Contrarreformas ou Revolução

imagemRespostas a um capitalismo em crise

ARGUMENTUM (REVISTA DA UFES)

Mauro Luis Iasi

Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário.
Nunca será demasiado insistir nessa ideia, numa época
em que a propaganda em voga do oportunismo vem acompanhada
de uma atração pelas formas mais estreitas da atividade prática.

Lenin (Que Fazer?[1902])

Um aspecto central de todo oportunismo gradualista é o argumento segundo o qual os tempos mudaram e as formas e ações revolucionárias não mais se adequam às condições hoje existentes. As lutas de massas, os enfrentamentos, em uma palavra, a insurreição, teria cedido lugar à formas institucionais que canalizam os conflitos e permitem que se realizem em um terreno que teria a dupla virtude de permitir a predominância da vontade da maioria, ao mesmo tempo em que neutralizaria o principal instrumento das classes dominantes, qual seja, o uso dos aparatos repressivos e da violência.

A política tomaria o lugar da força. Esta é uma ideia muito antiga da filosofia política, desde Platão e Aristóteles, passando pelos filósofos romanos e pelo período medieval, tem em seu fundamento a afirmação que a forma política opera quando as partes abdicam do uso da força para fazer prevalecer seus interesses. Política entre cidadãos, força para subjugar os bárbaros. Os exércitos romanos deviam acampar fora da cidade e Cezar despir-se de seus trajes militares e colocar a toga para falar com seus iguais no Senado. Será Maquiavel ([1513] 1996), no alvorecer dos tempos modernos que irá questionar este princípio, afirmando que a força é um dos elementos que constituem o fenômeno político uma vez que este não pode ser compreendido fora da correlação de forças que se enfrentam visando impor seus interesses (a elite, os homens de armas e o povo). Não se pode julgar o uso da força por um princípio moral geral, uma vez que, segundo o florentino, há uma diferença entre a moral pública e a moral privada, de forma que deve-se perguntar sobre o uso correto ou incorreto de todos os recursos necessários à conquista e manutenção do Estado, inclusive e principalmente a força. Um equívoco comum é considerar que Maquiavel defende a presença da força no fenômeno político como recurso exclusivo e por algum desvio moral de caráter. Não se trata disso, para o pensador que inaugura a teoria política moderna trata-se de constatar que o recurso da força sempre esteve presente na história e costuma ser decisivo, ao mesmo tempo em que defende que a eficiência daquele que quer conquistar ou manter o Estado se dá pelo equilíbrio correto entre a força e a legitimidade de sua ação, entre coerção e consenso e não pela simples imposição de um ato de força.

Interessantemente, na consolidação e crise da modernidade burguesa, o princípio de Maquiavel terá que ser obscurecido e em seu lugar se irá resgatar o velho argumento pré-moderno da política como forma que pressupõe o não uso da força, como podemos ver nas formulações de Hanna Arendt ([1958] 2000) e Habermas ([1985] 1990).

Creio que este aspecto particular se insere em um conjunto um tanto maior. Marx ([186667],2013) quando trata da chamada acumulação primitiva, nos oferece o seguinte raciocínio:

Na história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista, a subjugação, o assassinato para roubar, em suma, a violência. Já na economia política, tão branda, imperou sempre o idílio. Direito e ‘trabalho’ foram, desde tempos imemoriais, os únicos meios os únicos meios de enriquecimento, excetuando-se sempre, é claro, ‘este ano’ (MARX, 2013, p. 786).

Trata-se de um procedimento ideológico, no sentido marxiano do termo, isto é, o esforço persistente de ocultar, velar, obscurecer aspectos do real para acobertar o sentido maior da dominação de classe. É preciso apagar as pegadas que nos levam à aterradora constatação que a ordem atual foi e é imposta com base na brutal dominação da classe dominante sobre aqueles sobre os quais recai sua dominação. Tal procedimento é tanto mais necessário e profundo quanto mais a burguesia perde seu caráter universal de classe revolucionária que um dia foi e assume sua feição conservadora e reacionária, expressando um período histórico que Lukács (2010), seguindo as pistas de Marx, denominou de decadência ideológica. A pista pode ser resumida da seguinte maneira. A partir de 1820-1830, e mais profundamente com a entrada em cena do proletariado em 1848, a burguesia consolida seu poder político e a luta de classes desloca-se, ainda que não de forma completa, da luta contra o antigo regime para a luta contra o proletariado. O efeito disto na consciência burguesa da época pode ser verificada na produção intelectual de seus representantes que passam a reproduzir em suas formulações ideais a dura constatação segundo a qual “[…] as armas que a burguesia utilizou para abater o feudalismo voltam-se hoje contra ela” (MARX; ENGELS, [1847-48] , 1980, p. 16). Segundo Marx, isto levaria à constatação:

