Lula “livre”: três cenários e uma suspeita

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Mauro Luis Iasi

“Quando o queijo e a goiabada se encontram na mesa do pobre,

devemos suspeitar dos três: do queijo, da goiabada e do pobre”

Barão de Itararé

Análise de conjuntura não é um exercício de premonição, mas a capacidade de apontar cenários a partir das contradições que se apresentam. A conjuntura atual começa a apontar, pelo que penso, três cenários. Agregaremos um elemento importante na dinâmica dos fatos, que foi a saída de Lula da cadeia da lava-jato. Vejamos estes cenários sem que a ordem indique o que penso ser a maior probabilidade.

Primeiro cenário: Barão de Itararé, tudo pode acontecer, inclusive, nada.

Quando avaliamos as contradições do governo fundamentalista/miliciano, queremos ver soluções dramáticas, seja do ponto de vista de um retrocesso autoritário mais explicito de corte fascista, que acreditem ou não, ainda não veio, ou, no sentido oposto uma rebelião ao estilo de nossos vizinhos latino-americanos.

Infelizmente o Brasil é pródigo em derrubar estas alternativas extremas. O governo miliciano tem cumprido a agenda do capital com esmero e dedicação. No entanto, a forma como o faz é um problema para a ordem burguesa, porque cria tensões desnecessárias para esta agenda, ainda que necessárias para a manutenção do bufão descontrolado e sua trupe. Existe a possibilidade de que o projeto de tirá-lo do poder para manter a agenda já tenha começado, como veremos adiante, mas ao lado desta possibilidade e devido aos riscos que ela envolve, apresenta-se a possibilidade de deixar como está para ver como fica.

Eduardo Bolsonaro não será cassado, Moro permanece ministro, Queiroz não será levado a prestar depoimento, continuaremos sem saber quem mandou matar Marielle, uma outra artimanha jurídica tentará manter Lula fora da possibilidade eleitoral e o chefe dos palhaços continuará fazendo asneiras e proferindo impropérios enquanto a reforma administrativa e a tributária seguem seu curso. A Globo alternará denúncias indignadas e loas à retomada do crescimento após a administração do amargo remédio e seus inevitáveis efeitos colaterais, ao mesmo tempo em que seus comentaristas colocarão a culpa do atraso da retomada do crescimento na ameaça de um Lula na oposição.

O centro esquerda marchará tendo como norte um calendário que só tem uma data: as eleições de 2022 e uma escala nas eleições de 2020. A reforma trabalhista, a da previdência, as matas queimadas e praias manchadas de óleo, os índios mortos e crianças assassinadas, a morte da universidade pública e o desmonte do SUS se transformam em argumentos de um discurso eleitoral, uma macabra contabilidade do que perdemos e não há o que fazer, criando a ideia de que a única alternativa para avançar é recuar ao tempo da política de conciliação de classes.

Segundo cenário: matrioska – o golpe dentro do golpe, dentro do golpe

O primeiro cenário tem um limite: o quanto o caráter burlesco e tosco do miliciano pode comprometer a pauta e os negócios de seus patrões. Se, por um lado, a agenda do capital e suas contrarreformas está andando de acordo com o esperado, entre outras coisas pela boa vontade e competência do Congresso Nacional e seus asseclas, o estrago pelas atitudes destemperadas do presidente e sua trupe e dos esqueletos no armário produzem um estrago considerável que tem impacto nos interesses dos segmentos monopolistas (indústria, agronegócio, bancos, comércio, etc). A retomada raquítica da economia, o resultado pífio do leilão do petróleo, a trava nos investimentos diretos começam a materializar um risco Bolsonaro que não deve ser desprezado.

Um efeito secundário, mas não menos importante, é o fato de que se o risco Lula alimentou a possibilidade de Bolsonaro e permitiu que o desqualificado chegasse à presidência, o risco Bolsonaro dá uma sobrevida ao lulismo e ao mito do retorno aos tempos do pacto.

