Por trás da cortina de fumaça do bolsonarismo
Michael Boccadio – professor e militante do PCB – Ceará
1. Os primeiros sessenta dias do governo Bolsonaro ou cinquenta tons de laranja
Sancionado pelas eleições de 2018, o Golpe de abril de 2016 agora veste o manto da institucionalidade constitucional para garantir sua inconstitucionalidade congênita. Exaltando a Constituição em seu primeiro discurso após o resultado das eleições, Bolsonaro, a cada ato seu, faz dos princípios constitucionais letra morta. Alegando lutar contra a “ideologia de partido” e de “gênero”, seus asseclas no ministério da Educação e da Família e Direitos Humanos declaram em alto e bom som a sua política do Santo Sínodo e o retorno do Tribunal do Santo Ofício, através de políticas como o Escola “Sem Partido”.
Mas, certamente, a contradição mais flagrante do bolsonarismo – contradição esta servida com suco de “laranja” – é a sua propaganda de combate à corrupção com a qual se elegeu e a sua prática política essencialmente corrupta. Esta prática, para além da contradição fiscal dos assessores de seus filhos e de empregados do próprio Presidente Bolsonaro, aparece relacionada também com a própria moralidade, no mínimo duvidosa, de grande parte do seu ministério.
Mas enganam-se aqueles que acham que este espetáculo de horrores com o qual nos assaltam todos os dias há quase três meses seja algo totalmente aleatório. As notícias que mais repercutem nas redes sociais e que imediatamente se transformam em memes e hastags, por mais que nos dividam entre o asco e o riso, exercem um efeito de cortina de fumaça, encobrindo a repercussão sobre o conjunto de políticas que realmente formam o núcleo do seu programa de governo.
A afirmação de seu cumprimento efetivo teve seu anúncio com o minúsculo discurso presidencial em Davos. Este programa começa a ser efetivado agora com a apresentação do atual projeto de Reforma da Previdência (20/02), que, na sua essência, propõe a alteração do regime de repartição para o regime de capitalização, além de estender a idade mínima e o tempo de contribuição. Entrando em seu terceiro mês de mandato e aproveitando o período de Carnaval, o neoliberalismo do governo Bolsonaro, capitaneado pelo sr. Paulo Guedes, finalmente coloca o seu “bloco na rua” e canta uma marchinha nada popular: “ala-ô ôoo, ôoo! A Capitalização da Previdência chegô ôooo, ôooo!”
A Reforma da Previdência é o primeiro grande teste do Governo Bolsonaro, no sentido de atestar sua capacidade em apresentar-se como liderança para os grupos políticos e empresariais que construíram o Golpe de 2016 e apoiaram sua candidatura; ao mesmo tempo, ela também é o primeiro grande teste das próprias organizações da classe trabalhadora brasileira em seu enfrentamento com as forças golpistas neste novo período. A vitória da esquerda pode significar o primeiro passo para a rearticulação em direção a uma unidade sócio-política capaz de apresentar-se como alternativa para os problemas trazidos pela crise, ao passo que sua derrota, além de trazer sérios prejuízos para os trabalhadores brasileiros, identifica, pelo menos neste momento, a incapacidade da esquerda em se apresentar a estes como porta-voz dos seus interesses.
2. A criação artificial de um fantasma Um dos expedientes mais comuns deste governo para se agredir as liberdades constitucionais através da própria estrutura do Estado Constitucional é a criação de fantasmas artificiais, ou seja, de criar falsos problemas que justifiquem a criação de regras de exceção na qual, em outras circunstâncias, não se justificariam. O Governo Bolsonaro usa este expediente da forma mais despudorada em todas as suas áreas de atuação, contudo, certamente onde vemos ele ter maior repercussão é no debate sobre a chamada “Escola Sem Partido”, em que o fantasma da “ideologia de partido” aparece conjurado nas escolas de ensino médio, para justificar o cerceamento do pensamento crítico nas escolas (sobre este assunto falaremos com mais detalhes em ensaios posteriores).
