A pequena política, a grande política e a nossa ambição

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A pergunta essencial que se coloca hoje é: o que queremos? Nossa ambição é voltar a governar ou transformar os fundamentos econômico-sociais da ordem capitalista e construir as bases para um Estado dos trabalhadores do campo e das cidades?
Por Mauro Luis Iasi.

“O que se vê habitualmente é a luta das pequenas ambições
(do próprio [interesse] particular) contra a
grande ambição (que é inseparável do bem coletivo)”.
ANTONIO GRAMSCI

É bastante conhecida entre nós a diferenciação que Antonio Gramsci propõe entre a pequena e a grande política. Para o comunista sardo, a pequena política seria aquela do dia a dia, da intriga, das disputas parlamentares, dos corredores e dos bastidores; enquanto a grande política estaria ligada à fundação e conservação do Estado, à manutenção de determinadas estruturas econômico-sociais ou sua destruição.

A distinção entre pequena e grande política poderia ser definida de forma sintética na dimensão da ação que se manifestaria no “interior de uma estrutura já estabelecida”, portando, seu limite último é a luta pela predominância “entre as diversas frações de uma mesma classe política” (Cadernos do Cárcere, vol. 3, p. 21). Em outro texto, Gramsci já havia argumentado que a própria classe trabalhadora quando impõe a si mesma o limite da luta às fronteiras da ordem instituída acaba por se degradar em um mero segmento da classe dominante em luta pelo controle do governo do Estado burguês.

Neste presente momento, entretanto, nos interessa um outro aspecto desse fenômeno descrito por Gramsci. Para ele, faz parte da chamada grande política, isto é, da ambição de manter o Estado e a ordem que ele garante, a permanente tentativa de “excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo à pequena política”, ou, ainda, o diletantismo que tenta colocar aspectos da pequena política como central na ambição de reorganização radical do Estado (idem, p. 22).

Nosso saudoso Carlos Nelson Coutinho já havia anunciado isso na precisa afirmação de que estaríamos vivendo sob a “hegemonia da pequena política”. Há, no entanto, gradações e nuances tanto na dimensão da grande como da pequena política. Gramsci, no que diz respeito à política do proletariado, parece identificar a pequena política às questões “parciais e cotidianas”, por isso se dar no interior da ordem instituída, enquanto associa à dimensão estratégia da transformação da ordem econômico-social a grande política. Mas há questões cotidianas que se articulam de forma diversa com as dimensões estratégicas e que o próprio Gramsci valorizava muito, como a luta por salários, pelas condições de trabalho, pelo estabelecimento de uma cultura operária, entre muitas outras.

Neste sentido, nos parece que o traço que distingue a pequena da grande política não pode ser entendido superficialmente como a dimensão cotidiana daquela que se projeta na luta entre as classes pelo poder político. Estou convencido que o comunista italiano tem em mente a distinção que em outra parte ele identifica como a “pequena e a grande ambição”, no sentido preciso do fundamento dos interesses em jogo. Vejamos mais de perto esta distinção.

Desde os remotos tempos da Grécia Antiga, Aristóteles já propunha como critério do juízo das formas políticas e sua degeneração a natureza do interesse: se particular ou público. Desta maneira, mesmo o governo monárquico exercido por apenas um governante poderia ser virtuoso se visasse o interesse da Polis e não o do governante. Nesta direção, quando Gramsci nos fala da pequena política, ele visa elucidar os interesses de classe envolvidos numa ou noutra manifestação prática. Por exemplo, quando deputados negociam seus votos em relação à destruição da previdência social em troca de verbas liberadas para suas emendas orçamentárias eles têm em mente seus interesses imediatos de sobrevivência no parlamento, a relação com suas “bases” e financiadores; ao mesmo tempo o governo quer responder à pauta de exigências de seus verdadeiros donos (em última instância o capital e suas demandas de valorização que implicam na destruição das políticas públicas), daí as intrigas e bastidores escabrosos que acompanhamos. Tudo isso consiste no cenário da pequena política e de seus pequenos atores, como o presidente da Câmara dos Deputados, o senhor Rodrigo Maia, alçado à estatura de um grande articulador da República.

É aqui que vemos como o circo da pequena política opera ideologicamente: reparem o procedimento de colocar a pequena política no centro das atenções, como se fosse a condição para que toda vida pudesse seguir adiante. Querem nos fazer crer que tal reforma seria a condição para evitar a destruição eminente do país, para a volta dos empregos, para a mítica retomada da economia… Nos parece claro, contudo, que colocar esse elemento da pequena política em evidência serve na verdade ao propósito de ocultar o cenário geral da luta e as intenções envolvidas.