Agora não se trata mais de saber se este ou aquele teorema é verdadeiro, mas sim se é útil ou prejudicial ao capital, cômodo ou incômodo, contrário aos regulamentos da polícia ou não. Em lugar da pesquisa desinteressada, temos a atividade de espadachins assalariados; em lugar de uma análise científica despida de preconceitos, a má consciência e a predominação apologética (MARX, apud LUKÁCS, 2010, p. 51).

Esta forma que despreza os fatos históricos e tende para a mistificação, não é somente uma manipulação grosseira, uma sopa eclética preparada na “[…] cozinha da imbecilização ideológica das massas […]” (LUKÁCS, 2010, p. 61), mas, como toda ideologia, é a expressão ideal das relações que constituem o real, uma ilusão socialmente necessária, que expressa idealmente o transito de uma época revolucionária da burguesia para outro momento, o de sua decadência como classe universal, levando à materialização da máxima expressa por Marx de que para a burguesia houve história, mas não há mais. No bojo desta mistificação, desta ilusão historicamente necessária, a violência é parte constitutiva da história que salta por meio de revoluções e rupturas, mas agora deve desembocar num fluir evolutivo, linear e progressivo ao gosto do positivismo comteano.

É próprio de toda ideologia, que carrega em sua substância as ideias dominantes, ou mais precisamente, a expressão ideal das relações que fazem de uma classe a classe dominante (MARX; ENGELS [1845-46], 2007, p. 47), apresentar como universal a substância particular na qual se funda. A efetividade da ideológica se mede por sua capacidade de, sem deixar de ser as ideias da classe dominante, servir de meio ideal através do qual os dominados estabelecem sua visão de mundo. Nesta direção não nos estranha o fato de que os representantes do proletariado, em um determinado momento, começarem a partilhar das concepções próprias da decadência ideológica de seus antagonistas.

Isto não ocorre pela simples manipulação. O fato é que as classes partilham a mesma materialidade das relações que constituem uma determinada sociedade, portanto, partilham da base material que serve de fundamento à sua consciência, da mesma forma que esta consciência só pode ser expressa por um conjunto de representações, signos, símbolos, juízos, valores que são compartilhados pelas classes em luta. As classes sociais, como afirmavam Bakhtin-Voloshinov (1986, p. 31), servem-se de uma só e mesma língua, de maneira que “[…] em todo signo ideológico confrontam-se índices de valores contraditórios, tornando o signo uma arena onde se desenvolve a luta de classes” (BAKHTIN, 1986, p. 31). Ocorre que esta arena não é neutra, ela é o terreno da ideologia burguesa, levando ao paradoxo de tentarmos atacar nossos antagonistas à golpes de uma substância que os alimenta.

Creio que é isso que ocorre na disjuntiva entre revolução e gradualismo. Exatamente no momento em que o poder burguês consolidado indica os sinais evidentes de sua crise e desponta no horizonte histórico uma época de revoluções sociais, prevalece a compreensão que a forma revolucionária é uma anacronia que teria sido substituída pela civilizada disputa nos limites de uma determinada ordem política e jurídica pactuada.

Bernstein em um de seus escritos afirmava que a ambição dos socialistas não deveria ser a destruição da sociedade e sua substituição por outra, mas incessante luta para “[…] elevar o trabalhador da condição social de proletário àquela de cidadão […]” (BERNSTEIN, [1899] apud HOBSBAWM, 1982, p. 282), generalizando o sistema civil (Burgertum) ou a condição de cidadão (Burgersein). O socialismo, deste modo, seria fruto de uma evolução e não de uma ruptura. Kautsky, crítico contundente do marxismo evolucionista de Bernstein, apresentará a substância da mesma ideia daquele que criticava, mas de outra forma, ao contrapor a ideia de aniquilamento a de desgaste, defendendo que os trabalhadores deveriam se “[…] preparar durante longo tempo e só se dispor a travar essa batalha quando considerar que o inimigo está suficientemente enfraquecido” (KAUTSKY apud HOBSBAWM, 1982, p. 337).