O fantasma aqui, no entanto, não foi criado pelo Governo Bolsonaro, mas bem antes, é o fantasma do “rombo” da Previdência. O objetivo deste argumento é justificar a necessidade de substituir o modelo de repartição até hoje vigente na Previdência pelo modelo de capitalização. Mas afinal, existe ou não existe o tal “rombo” na Previdência? Qual a diferença entre repartição e capitalização? Seria a capitalização a “única” opção para tampar o tal “rombo”?
3. O Fantasma do “rombo” na Previdência
Vamos começar falando sobre a concepção de Previdência Social que está presente na Constituição Federal de 1988. Vemos este assunto aparecer pela primeira vez no Art. 6º, quando estabelece quais são os direitos sociais previstos pela CF: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. (Art.6º CF, última alteração em 15/09/2015 através da EMC 090).
Deve-se lembrar que direitos sociais são obrigações que o Estado assume diante da chamada “sociedade civil”. Desta forma, a Previdência Social, nos termos da CF, aparece como uma obrigação do Estado para com os cidadãos brasileiros. Neste sentido, ela relaciona-se à Seguridade Social, isto é, ao “conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinada a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (Art.194º CF).
Mas como a CF garante a viabilidade financeira deste direito? Afinal, não há como garantir saúde e aposentadorias sem garantir a infraestrutura dos hospitais, pagamento de profissionais da saúde, material hospitalar, leitos, etc. e a sua manutenção. Não há aposentadorias sem o pagamento dos benefícios dos aposentados.
Neste mesmo artigo (item VI) se estabelece a “diversidade da base de financiamento”, para a formação do fundo de investimentos que garanta a Seguridade Social. O que isso significa? Significa que o Estado assume a função de “mediador”, recolhendo da sociedade em suas diferentes classes (basicamente patrões e empregados formais) os investimentos necessários para a formação do fundo que garanta os direitos sociais previstos na Seguridade Social e redistribuindo através das políticas públicas previstas por esses serviços (saúde, previdência e assistência social).
A concepção de Seguridade e Previdência Social contidas aqui nos artigos 6º e 194º tem suas origens nas concepções bismarquianas, beveridgeana e keynesianas. Do modelo bismarquiano, a CF de 1988 adotou exatamente o sistema de repartição, isto é, a divisão no financiamento para a Seguridade Social entre Estado, empresários e os próprios trabalhadores, restringindo este direito apenas às categorias de trabalhadores formais. Do modelo beveridgeano, a CF absorveu a noção da Seguridade como um direito social e por isso o seu caráter universal; não obstante, esta universalidade esteja restrita apenas a uma parcela dos trabalhadores. Do modelo keynesiano, a utilização econômica das políticas de Seguridade Social para garantir o aumento gradual do consumo, mesmo em períodos de altíssimas taxas de desemprego para garantir o desenvolvimento da economia.
De qualquer forma, a forma de arrecadação do dinheiro para cobrir os direitos previstos pela Seguridade Social prevista no Art.195º, onde lemos no §1o que: “As receitas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios destinadas à seguridade social constarão dos respectivos orçamentos, não integrando o orçamento da União”. Como uma obrigação do Estado, cabe a este a garantia de que o dinheiro destinado à Seguridade Social – e nela, a Previdência – tenha um fluxo de caixa permanente entre a arrecadação e o momento da entrega do benefício, de modo que não seja comprometido pelas dívidas e demais obrigações do Estado. Daí sua separação do Orçamento da União.
Vê-se logo que, quando olhamos para o texto da CF, desvanecem-se duas sombras: a) a primeira é a de que a Previdência é um gasto exclusivamente do Estado. Como vemos, o orçamento para a Previdência que aparece incluso no orçamento da Seguridade Social é feito através da divisão (daí o nome de modelo de repartição) entre Estado, empresários e trabalhadores formais; b) a de relacionar o orçamento da Previdência com o orçamento das despesas da União. Como se vê, o dinheiro da Previdência deve vir do orçamento da Seguridade Social e não do dinheiro destinado ao pagamento de dívidas e demais obrigações do Estado, que possui um orçamento à parte.
