O BRASIL FAZ PARTE DO MUNDO

Afinal, a crise vai ou não “estourar” no Brasil? Não é preciso ser Lênin nem mãe Diná para afirmar que a crise é inevitável, num mundo em que a fome atinge um em cada sete seres humanos, em que nos países centrais as populações tomam as ruas em manifestações contra o capital e em que mesmo as ferozes ditaduras do Oriente Médio sucumbem aos golpes assestados pelos movimentos de massa. Mas não é ainda possível dizer quando a crise virá, por uma série de razões que concorrem para tornar o quadro “doméstico” bastante complexo. Entre elas:

A febre especulativa propiciada pela Copa do Mundo de 2014 e pelos Jogos Olímpicos de 2016, com a hiperatividade da construção civil e setores relacionados que geram empregos e uma falsa sensação de “prosperidade” (como aconteceu antes, por exemplo, na Espanha e na Grécia);

A festa de capitais especulativos atraídos pelos mais altos juros praticados no planeta e a de investimentos diretos que aproveitam um quadro de contenção dos movimentos de trabalhadores e conseqüente arrocho promovidos pelo lulismo;

Uma política de movimentação da economia mediante o endividamento crescente da população;

Políticas de compensação social, como o Bolsa Família, que beneficiam cerca de 60% da população e permitem o ingresso de novos contingentes populacionais na esfera do consumo;

A entrega da Amazônia e dos recursos naturais à sanha do capital financeiro e do agrone-gócio (o maior responsável individual pelo crescimento do PIB brasileiro nos últimos anos).

Mas o mero ato de elucidar os principais componentes da “calmaria” brasileira permite, ao mesmo tempo, estabelecer os seus limites:

A especulação imobiliária propicia uma sensação apenas aparente de crescimento. Após a “febre” dos jogos, sobram as imensas dívidas, que incluem centenas de bilhões de reais gastos na construção e melhoria dos estádios e obras públicas. Perguntem ao povo grego o que isso significa. No Brasil, esse quadro é agravado pela dispensa de licitações para fechar contratos, sob o pretexto da “urgência” – o que multiplica quase ao infinito as possibilidades de assalto ao erário. Isso se combina com a brutalidade policial cada vez maior para remover o “lixo humano” das áreas valorizadas, o que acentua a tensão e os riscos de uma explosão social.

A entrada do capital especulativo nos níveis praticados na última década depende da capacidade do país manter os juros nas estratosferas. Mas a remuneração escandalosa do capital especulativo só pode ser garantida mediante a destruição da indústria nacional, que não tem como suportar as mais altas taxas de juros do planeta. O resultado, mostra um estudo realizado por Osvaldo Coggiola, é que entre 1985 e 2008, a indústria brasileira reduziu em 17% sua participação no PIB (de 33% para 16%). Entre 2004 e 2010, o percentual da indústria na pauta exportadora caiu de 19,4% para 15,8%: a relação manufaturas/exportações totais, que atingiu 60% na década de 1980, hoje se situa em 40%. O superávit comercial de US$ 24 bilhões na área de produtos industriais, em 2004, se transformou, em 2010, em um déficit de US$ 36 bilhões. Cerca de 60% das empresas brasileiras estão nas mãos de estrangeiros. As remessas de lucros ao exterior superam os US$ 34 bilhões (74% correspondem a empresas estrangeiras que fizeram investimentos diretos). Nesse quadro de destruição da economia real, há uma limitação objetiva à capacidade de manter a taxa de remuneração do capital nas estratosferas.

Se a desindustrialização tende a diminuir a oferta dos empregos mais qualificados, a política de estimular a economia mediante o endividamento é receita certa de catástrofe, como mostrou a crise imobiliária estadunidense. Segundo um estudo da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, em outubro de 2011, 64% das famílias que vivem nas 27 capitais estavam endividadas (88% em Curitiba e 86% em Florianópolis). No último ano, o valor médio da dívida média familiar aumentou quase 18%: de R$ 1.298 para R$ 1.527 mensais. O total da dívida das pessoas físicas chegou a R$ 653 bilhões (em dezembro de 2009, era de R$ 485 bilhões). O que acontecerá quando uma parte significativa das famílias notar que não terá como honrar os compromissos?

As políticas de compensação sociais mobilizam menos de 0,5% do PIB (cerca de R$ 15 bilhões anuais). Para efeito de comparação: o Brasil gastou, nos últimos anos, em média, mais de R$ 200 bilhões anuais apenas em juros e amortização da

dívida pública. Entre 1995 e 2010 (FHC e Lula), os gastos com a dívida somaram mais de R$ 6,8 trilhões (dois PIBs). No final do governo Lula, o Bolsa Família deixou 16,2 milhões de pessoas em situação de miséria absoluta (renda mensal inferior a 40 dólares), mais de 50% dos quais no nordeste. Dilma lançou o programa Brasil sem Miséria dirigido a esse setor, dotado de pífios R$ 1,2 bilhão. Se as compensações atenuam a miséria, estão muito longe de resolver qualquer problema real. Os recursos do país que poderiam construir escolas, hospitais e obras de infraestrutura que permitiriam dispensar o Bolsa Família, servem para engordar os cofres do capital financeiro. De fato, a desigualdade e a miséria são perpetuadas, mas maquiadas por um verniz “humanista”.

Finalmente, a exportação de commodities agrícolas e minerais, combinada com a valorização do Real frente ao dólar (40% desde 2006) são os maiores responsáveis pelo aparente “boom” econômico e os grandes superávits comerciais, fazendo do agronegócio o grande herói nacional. Na realidade, nos últimos cinco anos as im- portações de produtos industrializados mais do que duplicaram (conseqüência e agravante do já mencionado sucateamento da indústria nacional), ao passo que as exportações se concentram, cada vez mais, em produtos primários (de baixo valor agregado). Além disso, a exportação das commodities depende, principalmente, do crescimento da economia chinesa – que também sofre os efeitos da crise mundial – e da exploração predatória dos recursos naturais brasileiros, o que pode eventualmente incluir a destruição de culturas de povos originários da Amazônia.

Os limites da “calmaria”, portanto, estão definidos. Há os dados imponderáveis da vida política, especialmente o estado de espírito dos trabalhadores. Mas também aí o tempo joga contra o governo Dilma: nos seus primeiros dez meses, Brasília passou por cinco crises de gabinete provocadas por denúncias e indícios de corrupção, a começar pela demissão de Antônio Palocci (Casa Civil) até a de Orlando Silva (Esporte), integrante de um partido que joga na lama o nome e a bandeira do comunismo. Dilma está infinitamente distante de exibir o carisma e a capacidade de articulação política de Lula. Chefe de um governo desmoralizado e colocada diante de mobilizações que tendem a se multiplicar (como demonstraram as recentes greves dos correios, dos bancários e dos professores de universidades federais), Dilma eventualmente sentirá sobre os seus ombros que o Brasil, afinal, faz parte do mundo.

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novembro 2011│caros amigos

*José Arbex Jr. é jornalista.

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