Não se trata de mera capitulação de renegados. Estes autores, com sinceras ambições socialistas e anticapitalistas, rendem-se à pseudoconcreticidade de um contexto histórico no qual a sociedade burguesa parecia ter imposto a sobrevida da ordem do capital de maneira que, ao mesmo tempo, se sustentava em um poderio militar e policial que tornava impossível a alternativa revolucionária clássica, como abria a possibilidade de uma disputa política no quadro de instituições que teriam a virtude de permitir acúmulos de longo prazo favoráveis às classes trabalhadoras.

Engels, que era especialista em questões militares, quando analisando os resultados da luta de classes desde 1848 até a experiência da Comuna de Paris em 1871, afirmava que a forma das lutas havia se modificado significativamente. Dizia que a rebelião nas formas antigas, praticadas até 1848, o combate de barricadas, estaria ultrapassado. Para isso teriam contribuído vários fatores, desde o tamanho dos exércitos, as condições de seu deslocamento através das estradas de ferro, a eficiência do armamento, como por exemplo o fuzil de repetição que substituíra o de recarga pela boca, o aperfeiçoamento das munições, etc (ENGELS, [1895], [20–], p. 105), assim como o contexto político da luta de classes, o sufrágio universal e a institucionalização do poder burguês (1).

Este contexto poderia ser entendido de duas formas. Como terreno concreto no qual a luta entre as classes antagônicas teriam que estabelecer seu confronto, como parece indicar Engels, ou como um cenário absolutamente novo que implicaria em rever, inclusive, o antagonismo de classes, levando à ideia do Estado como forma que tornaria possível a conciliação dos interesses de classe que na sociedade se apresentavam como inconciliáveis. Este segundo caminho foi o seguido pela socialdemocracia, assim como os mencheviques russos. Kautsky teria seguido um caminho intermediário, isto é, ainda que não desconsiderando o caráter de classe do Estado burguês, apostava no fato que a correlação de forças poderia permitir a ocupação do Estado na perspectiva dos trabalhadores até que a ação reformista desgastasse o poder da burguesia e permitisse a construção de um poder dos trabalhadores.

O problema é que assim procedendo, a consciência da classe trabalhadora assume como premissa a impossibilidade da ruptura revolucionária e adere aos termos do gradualismo como único caminho possível de desenvolver suas estratégias revolucionárias. Não por acaso, no momento em que formas mais radicais de enfrentamento são obstaculizadas, abrem-se as possibilidades dos caminhos institucionais do fazer político (PRZEWORSKI, 1989).

Pouco a pouco, esta imposição, passa a se apresentar não como um limite, mas uma oportunidade aos olhos dos socialistas. Os meios pacíficos de se chegar ao poder pela vontade da maioria, teriam encontrado na forma eleitoral sua razão de ser. Os trabalhadores sendo a maioria da sociedade, uma vez que alinhassem sua condição de classe à seu comportamento eleitoral, se tornariam uma força política invencível, poderiam chegar ao governo e apresentar sua proposta de reorganização da sociedade pelas formas juridicamente constituídas, desse que estas fosses de fato democráticas.

Apesar deste cenário se inscrever como possibilidade real, ele se apresentava junto com um paradoxo. Se o uso da violência revolucionária poderia levar à distorção do caráter democrático do movimento que a usa, a aceitação dos limites das regras democráticas poderia condenar o partido revolucionário à impotência (2).

Ao nosso ver este dilema que marcou o final do século XIX e o século XX, desde a dramaticidade das experiências Russa e Alemã no início do século XX, passando por toda a experiência socialdemocrata europeia, pela Revolução Chilena e pela tragédia da experiência recente dos governos petistas no Brasil (2003-2016), traz em si um problema na sua própria formulação.

Não se trata somente de caminhos alternativos para superar o capitalismo e iniciar a construção do socialismo, como parece ser quando restringimos a análise a intencionalidade política de seus protagonistas, mas de como forças políticas atuam no momento da crise do capitalismo e até que ponto a ação política realizada vai ou não além da ordem capitalista que se pensava negar.