Mas se a CF regula que o dinheiro para a Seguridade Social (e com ela a Previdência) está preservado, de onde vem toda essa história de “rombo” e de “déficit” da Previdência? Ela vem do fato de que há no Estado Brasileiro uma contradição que é da natureza de toda sociedade burguesa: a contradição entre aquilo que a norma do Estado Constitucional deve necessariamente prescrever e a sua natureza de classe, no caso, o seu caráter burguês. Neste sentido, apesar de o Estado brasileiro assegurar a Previdência e demais direitos da Seguridade Social como direitos sociais e, por isso, afirmar sua obrigação para com seu cumprimento, este mesmo Estado, ao longo dos anos, criou uma série de dispositivos que redirecionam o orçamento da Seguridade Social para outros objetivos que não aquilo ao qual este originalmente se destina. É assim que, pela sua própria natureza burguesa, o Estado brasileiro desfaz, na prática, as leis que ele mesmo cria. Vamos ver alguns destes principais dispositivos.
Nos anos de 1990, com a criação do Plano Real, o Governo Federal retirou 20% do orçamento da Seguridade Social para a Desvinculação dos Recursos da União (DRU), um mecanismo que permite que o Governo Federal aplique os recursos deste fundo em qualquer despesa considerada prioritária, mas, principalmente, na formação de superávit primário, ou seja, para o pagamento dos juros da dívida pública! Mas a sangria não para por aí. Só entre 1995 a 2006, apenas 52,49% (isto é, pelo menos a metade do dinheiro previsto do orçamento com Seguridade Social) foram aplicados em saúde, previdência e serviços sociais; 47,51% foram repartidos entre a DRU, pagamentos de pensões e aposentadorias dos Servidores Públicos aposentados e para pagamentos de contas de ministérios que não compõem o Sistema de Seguridade Social.
De acordo com a Constituição, o Regime Próprio de Previdência Social (RPPS – que é o sistema previdenciário dos servidores da União dos estados e dos municípios, inclusive do Legislativo e do Judiciário) é um regime de cada ente federativo, de filiação obrigatória para os servidores públicos efetivos. É um fundo que vem das próprias categorias do funcionalismo público, mas que também aparece relacionado ao Orçamento Financeiro da União e, em caso de déficit é este e não o Orçamento da Seguridade Social, quem deve cobrir a diferença.
Assim, há décadas, o Governo Federal destina parte do orçamento que deveria não só financiar a aposentadoria dos trabalhadores, mas também a saúde pública (que sofre à míngua) e à assistência social; para pagar as dívidas que o próprio Estado não é capaz de pagar no seu orçamento. E por que este não pode equilibrar suas contas? Por conta da corrupção? Em parte, leitor. A verdade é que, se compararmos, mesmo o montante total da corrupção em nosso país é uma parte considerável, mas não determinante para o grande desequilíbrio fiscal do Estado brasileiro. Praticamente, a maior parte das receitas do Estado são destinadas à formação do chamado superávit primário, ou seja, ao pagamento de juros da dívida pública.
A prerrogativa que levou o Estado brasileiro a adotar essa postura e a criar mecanismos que, na prática, rasgam a própria Constituição e criam uma verdadeira confusão na arrecadação e no equilíbrio de suas contas, relaciona-se a um critério político e não puramente técnico. A formação do superávit primário é a pedra de toque da política fiscal e econômica do Estado brasileiro. Ou seja, o compromisso das receitas do Estado é para com o pagamento dos juros da dívida pública e que se dane todo o resto e com esse “resto” inclua-se: saúde, educação, moradia, e os demais serviços que a CF afirma serem OBRIGAÇÃO do Estado! A contradição insolúvel do Estado Burguês de ordem constitucional aparece no Estado brasileiro à medida em que este afirma que os direitos sociais são uma obrigação do Estado (e por isso devem ser prioridade nos destinos dos seus recursos) e no compromisso político que o Estado brasileiro assume diante da divisão internacional do trabalho, através de sua política de prioridade para o pagamento da sua dívida pública. No final, a Constituição vira letra morta e preponderam as escolhas políticas do Estado, e, com isso, os interesses das classes dominantes não só do Brasil, mas do imperialismo capitalista como um todo.
