital internacional
Para Larissa Mies Bombardi, em vez de seguir o caminho da segurança e soberania alimentar, país “se vira do avesso” para transformar o território nacional em base para o capitalismo internacional
por Redação RBA publicado 13/09/2018 16h26, última modificação 13/09/2018 16h54
ROOSEWELT PINHEIRO/EBC
São Paulo — Autora do Atlas de Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, a professora do Programa de Pós Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo (USP) Larissa Mies Bombardi acredita que, para entender a configuração da agricultura no Brasil, é preciso antes compreender a existência de uma questão agrária mal resolvida. “Nós não fizemos a lição de casa, que era promover o acesso à terra. Temos uma classe social, o campesinato, que foi e é permanentemente excluída da terra. E se temos as experiências agroecológicas trazidas pelos camponeses, por outro lado, temos a força enorme do latifúndio”, afirmou, em entrevista nesta quinta-feira (13), aos jornalistas Marilu Cabañas e Glauco Faria, na Rádio Brasil Atual.
Larissa explica que o uso de agrotóxicos no Brasil, país que mais consome esses produtos químicos no mundo, está diretamente relacionado à concentração de terra e ao modo como essa ela é utilizada. Para a professora, o Estado brasileiro faz a mediação de dois interesses: o do latifúndio e o do capital internacional, representado pelas indústrias produtoras dessas substâncias.
“As indústrias de agrotóxicos se beneficiam desse modelo agrícola porque se apropriam de parte da renda da terra, por meio da venda de produtos como sementes, fertilizantes químicos e agrotóxicos. E, por outro lado, os grandes proprietários de terra ganham com essa concentração fundiária porque tem se expandido indeterminadamente. Temos cinco ‘Portugais’ em cana-de-açúcar, eucalipto e soja no Brasil”, afirma a pesquisadora.
E vai além: “Em vez de caminharmos no sentido da segurança e da soberania alimentar, com uma vasta reforma agrária por meio de um manejo que possa se configurar como agroecológico ou biodinâmico, estamos nos virando do avesso e transformando o território nacional em base para o capitalismo internacional se reproduzir dessa forma”.
Na entrevista ela relembra o significado de uma frase dita pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano: “A autodeterminação começa pela boca”. Para ela, a frase é revolucionária. Larissa Bombardi acredita que decidir o que se quer comer e como se quer alimentar é, no fundo, discutir as maiores chagas do Brasil e da América Latina.
“Quando o Galeano diz: ‘a cotação internacional oferece pão para hoje e fome para amanhã’, é isso. O que tem acontecido no Brasil, nessa produção acelerada de grãos, embora o discurso seja de que estamos produzindo alimentos, a gente não está produzindo alimentos. É importante desmistificar isso. O que é que estamos produzindo? Estamos produzindo commodity e agroenergia”, pondera, enfatizando que para o produtor de commodities, pouco importa se o produto é minério de ferro ou grão. “Então o grão deixa de ter essa potência humana e se transforma em moeda de troca do que eu chamaria de ‘cassino do capitalismo globalizado’”, afirma.
Para a autora do Atlas, o pensamento de Eduardo Galeano se refere ao potencial do que pode significar a alimentação humana e a autodeterminação da sociedade ou, ao contrário, representar um tipo de escravidão. “O Brasil tem tido uma inserção subordinada na economia mundial porque temos vendido coisas que não têm valor agregado.”
Em sua análise, a agricultura significa a “humanização da natureza”. E argumenta que a própria palavra contém o sufixo “cultura”, algo relacionado especificamente ao ser humano, que transforma a natureza por meio do seu trabalho. Assim, segundo a pesquisadora, há duas formas de agricultura: a dos povos tradicionais, com equilíbrio no cultivo do solo; e a capitalista, desequilibrada e exacerbada, causando a exaustão da terra.
“O trabalho humano é sagrado. Tem o âmbito da racionalidade, porque pensamos antes de executar; tem o âmbito da sociabilidade, porque não é único, é compartilhado; e tem a hereditariedade, que tem a ver com o saber, e por isso é sagrado”, define a pesquisadora do Departamento de Geografia da USP.
“A ciência moderna é branca, masculina e burguesa, e muitas vezes aniquila todo o conhecimento (antigo). E o que temos para comer hoje é resultado desse conhecimento e desse manejo. Quando o milho surge na natureza, a espiga tinha poucos grãos. Foi o manejo dos índios, sabendo escolher as espigas com grãos maiores e em maior quantidade, que nos trouxe o milho do tamanho que conhecemos hoje. Esse conhecimento é um patrimônio da humanidade. Se a gente tem hoje a diversidade de alimentos e com qualidade, é esse conhecimento que potencializou isso”, afirma Larissa Bombardi.
Em sentido oposto, ela cita a semente Terminator, da Monsanto — que não se reproduz. “É o avesso do princípio de semente. O que é semente se não o próprio símbolo da vida e da reprodução?”, questiona.
Ouça a entrevista na íntegra: https://soundcloud.com/