Assim como o cotidiano da classe trabalhadora passa por demandas imediatas como dissemos, o cotidiano da ordem do capital também tem suas demandas, tais como “sanear” financeiramente o Estado para manter o fluxo adequado do fundo público para o insaciável apetite do capital financeiro. Ninguém diria que as classes dominantes estariam perdendo tempo buscando realizar a reforma trabalhista, a reforma da previdência, a reforma tributária e fiscal, destruindo as universidades públicas e o SUS, ao invés de estar se ocupando de seus objetivos estratégicos de garantia e manutenção da ordem capitalista e seu Estado, uma vez que parece evidente que é através destas ações táticas – isto é, a garantia das condições essências ao processo de valorização com as taxas de lucro adequadas – que os objetivos estratégicos são garantidos.

Poderíamos dizer que as classes dominantes operam a pequena política com a intencionalidade da grande política, ainda que seus atores mais imediatos e serviçais dedicados, como o imbecil atualmente alojado na Presidência da República, possam estar restritos aos limites de seus interesses mais imediatos.

No que diz respeito à classe trabalhadora temos aí um grande problema. Não pela natureza das lutas particulares que temos que enfrentar (lutar contra a reforma da previdência, defender a universidade pública, lutar por moradia, por terra, saúde, educação, salários e condições de trabalho, etc.), mas pela intencionalidade dessas ações, em outras palavras, pelo caráter de nossa “ambição”. Como vimos, um elemento essencial da grande política na perspectiva da manutenção do Estado e de sua ordem é “excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política”. A pergunta essencial passa a ser: qual é nossa ambição, ou em outras palavras, o que queremos?

Vejam a armadilha. É evidente que não queremos a reforma da previdência, ou os termos da barbárie que se estabeleceram com a reforma trabalhista, mas, isso não significa que antes destes ataques a gente desfrutava de um sistema previdenciária incrivelmente justo e uma proteção trabalhista majestosa. Evidente que devemos defender as universidades públicas deste projeto asqueroso que recebe a enganosa alcunha de “Future-se”, mas isso não significa que é ele que impõe à universidade as práticas privatistas, a venda de serviços e a disputa entre professores num balcão de recursos pautado por uma suposta meritocracia, na verdade uma perversa lógica concorrencial e individualista. É difícil convencer meus colegas professores universitários da necessidade de barrar uma reforma da previdência quando eles que entraram depois de 2012 já sofrem com a imposição (a palavra é esta, imposição brutal e autoritária) de ter que se aposentar pelo teto da previdência e complementar com um regime misto de capitalização. Para não falar deste monstrengo que é a EBSERH e a partilha da universidade pela lógica das fundações e suas parcerias privadas.

É inquestionável que a política de destruição ambiental deve ser contida, mas antes de correr à casa de Katia Abreu na busca de um agronegócio civilizado e sustentável seria prudente lembrar qual foi o efeito prático de uma política que privilegia o agronegócio em detrimento de uma reforma agrária radical e popular e o que produziu em termos de desmatamento e crescimento da violência no campo.

Em poucas e diretas palavras: nossa ambição é voltar a governar ou transformar os fundamentos econômico-sociais da ordem capitalista e construir as bases para um Estado dos trabalhadores do campo e das cidades?

Como o pronome “nós” é bastante abrangente, diria que coexistem estas duas ambições em nosso ser de classe. Todos nós lutamos (uns mais decididamente que outros) contra os ataques deste desgoverno, mas nossas intencionalidades se distinguem entre os que assim fazem para voltar ao governo e os que pautam a necessidade de ir muito além disso e criar as bases de um poder popular. Neste cenário, infelizmente, ainda estamos presos aos limites da hegemonia da pequena política, muito preocupados em responder às bobagens de Ricardo Salles, Abraham Weintraub, Damares Alves, Ernesto Araujo e o chefe dos palhaços que ocupa a presidência da república (com letra minúscula mesmo), ou gastando nossas energias com a troca de afetos entre Freixo e a maluca da JanaÍna Paschoal, ou ainda movendo nossa solidariedade ao conservador presidente de direita da França porque se chocou com a sólida estupidez do inominável miliciano brasileiro.

O problema é que todas essas maluquices deles são emanações da pequena política articuladas nos quadros de uma grande política, enquanto que as nossas… bem, as nossas se articulam no que poderíamos chamar de, no máximo, uma “política média”: resistir aos ataques, sobreviver para continuar lutando. Neste momento, somos uma classe sem grandes ambições. A hegemonia ainda é da pequena política.

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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.

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