A orientação de formação do superávit primário vem de uma resolução internacional chamada “Consenso de Washington” que passou a ser a cartilha adotada para os chamados “países em desenvolvimento” (que na verdade são os países da periferia do capitalismo internacional) como fundação de suas políticas de Estado. Basicamente esta resolução obriga estes a comprometerem sua arrecadação bruta (isto mesmo, o seu próprio PIB) ao pagamento de juros da dívida pública como condição sine qua non para a garantia de investimentos do capital internacional nestes países.
Assim, trabalhador brasileiro, você corre o risco de perder a garantia do direito à aposentadoria, não porque você vive mais, não porque a população brasileira cresceu de tamanho, não pelo fato de que o pobre governo não sabe de onde tirar dinheiro para pagar os aposentados que já existem e mais aqueles que virão; mas simplesmente por uma decisão política de direcionar todas as formas de arrecadação fiscal para o pagamento dos juros de uma dívida que ninguém tem sequer ideia de há quantas anda. Em quase trinta anos o Brasil nunca fez uma auditoria sobre o montante da sua dívida pública, nem sequer cogitou (nem nos piores momentos da crise mundial) a alteração da taxa do superávit primário.
Mas não para por aí! Para além dos mecanismos que reorientam o orçamento destinado à Previdência, Saúde e os serviços de assistência social, de fato, temos, a partir de 2015, de um lado, uma diminuição gradual da arrecadação fiscal e, do outro, uma diminuição gradual do número de trabalhadores formais que contribuem com a Previdência. Não obstante, esta redução tem haver fundamentalmente com o aumento expressivo das taxas de desemprego cuja explicação, entre outros motivos, reside na falta de investimento em infraestrutura e de investimentos na indústria nacional.
Mas, afinal, existe ou não existe o tal “rombo”? Não leitor, não existe, mas não significa dizer que o Orçamento da Seguridade Social e nele o fundo para a Previdência Social vá bem. No entanto, os problemas listados a seguir encontrariam suas soluções a partir de duas grandes medidas: a) uma reorientação da política econômica no sentido de se criar a médio e longo prazo investimentos em infraestrutura, a reconstrução e ampliação do parque industrial nacional, aumentando assim a taxa de empregos formais; b) a reorientação do sistema financeiro de modo a não haver desvios de recursos entre o Orçamento da Seguridade Social e o Orçamento Financeiro da União, deixando claro qual a fonte para cada orçamento. Todavia, essas duas medidas esbarram em duas grandes dificuldades de ordem política: a) a decisão de rever e eliminar a política de formação de superávit primário e b) o redirecionamento dos investimentos prioritários do Estado que hoje se concentram em três grandes setores: 1) os bancos, 2) o agronegócio e 3) o mercado financeiro, para investimentos relacionados à ampliação da produção e a ampliação e melhoria dos serviços públicos.
Claro que, relacionados a estes, há outras medidas necessárias que são também importantes, tais como a reforma da distribuição fundiária no campo e na cidade, a taxação das grandes fortunas, uma política efetiva de cortes de privilégios de setores como o Legislativo, o Judiciário e os oficiais militares de alta patente, por exemplo. Estamos apenas identificando quais as duas ações que teriam impacto na política previdenciária, trazendo benefícios para os trabalhadores sem apelar para uma mudança no modelo de financiamento. A debilidade técnica é, portanto, mais um fantasma artificial, um falso problema destinado a encobrir o problema real: a intencionalidade política que reside na bagunça fiscal onde se encontra o Brasil de hoje.
4. Pequena Memória para um tempo sem Memória: o avanço do neoliberalismo no setor previdenciário nos últimos vinte anos
Talvez o leitor mais antenado com os comentaristas do jornal da Globo, ou da rádio Jovem Pan, ou da Veja, ou do MBL (estas grandes “inteligências” do pensamento social brasileiro!), possa me contra-argumentar afirmando que, se é verdade o que viemos afirmando até aqui, por que só agora alardeia-se o “rombo” da previdência? Por que esse clima de urgência? Por que esta Reforma e apenas esta deve ser aprovada a qualquer custo?