Não se trata de um desvio moral que impõe aos personagens envolvidos uma aceitação no sentido de se manter nos marcos de uma sociabilidade burguesa e uma ordem econômica capitalista pela mera aceitação de valores democráticos e de recusa ao uso da força.

Nossa hipótese de estudo se funda na premissa que a crise da ordem capitalista abre a dupla possibilidade de instituir revolucionariamente uma nova materialidade sobre qual podemos construir novas relações nas quais produzir socialmente a existência humana em uma dimensão emancipada, ou seja, iniciar a transição socialista na direção do comunismo; ao mesmo tempo que permitiria, dependendo do caráter da ação implementada, reinstituir uma nova forma do mesmo conteúdo econômico, social e político que se encontra no fundamento da sociedade do capital (3).

Neste caminho temos que recuperar, ainda que de forma sintética, o que entendemos como crise do capital e as formas políticas nas quais se expressam as respostas que diante dela se apresentam.

O capital como sabemos é uma relação social fundada na propriedade privada dos meios de produção e na compra da força de trabalho com a finalidade de extração de mais valor. Para tanto o capital exige certas pré-condições: a continua expropriação dos produtores diretos de seus meios de trabalho e de subsistência, de maneira a formar um mercado de força de trabalho livre e de produtos transformados em mercadorias.

A sanha pela constante valorização do valor, assim como a apropriação privada da riqueza socialmente produzida, leva ao desenvolvimento paradoxal do ser do capital e das contradições a ele inerentes.

Quanto mais o capital cresce, maior é a distancia entre quem acumula e quem produz o capital, produzindo uma sociedade marcada pela desigualdade, ou melhor seria dizer, desigualdades. Entre ricos e pobres, entre capitalistas e proletários, entre centro e periferia do mundo, entre os que compõe o capitalista coletivo (os diferentes segmentos do capital – industrial, agrário, bancário, comercial, serviços, etc.), entre os que compõe o proletariado, não apenas divididos pelos ramos nos quais o capital atua, mas na própria composição da classe (empregados, exército industrial de reserva, superpopulação relativa, força de trabalho latente, estagnada, etc.), além das divisões funcionais a exploração da força de trabalho (relações sociais por sexo, diferenças regionais, étnicas, religiosas, relativas à sexualidade, geracional, etc.).

O desenvolvimento do capital descreve, não apenas na sua história genérica, mas em seus ramos particulares, um movimento que vai da concorrência ao monopólio, da centralização e concentração da produção, que quanto mais concentra a acumulação, mais expande o capital como forma que só pode ser movida pela afluência de todos, interligando regiões, países e povos na rede do mercado mundial capitalistas. No ponto máximo deste desenvolvimento o capital se torna imperialismo, isto é, a exportação de mercadorias cede o protagonismo à exportação de capitais, os capitais monopolistas produzem a fusão dos capitais nas indústrias e bancos, formando o capital financeiro e partilhando e repartilhando constantemente o globo na definição de áreas de influências que servirão de plataformas de expansão do capital imperialista.

Quanto mais se aprofunda o imperialismo, mais se acentua o caráter parasitário do modo de produção capitalista, seja pela queda tendencial da taxa de lucro articulada a alteração da composição orgânica do capital (a desproporção entre o capital constante e o variável), seja pelas contra tendências impulsionadas pelo Estado, a sociedade capitalista vai se convertendo em uma sociabilidade que suga todo o trabalho social para acumular lucros que precisam carregar em seu processo de produção uma massa de capital morto cada vez maior proporcionalmente ao trabalho vivo que está no centro da produção e reprodução do valor. A crise é o resultado do processo de valorização e de suas contradições e se apresenta como uma crise de supervalorização e no movimento no qual o valor tem que fluir, tendencialmente, com taxas de lucro cada vez menores. A superacumulação, seja na expressão da superprodução ou do subconsumo, exige a queima de capitais, a destruição das forças produtivas e do trabalho, para permitir um novo ciclo de acumulação.

