EUA e a opção mercenária da Blackwater
Consciente de que o Congresso dificilmente autorizará uma aventura militar que possa causar muitas vítimas americanas e que os militares colombianos e brasileiros se opõem a uma agressão armada contra a Venezuela, a equipe do presidente Donald Trump parece inclinada a financiar parcialmente um exército mercenário.
O diretor da companhia militar norte-americana Blackwater, Erik Prince, vem desenvolvendo nos últimos meses um plano para formar um exército privado com o objetivo de derrubar o presidente Maduro, informou a Reuters na terça-feira. Esta pretendida força militar seria composta de quatro ou cinco mil mercenários contratados em nome da oposição liderada por Juan Guaidó e recrutados entre paramilitares colombianos e de outros países da região.
Para especialistas em segurança, o plano de Prince é “politicamente implausível e potencialmente perigoso” e “pode desencadear uma guerra civil”, acrescenta a agência anglo-americana. Prince procura financiamento e apoio político para esta iniciativa no ambiente do presidente dos EUA, Donald Trump, e entre milionários exilados venezuelanos, mantendo várias reuniões privadas nos EUA e na Europa.
Uma delas ocorreu em meados deste mês de abril, dias antes da frustrada tentativa de golpe da ultradireita venezuelana em 30 de abril. Nesse mesmo dia, o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, não descartou (diante da Fox Business Network) a possibilidade de uma “ação militar” na Venezuela se a situação “exigir” isso.
Prince contempla uma força formada por peruanos, equatorianos, colombianos e pessoas de língua espanhola, pois considera que esse tipo de soldados seriam mais aceitáveis politicamente (para os estadunidenses, que ainda se lembram das bolsas pretas em que os soldados retornaram do Vietnã) do que contratados nos EUA.
Pompeo fez esta declaração depois de ter lançado outra mentira – uma nova farsa – na CNN. Em vez de aceitar que o golpe induzido pelos EUA fracassou, ele apontou que o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, havia planejado deixar o país em direção a Cuba, mas a Rússia o dissuadiu. Em resposta, Maduro respondeu: “Sr. Pompeo, por favor, que falta de seriedade! […] quanta mentira e manipulação neste golpe de Estado”.
O porta-voz de Guaidó, Edward Rodriguez, negou que a oposição venezuelana manteve conversações com Prince sobre suas operações, e o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, Garrett Marquis, evitou comentar depois de ser questionado sobre essa iniciativa.
Um dos argumentos de Prince é de que a Venezuela precisa de um “acontecimento dinâmico” para romper o impasse em que o país se encontra desde janeiro, quando Guaidó se autoproclamou presidente encarregado depois de declarar Maduro ilegítimo. Agora, soma-se outro argumento: os venezuelanos sozinhos não podem fazê-lo.
Segundo fontes, para financiar seu plano, Prince está procurando 40 milhões de dólares de investidores privados e quer se apropriar dos bilhões de dólares em produtos venezuelanos que foram congelados em todo o mundo devido às sanções impostas contra o governo constitucional venezuelano. Ele quer piratear os piratas.
No entanto, não está claro como a oposição venezuelana poderia acessar legalmente esses ativos. Prince disse às pessoas com quem se encontrou, segundo a Reuters, que acredita que Guaidó tem autoridade para formar sua própria força militar porque ele foi reconhecido internacionalmente como o presidente legítimo do país.
Blackwater, transnacional do crime
A Blackwater, uma multinacional militar, vem atuando no mundo há duas décadas. É a empresa de segurança mais poderosa do planeta, acumulando denúncias de crimes cometidos no Oriente Médio e casos de corrupção nos Estados Unidos. Radiografia de um negócio em expansão, impulsionado pela Casa Branca.
Nas últimas duas décadas, impunemente, com tecnologia de ponta, montada sobre mercenários de diferentes nações, a Blackwater é uma das maiores empresas de segurança internacional, fundada em 1997 por Erik Prince e Al Clark. Possui dezenas de denúncias contra ela, por cometer crimes, incorrer em abusos flagrantes de autoridade e participar de contratos espúrios concedidos pelo Pentágono e pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos.