Na verdade, a Reforma da Previdência foi um tema que SEMPRE esteve presente na história dos últimos vinte anos na vida política brasileira. Em seus oito anos (1994-1998 e 1999-2002), o Governo Fernando Henrique, para além da criação da DRU, também propunha uma reforma previdenciária da qual acabou sendo aprovada apenas a Emenda Constitucional nº 20. Entre as mudanças do sistema previdenciário previstas na EC20, estava, basicamente, o aumento do limite do tempo de contribuição, de modo a impedir a participação de pessoas com idade inferior a 50 anos (uma delas foi, inclusive, o próprio ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso que, esquecendo a própria forma como tinha se aposentado, qualificou estas pessoas de “vagabundos”) e do aumento idade mínima para recebimento do benefício. O limite por tempo de serviço determinado pela EC20 foi de 35 anos de contribuição para os homens e 30 anos para as mulheres. No caso da aposentadoria por idade, estabelecia-se 65 anos para os homens e de 60 para as mulheres.
O avanço no sentido da capitalização, apesar de sempre ter sido o grande objetivo dos economistas neoliberais não pôde ser levado ao cabo na era de ouro do neoliberalismo no Brasil, por um elemento fundamental: a mobilização dos setores de esquerda. Durante esses oito anos, o Governo Fernando Henrique enfrentou forte oposição dos setores de esquerda, especialmente liderados pelo Partido dos Trabalhadores que fez, na época, duras críticas às mudanças instituídas pelo Governo Federal. Curiosamente, é justamente em seu primeiro mandato que os governos petistas ampliam as mudanças na Previdência indo no mesmo sentido do governo anterior, em especial, no setor público.
Não obstante, nenhum dos governos anteriores, nem mesmo o Governo Temer, propunha diretamente a mudança do regime de repartição para o regime de capitalização. A verdade é que, gradualmente, durante estes últimos vinte anos, a Previdência foi sendo paulatinamente cerceada, especialmente através do aumento da idade mínima, do tempo de contribuição e da tendência em equiparar as taxas de aposentadoria das diferentes categorias de trabalhadores (presente na Reforma do Governo Temer). Não obstante, a classe empresarial brasileira, atualmente, não se conforma mais em se ver privada deste “mercado”, é preciso, pois, tirar de uma vez a Previdência das mãos do Estado e entregá-la sem perda de um minuto para a iniciativa privada! Eis aí que o neoliberalismo agora na versão Paulo Guedes, retira de vez o seu capuz e apresenta a sua verdadeira reforma: o regime de capitalização.
5. O regime de capitalização e a Reforma da Previdência do Governo Bolsonaro
Até aqui viemos desmistificando o mito do “rombo” na Previdência para entender como o “Mito” (sic!) apresenta sua proposta. O grande diferencial qualitativo entre esta e todas as outras propostas de alteração da Previdência está na mudança substancial do regime de repartição hoje predominante na nossa CF para o regime de capitalização. Mas, afinal, o que é regime de capitalização? Em que ele se diferencia do regime atual? A capitalização tem como pressuposto uma relação individual entre a contribuição e o benefício do contribuinte. Assim, cada trabalhador que contribui com a Previdência teria uma conta individual, onde, automaticamente, depositaria no fundo que, mais tarde, seria a sua aposentadoria. Aqui aparece um elemento importante: quem oferecem as contas que servirão de aposentadoria? Os bancos, as seguradoras, os fundos privados de pensão, ou seja, a iniciativa privada! Mais uma vez, o Estado aqui se desobriga da responsabilidade para com um DIREITO SOCIAL, ou seja, para com sua obrigação para com a sociedade, alegando estar “poupando gastos”, ou seja, deixando de fazer aquilo que a Constituição determina que é aquilo que deve fazer.