Tudo isto leva ao cenário no qual os segmentos da classe dominante podem optar por retirar a peça que os incomoda para manter a agenda no que é fundamental. Duas dificuldades se apresentam neste caminho: primeiro que a amputação precisa ser feita sem que pareça uma anulação do golpe de 2016, o que abriria caminho para uma volta do petismo e do pacto de classes que o sustentava. O segundo problema é como a peça amputada reagiria.

Ao que parece a garantia para que isto se dê, pelo menos na intenção de seus protagonistas, é a passagem do poder para o vice-presidente Mourão. Os segmentos que conspiram nesta direção têm os meios e os recursos necessários, mas não controlam as condições materiais que levariam à estabilidade desejada, uma vez que estas radicam no comportamento da economia, no terreno pantanoso daquilo que Mészáros descreveu como a tentativa de controle de um sociometabolismo incontrolável. Em poucas palavras, a crise e sua profundidade.

Vemos desde 2016 uma promessa que não se cumpre quanto à estabilidade. Tira-se a Dilma e Temer constrói uma ponte segura, não deu. Elege-se um presidente que cercado de legitimidade estabiliza o país… não deu. Por que com Mourão seria diferente? O que os conspiradores esperam é que as contrarreformas comecem a dar resultados para o crescimento do capital e se forje uma unidade no campo dominante com o aval dos militares que seja capaz de manter a ordem enquanto os efeitos deste ajuste ainda se manifestem de forma mais contundente, dando o tempo necessário para que se crie uma alternativa eleitoral que se sustente e seja capaz de derrotar o centro esquerda e a extrema direita.

A denúncia da Globo, o andamento das investigações que vinculam o presidente e sua família com as milícias e supostamente com a assassinato de Marielle e, como veremos, com a soltura de Lula, demonstram que o esquema já começou a se mover nesta direção. Ratos que abandonam o navio, como o MBL, artistas pornôs, roqueiros e advogados golpistas, queda da popularidade mostram que o isolamento que antecede a queda está em curso.

A segunda barreira é mais complexa. O que se supõe é que já se dispõe de recursos de chantagem suficientes para que o capitão renuncie, alegando uma doença, real ou imaginária (creio que ele deve ter as duas) e facilite o caminho do golpe dentro do golpe. Ocorre que o personagem, diferente de outros, parece não ser suscetível  a este tipo de manobra e terá que ser forçado a largar o osso. Aqui aparece a incógnita: terá recursos de reação, ou será blefe?

Além da fidelidade do fundamentalismo religioso, que pode oscilar na última hora, uma vez que o pentecostalismo de negócios aprendeu com a Igreja católica a sobreviver aos regimes que apoia, vamos lembrar que apoiavam o petismo, transitaram para Temer e agora apoiam o demônio; o presidente parece ter um apoio importante em milícias armadas com ligações com as corporações policiais. Tem, ainda, uma base fiel que deve estar entre algo em torno de 7 a 10% do eleitorado que se identifica com sua pregação de extrema direita, com reflexos em segmentos de massa corrompidas por um discurso antipetista e anticomunista irracional e raivoso.

Tudo isto já é um problema, mas ainda não chegamos à verdadeira incógnita que é: qual o apoio real do presidente na corporação militar? Os generais parecem divididos, como Heleno de um lado e Cruz e Souza, Bebianno e outros que abandonaram a nau insana (parece que já são onze os militares que pularam fora do governo), mas a dúvida é a capacidade de Bolsonaro em arrastar um segmento das forças armadas na defesa de seu governo. Os militares brasileiros preferem operações que não encontrem resistência e podem recuar diante da possibilidade de reação e buscar outros cenários.

A alternativa Mourão é uma busca de estabilidade. Se o caminho que leva até ele produzir o caos, será descartado e voltamos ao primeiro cenário.