Renomeada como uma Academi, a Blackwater surgiu em pleno avanço neoconservador nos EUA, liderado pelo presidente George W. Bush (2001-2009). A transnacional, fundada sob a bênção da extrema direita católica norte-americana, entrou nas grandes ligas com a administração de Bill Clinton na Guerra dos Bálcãs nos anos 90.
Os neocons, que vinham reforçando seu poder durante os mandatos de Ronald Reagan e Bush pai, encontraram na administração republicana do empresário petroleiro terreno fértil para a execução do Projeto para o Novo Século Americano (PNAC, por sua sigla em inglês), que, entre outros pontos, endossou a desregulamentação total do Estado e apontou todas as suas armas contra essa vaga definição de “terrorismo internacional”, localizado no Oriente Médio e em meio à comunidade muçulmana.
Um relatório de Sudestada observa que, no momento, BW dava seus primeiros passos no lucrativo negócio da segurança privada, pondo à disposição de Washington os primeiros “contratados”, que para 2001 e 2003, com as invasões do Afeganistão e do Iraque, respectivamente, se converteriam em um exército mercenário, atingindo quase a mesma quantidade de tropas em território iraquiano que as Forças Armadas dos EUA.
Mas Prince, com seu passado como SEAL (equipe marítimo, aérea e terrestre da Marinha dos EUA), ultraconservador e financista de grupos católicos, extremistas e marginais, não pensava em sua empresa como um simples exército para apoiar as ocupações dos EUA em outras partes do mundo; na Carolina do Norte, em um pântano conhecido como Moyock de 2.800 hectares, fundou a maior instalação militar privada do mundo.
Maçãs podres, fruto de uma árvore muito tóxica
No livro “Blackwater, a ascensão do mais poderoso exército mercenário do mundo”, o jornalista Jeremy Scahill descreve Moyock como o lugar onde “são instruídos anualmente dezenas de milhares de agentes das forças de segurança, tanto federais como locais, bem como tropas de nações estrangeiras amigas”.
Em sua sede, a BW “tem sua própria divisão de inteligência e conta, entre seus executivos, com ex-oficiais militares e de outros serviços secretos”, diz Scahill, um colaborador do The Nation and Democracy Now! Com o tempo, o mercado de “segurança” produziu demandas lucrativas para a BW, razão pela qual também construiu instalações na Califórnia, Illinois e na selva filipina.
A Blackwater, como outras empresas de segurança privada em expansão, “não são apenas maçãs podres: elas são o fruto de uma árvore muito tóxica”, escreve Scahill. Este sistema depende do casamento entre imunidade e impunidade. Se o governo começar a golpear as empresas mercenárias com acusações formais de crimes de guerra, assassinatos ou violações dos direitos humanos (e não apenas simbolicamente), o risco que essas empresas assumiriam seria tremendo ”.
Prince definiu sua empresa como “uma extensão patriótica das Forças Armadas dos Estados Unidos”. Com os ataques às Torres Gêmeas e ao Pentágono em setembro de 2001, a administração Bush tinha um caminho claro para perceber, no plano militar, “o choque de civilizações” cunhado pelo cientista político Samuel Huntington. Com a queda da União Soviética e do mundo socialista, o poder de Washington apressou-se a encontrar novos inimigos para combater, assinala a Sudestada.
Se alguns anos antes o movimento Taliban e Al Qaeda serviram para expulsar o exército russo do Afeganistão, agora esses mesmos grupos eram o próprio mal que ameaçava a vida ocidental. Além das tropas regulares, Bush inundou o Afeganistão e o Iraque de mercenários de companhias como a DynCorp & Blackwater, empresa que foi responsável pela segurança do pessoal dos EUA nesses países, treinou tropas e se converteu em parte fundamental do exército de ocupação.
Entre os muitos benefícios para aqueles que tinham acesso aos mercenários liderados por Prince se encontravam a total impunidade por suas ações, definida em lei pela autoridade de ocupação dos EUA no Iraque, e os salários dobrados em relação aos soldados rasos. “Os salários normais dos profissionais da DSP (Destacamento de Segurança Pessoal) eram, até recentemente, cerca de 300 dólares por dia. Como a Blackwater começou a recrutar para a sua primeira grande obra (a de exercer a guarda pessoal de Paul Bremer, máxima autoridade dos EUA no Iraque), a taxa subiu para US $ 600 por dia”, disse a revista Fortune.