Voltemo-nos agora para a relação entre o contribuinte e a entidade bancária responsável pela gestão do seu fundo de aposentadoria. Você acha mesmo, leitor, que, na situação atual, onde todo o sistema bancário brasileiro é monopolizado por um punhado de bancos que, literalmente, podem ser contados nos dedos da mão, quais as vantagens ou que tipo de garantias você terá na gestão do seu dinheiro? Para além disso, existe outro aspecto que, certamente, o mais perverso desta reforma: as restrições para o recebimento integral de tudo que você, trabalhador, tenha contribuído durante toda a vida. Se, a sua contribuição é individual e não mais garantida pelo conjunto da sociedade (patrões, trabalhadores e Estado), ou seja, se a formação do seu fundo de aposentadoria é agora produto da negociação entre você e os bancos (da mesma forma que as leis trabalhistas são esquecidas e hoje predominam os “acordos” entre patrão e empregado), o Estado é quem regula aqui a forma como você receberá o dinheiro que você aplicou. E mais… também quanto você pode dispor desse benefício… mas peraí? Este não era um investimento privado?
De acordo com a nova proposta, extingue-se a aposentadoria por tempo de contribuição, estabelecendo a idade mínima que seria de 65 anos para homens e de 60 para as mulheres, com 20 anos de contribuição para receber até 60% do salário mínimo e mais 2% para cada ano que exceder os vinte anos necessários para dar entrada no benefício, devendo o contribuinte, conseguir os 100% após com quarenta anos de contribuição! Além disso, há o chamado “gatilho de idade”, ou seja, a idade mínima para a aposentadoria vai mudar sempre que a expectativa de sobrevida do idoso aumentar. Desta forma, se a estimativa de idade subir um ponto pela estimativa do IBGE, a idade mínima de aposentadoria também subirá um ponto.
Os trabalhadores que hoje são contribuintes jamais se aposentarão com a idade prevista hoje porque, quando se aposentarem, a expectativa de vida terá mudado e, consequentemente o gatilho de idade alterará a idade mínima que está hoje. Já se prevê, por exemplo, que daqui a quatro anos, o teto será de 66 anos para homens e 63 anos para as mulheres, imagine então daqui há dez ou vinte anos? Para além das dificuldades para a obtenção integral do benefício há o problema intergeracional, já que, com o regime de capitalização, aqueles que contribuem com a previdência hoje terão de acumular, na capitalização, a própria aposentadoria e continuar contribuindo para com as aposentadorias anteriores que ainda estão sob o regime de repartição, por um período que pode durar de 20 a 30 anos.
Poderíamos aqui ainda nos alongar em vários outros aspectos desta proposta, mas acreditamos que estes são fundamentais para entender qual a gravidade das mudanças previstas por mudanças que, em si, são inconstitucionais por que a Previdência deixa imediatamente de ser um direito social e, por isso, uma obrigação do Estado, e o trabalhador é deixado a própria sorte, tendo ainda que cumprir uma série de encargos para receber seu próprio dinheiro, tendo de lutar, sozinho, contra o sistema bancário e os abusos fiscais do Estado.
Na mitologia grega, existia uma passagem que assombrava os navegantes, pois era habitada de um lado e do outro dela, por dois grandes monstros: Cila, uma enorme serpente de várias cabeças que se escondia sob a figura de uma donzela e Caríbdis, que tinha uma enorme boca exposta para fora do mar. Aqueles que, tendo caído na armadilha da donzela, conseguissem escapar e fugir de Cila, inevitavelmente caíam nas presas de Caríbdis, como o herói Odisseu e seus tripulantes. Com a implantação do regime de capitalização, o contribuinte que navega rumo à aposentadoria é como o navegante que ruma em direção à passagem entre dois grandes monstros: os bancos e as onerações fiscais, sabendo que não será devorado apenas por um, mas pelos dois monstros simultaneamente.
6. Só a luta muda a vida? Sim! Hoje, ontem e sempre!
É preciso aqui leitor, já caminhando para a nossa conclusão, entender que as leis, numa sociedade de classes, não são o produto do “consenso”, mas antes, produto do conflito das classes sociais que se colocam em luta. Quando as leis, num determinado período, favorecem mais uma classe do que a outra, podemos afirmar que ela representa o momento em que a classe favorecida encontra-se melhor organizada enquanto a outra, de alguma forma, fora desestabilizada e dividida. Este quadro, no entanto, não é estático, ele é parcial e transitório e pode ser alterado, tão logo a correlação de forças esteja em favor desta ou daquela classe.