Tal processo que está brilhantemente descrito em O Capital de Karl Marx, em seus três livros (MARX, 2013; 2014; 2017), desemboca em crises cíclicas e periódicas. Como o capital é uma relação social, tanto a crise como os meios de enfrentá-la, são cortados pela luta de classes e os interesses antagônicos que as sustenta. Naquilo que Marx, no livro III, chama de contra tendências podemos ver nitidamente este aspecto. O capital, na tentativa de contrapor à queda na taxa de lucro, necessita intensificar a exploração sobre a classe trabalhadora, reduzir salários, aumentar a superpopulação relativa, tudo isto com impactos previsíveis sobre aqueles que trabalham e as condições gerais da reprodução da vida. Ao mesmo tempo exige o barateamentos dos elementos do capital constante (matérias primas, custos de armazenamentos, infraestrutura, maquinário, etc), ampliação de mercados (com ele a partilha e repartilha das áreas de influência) e o escape do dinheiro para a esfera bancária e a orgia do capital portador de juros.

O problema é que não apenas as contratendências diretamente ligadas aos trabalhadores, mas também as que se dirigem aos elementos do capital (capital fixo, capital constante, capital dinheiro, renda da terra, etc.), acabam por incidir sobre o conjunto da sociedade, saqueando o fundo público, subordinando-o aos mecanismo da dívida pública e capturando todo o esforço da sociedade como meio de salvar o capital de sua crise e criar as condições de um novo ciclo de acumulação.

O momento da crise é, portanto, o momento máximo da ideologia (4). É o momento onde os interesses particulares do capital precisam se apresentar como interesses universais da sociedade. Na luta de classes os trabalhadores, antes dispersos e serializados, coexistindo nas mesmas condições de existência, mas não constituindo-se enquanto classe, tendem a promover ações que resultam da reação aos ataques do capital e suas implicações para as condições de vida, lutas parciais e dispersas, mas que tendem a ser cada vez mais gerais e em certas condições podem levar à fusão e à formação da classe trabalhadora como classe.

Neste momento da constituição da classe e de seu processo de consciência, os trabalhadores apresentam suas demandas por salários, por condições de vida, na luta contra opressões particulares que sofrem como mulheres, contra a opressão racista, contra uma miríade de injustiças que afligem cotidianamente os membros da classe trabalhadora. É natural que assim ocorra, pois são estas formas que materializam a exploração e a opressão na qual se fundamenta a ordem burguesa.

No entanto, estas formas particulares, em si mesmas, podem tanto ser negadas ou aceitas sem que se altere as condições mais profundas e determinantes da ordem capitalista. É possível maiores salários sem que se questione a livre compra e venda da força de trabalho e a divisão entre a acumulação privada e a formação do fundo de consumo dos trabalhadores. É possível novas formas de contratação e um universo de direitos e políticas sociais sem que se altere a ordem da propriedade privada e da acumulação capitalista. Assim é que, no momento da crise e da necessidade do capital promover alterações de forma para salvar a substância de sua ordem, possamos ver parte daquilo que consiste a pauta das demandas do trabalho aparecer no corpo das políticas do Estado burguês.

Como argumentou com profundidade José Paulo Netto ([1992], 2006), a passagem para o capital monopolista exigiu uma nova forma de Estado que deveria ir muito além da mera garantia das relações de produção e propriedade, sendo levado a dar conta de tarefas direta e indiretamente econômicas, assim como das esferas da reprodução da força de trabalho e da legitimidade política do Estado do capital monopolista. Sem que, desta maneira, argumenta o autor, tal estado deixasse de ser o comitê executivo dos negócios da burguesia, apenas que na pauta destes negócios agora deveria contar uma pauta de ações ligadas à reprodução e condições de existência que em parte coincide com reivindicações da classe trabalhadora.

No entanto, ainda que na aparência sejam as mesmas, há uma diferença essencial quando se expressam como pauta dos trabalhadores em luta e quando são incorporadas pela pauta do capital. Um bom exemplo podemos encontrar nas reivindicações operárias do final do século XIX no Brasil, que lutavam pelo salário mensal, pelo descanso semanal remunerado, pelo direito de férias, pela regulamentação do trabalho de mulheres e crianças, pela garantia no emprego, e outras demandas; e a chamada Consolidação das Leis Trabalhistas, criada em 1943 pelo governo getulista.

Não que deixem de versar sobre as mesmas coisas, mas pelo fato que no primeiro caso constituem o caminho pela qual a classe se constitui enquanto classe, forja sua unidade e experiência que pode conduzi-la ao papel de um sujeito histórico portador de uma alternativa à sociedade do capital; enquanto que no segundo converte-se no meio pelo qual o Estado burguês estabelece o controle político da classe e a desarma de sua autonomia, tornando-a adaptada às exigências das novas formas e padrões de acumulação.