Enquanto BW faturava milhões de dólares e recrutava ex militares estadunidenses e chilenos (em funções exercidas durante a ditadura de Augusto Pinochet), para engrossar suas fileiras e atender as demandas exigidas pela Casa Branca, também conseguia que o Congresso dos EUA aprovasse o seu próprio grupo de lobby para fazer pressão sobre os parlamentares. Vários relatórios de órgãos públicos dos Estados Unidos chamaram a atenção porque o governo não supervisionava os “contratados” e permitia sua total impunidade nas operações militares.
O crescimento da empresa de Prince foi constante desde os atentados de 2001. Uma divisão de aviação, submarinos, a última tecnologia para espionagem e dezenas de contratos milionários formaram um sorriso que brilhava na fachada da BW. Mas sua sorte foi ofuscada pelos golpes recebidos em razão da resistência iraquiana. Em março de 2004, as imagens de quatro pessoas esquartejadas e mutiladas, penduradas em uma ponte de Fallujah, cidade que se recusava a cair, deram a volta ao mundo. Com o passar dos dias, ficou claro que esses corpos eram de mercenários da Blackwater.
O linchamento dos “contratados” pôs sobre a mesa que a empresa não só a realizava operações militares por fora do acordado, mas enviava seus próprios mercenários em veículos não blindados, com poder de fogo reduzido em missões quase suicidas, como no caso de Faluya.
Em 2007, na Praça Nisur, Bagdá, um comboio de quatro veículos blindados da Blackwater, que carregava metralhadoras de 7,62 mm, capazes de derrubar paredes. Os mercenários abriram fogo de forma indiscriminada, somando 17 vítimas, todas civis. A ira do povo iraquiano logo se manifestou nas ruas e no aprofundamento das ações armadas de uma resistência heterogênea.
Apesar do encobrimento político, judicial e midiático, os mercenários Dustin Heard, Evan Liberty, Nicholas Slatten e Paul Slough foram condenados: os primeiros a penas de 30 anos e Slatten à prisão perpétua. Em agosto daquele ano, a Russia Today informou que um tribunal de apelações dos Estados Unidos anulou as sentenças dos mercenários e ordenou um novo julgamento para Slatten.
O massacre da Praça Nisur teve um impacto tão grande que o ex-presidente Barack Obama revogou contratos com a Blackwater em 2009, para depois recontratar a empresa por cerca de 10 bilhões de dólares em 2010. O ex-primeiro-ministro do Qatar, Abdullah Bin Hamad Al-Attiyah, revelou que milhares de mercenários da empresa foram treinados nos Emirados Árabes Unidos para invadir o território do Qatar.
Segundo o ex-primeiro-ministro, os Emirados contrataram os serviços da Blackwater para suas operações na invasão do Iêmen, liderada pela Arábia Saudita. Os mercenários sofreram vários contratempos militares e foram forçados a deixar o país, o mais pobre do Oriente Médio. O governo do Qatar confirmou que BW treinou cerca de 15.000 funcionários, “muitos deles de nacionalidade colombiana e sul-americana” na base militar dos Emirados em Liwa.
Em julho de 2017, também se soube que o governo do presidente Donald Trump tentou que a empresa de Prince voltasse às suas aventuras no Afeganistão. Conforme relatado pela cadeia Hispan TV, “Jared Kushner, conselheiro e filho do presidente dos Estados Unidos, e Steve Bannon, um dos principais estrategistas da Casa Branca, supervisionaram a iniciativa e apresentaram seus candidatos para implementar o plano” de Trump: Prince e Stephen Feinberg, proprietário da DynCorp International.
Scahill observa que “a guerra é um negócio e os negócios correram muito bem. Não são apenas as ações da Blackwater e as de mesmo tipo que devem ser investigadas, reveladas e processadas: é todo o sistema em seu conjunto”. Obviamente isso não acontecerá no governo de Donald Trump.
* Sociólogo venezuelano, codiretor do Observatório em Comunicação e Democracia e do Centro Latino-americano de Análise Estratégica (CLAE, www.estrategia.la)
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)
EEUU-Venezuela. La opción mercenaria de Blackwater y el síndrome de las bolsas negras