Em nossa situação atual, a ascensão do bolsonarismo e o aparecimento deste conjunto de reformas de ordem reacionárias que não só estão em contradição com os interesses mais imediatos dos trabalhadores, mas com os princípios do próprio Estado constitucional, é a síntese da hegemonia política das forças golpistas que triunfaram em 2016, como, ao mesmo tempo, representa a desestabilização das forças de esquerda que, há trinta anos, foram fundamentais na inclusão dos direitos constitucionais que hoje estão diretamente ameaçados. Assim, a principal razão para que, só agora, o Governo Federal tivesse ousadia e peso político suficiente para propor uma reforma tão radical no regime da Previdência, que, como dissemos no início, joga no lixo os princípios constitucionais que este governo alegou defender, reside num elemento essencial: a desestabilização, divisão e falta de programa das forças de esquerda no Brasil hoje.
Diferente do que afirmam as correntes petistas, a ausência programática da esquerda não se deve à prisão do principal líder do Partido dos Trabalhadores, impossibilitado de competir nas eleições presidenciais de 2018. O PT, há décadas, renunciou a opção de ter um programa político que apontasse uma alternativa de esquerda (não falemos nem em alternativa socialista, já que isso seria pedir demais para os padrões petistas) para a crise econômica e social em que o país se encontra. Sua escolha nos Governos Lula e Dilma, foi a de operar como um “mediador”, isto é, como um elemento conciliador na construção do que o próprio Lula havia chamado de “Pacto Social”.
A impotência hoje das organizações de esquerda em apresentar suas propostas aos próprios trabalhadores como alternativa à crise, deve-se, em parte, ao baixo nível de politização das massas de trabalhadores (que envolve uma série de motivos dos quais não poderemos desenvolver aqui), em parte pela própria institucionalização de várias organizações de esquerda, ocorridas principalmente durante as gestões petistas, o que trouxe uma situação aonde muitos trabalhadores não se reconhecem em várias das organizações que deveriam representá-los. Isso não é motivo para nos conformarmos e afirmarmos a inevitabilidade desta e de outras reformas que ainda estão por vir (a reforma tributária, por exemplo, também está para ser apresentada ainda no mês de março deste ano).
Mesmo em circunstâncias tão adversas, as forças de esquerda que se mantiveram no campo da luta popular, em inúmeros momentos, conseguiram construir várias frentes de articulação e, quando foram para as ruas, encontraram resposta ao seu apelo nas massas, impulsionando importantes lutas, cuja maior expressão nestes últimos anos, certamente, foi a Greve Geral de 30 de Junho de 2017, mostrando que esta forma de luta não só é possível ,mas fora aquela que, até o momento, mas positivamente convergiu para o encontro das organizações de esquerda e as massas trabalhadoras. O que significa dizer que a situação de distanciamento entre grande parte dos trabalhadores e as suas organizações pode ser revertida, na medida em que os movimentos, entidades, partidos e demais organizações que se colocam no campo da luta social saibam dialogar com as massas trabalhadoras, agindo na elevação do seu nível de consciência.
Se a resistência imediata aos ataques que a classe trabalhadora vem sofrendo no período que se seguiu ao Golpe de Abril de 2016 é um elemento importante, necessário e urgente (dramaticamente urgente), por outro lado, ela não deve resumir-se à ação de resistência. A unidade deve ter continuidade no sentido de se constituir a formação de um grande programa nacional, para o qual possam confluir, não apenas as organizações de esquerda, seus partidos, movimentos e entidades, mas, para onde venham a convergir os trabalhadores e trabalhadoras de todo o país. Em 1848, ao comentar sobre a derrota trágica das forças revolucionárias francesas no massacre de junho de 1848, Marx não encarou aquela derrota como uma como algo definitivo, mas apenas, como o prelúdio da verdadeira luta, exatamente porque entendia que derrota e vitória na luta de classes, não são senão, situações temporárias.
As palavras de Marx aparecem para nós vindas de mais de cento e setenta anos de distância, nos lembrando que a hora final ainda não soou:
“A REVOLUÇÃO MORREU? SIM! VIVA A REVOLUÇÃO QUE AMANHÃ NASCERÁ DAS SUAS CINZAS!!!!” (K. Marx, As Lutas de Classes na França)