Terceiro cenário: o contragolpe que é o verdadeiro golpe fascista

Mc’Namara já dizia que a primeira vítima da guerra é a racionalidade, isto é, o risco é pensarmos como agiriam os sujeitos e atores principais, supondo uma racionalidade que já foi ultrapassada pela crise. Bolsonaro pode já ter ultrapassado o patamar de uma peça com problemas, gangrenou e supurou e tem que ser extirpado. Tomadas as medidas para diminuir sua popularidade, parece que a Globo tem este papel, produzir seu isolamento parlamentar, o que cabe a Rodrigo Maia, desacreditá-lo internacionalmente, tarefa realizada pelo próprio Bolsonaro e seus ministros, se desfecharia o golpe dentro do golpe para manter o golpe.

Caso seja blefe e Malafaia aparecer abençoando Mourão, e as milícias fizerem um acordo (o problema de esperar fidelidade de ladrões, assassinos, traficantes e criminosos é que eles não têm amigos, têm interesses), fora a choradeira dos bolsominions, um exército de robôs descontrolados gritando “perigo, perigo” e um certo ministro da justiça fugindo do país com alguns procuradores, estaríamos no bojo do segundo cenário.

Nosso terceiro cenário se apresenta caso não seja blefe e o capitão resista. Ao que parece, a estratégia do capitão não era ganhar as eleições. Cada vez estou mais convencido que ele não se preparou para este caminho. Devemos supor que sua estratégia era, diante de uma vitória de Haddad, dividir o país e propor uma solução de força de corte claramente fascista. Esta não é uma suposição leviana, uma vez que o presidente falou abertamente isso, e seus filhos, com o destaque para aquele que apresenta mais nitidamente traços delirantes, o vereador do Rio, defendem isso sem disfarces, como escapou na fala de Deputado Federal que defendeu o AI 5.

O problema deste cenário é que ele não prevê a bênção dos segmentos monopolistas e sua real força e acredita que pode chegar a manter um governo forte contra o capital. Lamentavelmente, a burguesia brasileira é pródiga em perder o controle dos processos que ela parece controlar, como estou convencido que aconteceu em 2016. Isso abre a perigosa possibilidade da aventura golpista da familícia encontrar condições político-militares de resistir ao golpe que tenta tirá-lo do governo e apresentar uma solução de força, simultaneamente para evitar a perda de controle (risco Chile) e atacar seus adversários do campo conservador: o Congresso e o STF.

Este cenário depende de quanto o miliciano tem de fato de apoio na corporação militar e policial (legal e miliciana), e sua capacidade de ser a alternativa que resta ao capital diante do risco de descontrole social, seja pela revolta de massas, seja pela possibilidade de retorno pela via eleitoral do petismo.

Uma suspeita

Os leitores mais atentos devem ter notado que os cenários se apresentam no campo das alternativas dos setores dominantes. Ocorre que a alma da conjuntura se encontra na correlação de forças e dos instrumentos e recursos que os atores dispõem para realizar seus interesses. O campo popular está derrotado e isso desloca o centro da conjuntura para as alternativas em disputa no interior do campo dominante.

Na direção oposta desta leitura estão muitos amigos e incorrigíveis otimistas que veem no cenário quase insurrecional na América Latina (Equador , Chile, Haiti, etc.) e nos novos ventos eleitorais que sopram da Argentina, na Bolívia e, possivelmente no Uruguai, a esperança de alternativas mais à esquerda se apresentarem também no Brasil.

Evidente que o cenário latino-americano interfere nos acontecimentos no Brasil, mas é necessário avaliar de que forma isto se dá. A derrubada de uma presidente eleita por meio de um casuísmo escandaloso não produziu uma reação à altura. Um governo ilegítimo impõe uma reforma trabalhista com efeitos dramáticos para a classe trabalhadora, e não encontrou resistência significativa. Por fim, a reforma da previdência foi aprovada, como disse um amigo, sem que se riscasse um fósforo, nem sequer para acender uma vela para chorar pela morte de um dos direitos mais fundamentais.