O equívoco do gradualismo reside na observação parcial que, ainda que mínimas, a incorporação de elementos da pauta da classe trabalhadora produziria um efeito cumulativo que produziria um salto de qualidade em algum momento futuro, transformando a ordem burguesa em ordem proletária. A pergunta essencial é: enquanto se processa o lento acúmulo que levará ao socialismo, qual ordem sobrevive como fundamento da sociabilidade existente? Não pode ser a proletária, pois esta resultaria do pleno desenvolvimento e do acúmulo das reformas particulares.

Como dissemos, uma ordem não é um arranjo moral de intenções. Uma ordem se define pelas formas de propriedade, pelas relações sociais de produção, pelas formas de acumulação e distribuição. Nos parece evidente que o gradualismo supõe a permanência das determinações da ordem burguesa, lembremos Bernstein e Kautsky – não se trata de destruir a sociedade existente ou proletarizá-la – portanto, o gradualismo se apoiaria no terreno histórico da sociedade capitalista, equilibrada por uma distribuição, via Estado, de parte da acumulação social (excluindo aquela que se destina a acumulação privada) pela interveniência de valores e juízos políticos derivados do controle da maioria sobre o Estado por meio de uma democratização da esfera política (5).

Toda construção ideológica tem que partir de uma base terrena. A materialidade desta ideologia encontra-se, de um lado na experiência da social democracia europeia e do chamado Estado de Bem-estar Social, experiência esta que não é universalizável além dos limites do velho continente a não ser como ideologia. Por outro lado pela emergência da Revolução Russa e das revoluções socialistas do século XX que colocaram uma alternativa prática que precisava ser contida e negada como alternativa.

O futuro da experiência socialdemocrata não foi a universalização da democracia e de uma era de direitos, mas seu pleno desenvolvimento resulta numa curva regressiva em direção à barbárie. Isto não se dá pela justeza ou não dos valores morais, a dimensão ética ou as ilusões políticas de seus protagonistas, mas pela persistência da base material sobre a qual repousavam. A social democracia repousava no terreno das relações de produção e formas de propriedade capitalistas, que como é de sua natureza desenvolveu a acumulação capitalista, o monopólio, o imperialismo e no auge de seu processo de acumulação privada da produção social, gerou mais uma enorme crise de superacumulação.

Ironicamente, a proposta de enfrentamento da crise não podia ser, agora, o pacto de classes social democrata, mas a sua negação pela reafirmação das premissas liberais reeditadas pela cartilha ideológica do neoliberalismo. Nem a social democracia, nem o Estado de Bem-estar, nem a democracia, foram possíveis de se universalizar. O conteúdo mais substancial destas formas é a necessidade do capital monopolista e imperialista de um sociometabolismo no qual o estado ganha uma predominância especial. A forma variou de uma democracia com Welfare State na Europa com algumas poucas exceções fora do continente, no New Deal norte americano e na forma brutal das ditaduras na América Latina, na África e na Ásia.

Não podemos, no entanto, confundir a eficiência da ordem burguesa em se manter viva apesar de suas crises, com a capacidade de evitá-las. Podemos constatar que as alternativas de formas políticas se mostram cada vez menos propícias de se constituir em alternativas de longo prazo. O chamado neoliberalismo, anunciado como a forma que deveria guiar o novo milênio acabou por se revelar uma alternativa de tiro curto. Nos chama a atenção a aparente coincidência dos termos serem emprestados de contextos passados: neoliberalismo, neodesenvolvimentos, etc. Parece-nos que esta é mais uma característica da decad6encia ideológica, de que o cérebro dos mortos continua a atormentar os vivos com seus nomes, vestimentas, estandartes e fantasmas. Ao que tudo indica o caráter terminal da forma capitalista só pode oferecer como futuro um pálido eco de um passado em que nutria a pretensão de ser uma alternativa para a humanidade.

O fracasso no presente e a impossibilidade de reviver o passado, abre espaço para que fantasmas indesejados se apresentem como alternativas: o neofascismo, o neonazismo, sultanatos e emirados, irracionalismos medievais e salvacionismos pentecostais. Talvez seja um erro chamar isso de barbárie, é o triunfo da civilização, de uma civilização que agoniza e assim fazendo revela seu caráter mais essencial sem os disfarces da maquiagem política, das belas roupas e adereços ideológicos.