Quando se pergunta – “quando a revolta que explodiu no Chile explodirá no Brasil?”- , me assoma um misto de pena e espanto. Esta explosão já aconteceu… em 2013 e foi enfrentada de forma dura e brutal pelos chamados governos progressistas de plantão. Um processo contraditório e heterogêneo, mas que trazia como uma de suas vertentes um questionamento aos ajustes neoliberais e à política de austeridade, uma reação às condições de vida dos esquecidos, contra a violência policial cujos exemplos mais gritantes são o assassinato de Amarildo e o corpo de Claudia arrastado por uma viatura, mas aos quais se deve somar as chacinas quase diárias nas periferias e favelas, as remoções supostamente para os eventos esportivos, a destruição da natureza, o leilão do petróleo no campo de Libra, o ataque aos direitos dos trabalhadores, a prioridade do agronegócio e a farra orçamentária que sangra o fundo público em nome do apetite insaciável do capital financeiro.

A resposta do governo Dilma e do seu infame ministro da justiça, senhor José Eduardo Cardoso, foi a Portaria Normativa de dezembro de 2013 que iguala manifestantes a quadrilhas criminosas, que colocava em prática as chamadas Operações de Garantia da Lei e da Ordem com as consequências conhecidas. O governo preferiu conciliar com seus algozes e, assim, selou seu destino.

Desarmadas de sua força autônoma e sua direção de luta, as massas se tornam presas da manipulação e da extrema direita. O resultado nós conhecemos.

É neste contexto que devemos entender a saída da prisão do ex-presidente Lula. É perfeitamente compreensível que a centro esquerda tenha se empenhado em sua defesa e estão todos de parabéns pela campanha em defesa de sua liderança. Todos nós nos solidarizamos contra a farsa jurídica que o condenou e sabemos, como ficou provado pelas denúncias do Intercept, que a intenção maior sempre foi evitar que Lula participasse das eleições, porque, provavelmente, as ganharia.

Mas não foi a campanha Lula Livre que o tirou da prisão, foi o STF, a mesma instituição que legitimou a farsa que o prendeu e que o manteve preso ao arrepio da lei e da simples observância da constituição. A pergunta é, por que agora agiu de forma diferente?  Não posso aceitar o discurso de que o STF agiu em defesa da Constituição, restabeleceu a justiça e garantiu o mítico e fantasioso Estado Democrático de Direito, pelo simples motivo que esta mesma instituição foi fundamental para, primeiro, ungir de legitimidade jurídica uma farsa casuística que levou ao golpe de 2016; segundo, acompanhou com inoperância bovinamente subserviente as hienas do Congresso descarnando a constituição dos direitos mais fundamentais; terceiro, recusou todos os Habeas Corpus impetrados pela defesa do presidente Lula, inclusive com a palhaçada do voto da ministra Rosa Weber que argumentou no mérito a favor e o recusou porque a maioria assim se pronunciou, inovando ao criar o “centralismo democrático” jurídico na Suprema Corte.

Mais provável é que esta corja de golpistas, coniventes e responsáveis pela destruição do país, agora se mova em outra direção e ela está longe de ser a defesa do país. O STF está, como mostrou a votação, dividido entre os dois primeiros cenários descritos, isto é, deixar tudo como está (até porque esteve o tempo todo comprometido com o golpe e o arbítrio) ou apostar na operação que visa eliminar a peça incômoda. Não tenho dúvidas de que se o fascismo vencer encontrará entre os nobres ministros quem encontre justificativa jurídica para legitimar o crime, varrendo para baixo de suas togas toda a sujeira e o sangue, como fizeram em 1964.

Lula saiu da cadeia, e isso é bom, mas sua saída é um efeito colateral de um plano dos mesmos que os colocaram lá e que zelarão para que seus direitos políticos sigam cassados e que, se necessário, ele volte para a cadeia quando as condições jurídicas forem satisfeitas, uma vez que as condenações nas primeiras instâncias ainda estão valendo.

O velho Maquiavel já dizia que nada é mais instável do que o poder que não se apoia na própria força e, assim, depende da boa vontade dos outros. Tanto o descontentamento das massas, como a pregação de oposição de Lula, se não são partes de uma alternativa realmente popular, podem acabar servindo aos propósitos de outras forças que tramam em segredo seus planos.

Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.

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