Em tempos como estes se reatualiza uma hipótese que se tentou zelosamente afastar do campo das possibilidades. Marx, em 1849, teceu o seguinte argumento que serviria de linha condutora de toda sua vasta obra: nenhuma sociedade desaparece antes que desenvolva todas as forças produtivas que pode conter, de forma que jamais aparecem novas relações sócias antes que se desenvolvam no interior desta sociedade as condições materiais para tanto; esta mudança só ocorre quando o pleno desenvolvimento das forças produtivas entra em contradição com as relações sociais de produção, abrindo, assim, uma época de revolução social (MARX; [1849], 2007).

Ao lado da confirmação, em vários aspectos trágica, desta hipótese, reside no fato que, surpreendentemente, as formas que se supunham superadas emergem de forma significativa. A negação da ordem e a possibilidade da revolução não parece germinar das comportadas experiências de acúmulos institucionais, mas dos caóticos sinais de insurreições populares, como aquela que no momento em que escrevemos sacodem o Equador, interessantemente, o mais moderado das chamadas experiências populares cujo os pares mais radicais são a Bolívia e a Venezuela.

Em nossa ação política podemos optar por formas mais ou menos radicais de ação, com um maior ou menor custo humano, mas aparentemente a história não. Aparentemente a história se move a nos lembrar que o fim de uma era, a morte de uma ordem é um violento processo que ruptura em que um mundo novo luta para nascer preso nas entranhas de uma velha forma histórica que quer nos arrastar consigo para sua morte. Num canto, já sem muita paciência, a velha parteira espera que nos decidamos.

Mario Luis IASI é Professor Associado I do PPGSS da ESS da UFRJ. Departamento de Política Social e Serviço Social Aplicado. Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1983), mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo (1999) e Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (2004). Participa do Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas (NEPEM- ESS – UFRJ). Educador popular do NEP 13 de Maio. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociologica, Sociologia Política e Sociologia do Trabalho. Concentra sua atenção atualmente nos seguintes temas: ideologia, consciência de classe, classes sociais, processos políticos, partidos, educação popular e teoria do Estado. Membro do CC do PCB.

NOTAS:

1 Apesar destas considerações, Engels reagiu de forma enfática contra a socialdemocracia alemã que deformou e desfigurou seu prefácio à Luta de Classes na França de Marx, transformando-o em um pacífico adorador da legalidade a todo custo, exigindo a publicação do texto na íntegra.

2 Adam Przeworski nos apresenta as palavras de Peter Gay, autor de uma biografia de Bernstein, nas quais apresenta este paradoxo. Diz Gay: “É […] impossível o socialismo democrático? Ou pode ser alcançado tão somente se o partido estiver disposto a abandonar temporariamente o método democrático para chegar ao poder pela violência, esperando poder voltar ao parlamentarismo assim que assumir o controle? Tudo indica que esta segunda alternativa encerra trágicas possibilidades: um movimento democrático que recorre a métodos autoritários para atingir seus objetivos, não deve permanecer democráticos por muito tempo. Não obstante, a primeira alternativa – aferrar-se a procedimentos democráticos em todas as circunstâncias – pode condenar o partido à contínua impotência política” (PRZEWORSKI, 1989, p. 29).

3 Para uma melhor compreensão destas premissas podemos recorrer à Sartre (1979) e sua compreensão sobre a possibilidade da práxis revolucionária que emerge da negação de um determinado campo prático inerte, acabar por alienar-se em uma nova institucionalidade estranhada (IASI, 2006); ou ainda, na compreensão de Mészáros expressas em sua obra Para Além do Capital, quando supõe que a negação do capitalismo poderia se restringir a uma negação jurídico-política que não supera-se o sócio-metabolismo do capital.

4 Ver a respeito o ensaio A crise do capital: a era da hipocrisia deliberada (IASI, 2017, p. 59-84).

5 De certa maneira é o que defende Caio Prado Jr em seu A Revolução Brasileira (PRADO JR, [1966], 1978) quando remete o programa à capacidade da maioria de trabalhadores indicarem a direção da economia para a produção dos bens salários e das condições de vida.

Referências

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