A economia política do extermínio
“Extermínio não!” Moradores de Paraisópolis realizam manifestação contra assassinato de 9 jovens em ação da Polícia Militar durante baile funk na madrugada do dia 1º de dezembro de 2019. Foto: Marlene Bergamo/Folhapress
Paraisópolis e a próxima “tragédia”… Será que conseguiremos confrontar o poder burguês no Brasil sem colocar no centro da agenda política o enfrentamento ao extermínio da população negra? Como colocar no centro da cena política a questão do extermínio?
BLOG DA BOITEMPO
Por Jones Manoel
Tenho uma foto do que era, na época, minha turma de segunda série. Eram dez alunos que estudavam nos fundos da Igreja Católica São Francisco de Assis na favela da Borborema, em Recife. Das dez crianças presentes na foto, apenas duas estão vivas. Eu e mais um. Fui o único a fazer curso superior. Os outros oito morreram. Todos de forma violenta, com tiros ou facadas. Seis deles eu vi os corpos estendidos na rua, esperando o carro do IML chegar. Nas favelas e morros do Brasil há uma estranha curiosidade mórbida por ficar olhando o corpo até ele ser recolhido. Minha mãe, na melhor das intenções, também tinha uma pedagogia um pouco macabra (costume comum a várias mães): levar o filho para ver o corpo e saber como termina quem “entra na vida errada” para tentar dissuadi-lo das “tentações do crime”.
Ampliando um pouco mais a memória, consigo lembrar rapidamente de quase trinta nomes de amigos e colegas com os quais convivi durante infância, adolescência e parte da vida adulta, que foram mortos de maneira violenta. Lembro com clareza de Rafael, que dava em cima da minha irmã, e foi morto com 16 anos em um bar porque um cara estava com ciúmes de sua namorada. Lembro de Juruna, meu colega de capoeira que foi morto com um tiro no olho por um policial. Lembro também de Neto, morto perto do Aeroporto do Recife, também em um bar, com mais de sete tiros etc. Parando para pensar sociologicamente, eu tenho memórias de guerra. Conheço centenas de pessoas assassinadas. Vi muitos corpos e muito sangue espalhado na rua. Porém, teoricamente, eu não estive em uma guerra. Tudo isso aconteceu durante o período auge da linda e pujante democracia brasileira.
Acrescento outro registro de memória pessoal. Quando tinha onze anos de idade, meu pai foi assassinado. Desde muito cedo, aprendi com os filmes de Hollywood que toda polícia tem um departamento de investigação ultramoderno, cheio de técnicas e artifícios capazes de descobrir qualquer crime e, enfim, fazer justiça. Esperava que acontecesse o mesmo com a morte do meu pai. Não foi o que ocorreu. Mais de 80% dos homicídios no Brasil não são investigados ou solucionados. Sem falar na qualidade dos inquéritos e sentenças judiciais dos casos ditos “solucionados”. Meu pai Luis Manoel, ou Mané do Bode (como os amigos chamavam), foi só mais um, entre milhares, a ter a vida ceifada como se não fosse nada.
Esses registros pessoais de memória, depois que me tornei militante e professor, passaram a ser lidos dentro de um prisma sociológico. Note: no Brasil, há um complexo que articula aparatos do Estado e da mal chamada sociedade civil numa sinergia intensa de modo a reproduzir e legitimar uma política de extermínio de milhares de pessoas todos os anos – cerca de 60 mil. Ergue-se toda uma institucionalidade paralela ou um conjunto de leis oficiosas, que todo mundo conhece muito bem, sem que isso implique qualquer contradição fundamental com a estrutura jurídico-política formal do Estado.
Exemplo básico disso. Desde os meus dez anos de idade, ando com o RG no bolso. Até hoje faço isso. Minha mãe me ensinou que não posso sair sem carteira de identificação na rua. A ideia implícita é que eu, garoto negro, pobre e favelado, poderia ser morto e o mínimo era identificar meu corpo. Minha mãe também me ensinou, ainda criança, que quando eu visse a polícia na rua deveria lembrar de nunca correr ou fazer qualquer movimento brusco, pra não correr o risco de provocar algum disparo por parte deles.
Nesses ensinamentos está contida uma sabedoria prática que retrata a realidade não inscrita nos códigos jurídicos ou na Constituição, mas que registra o funcionamento concreto do poder político no Brasil. Aprendi desde cedo formas de tentar tornar-me um pouco menos “matável” – embora ainda tenha que andar com o RG, pois, a despeito do que eu faça, eu continuo um ser matável. E essa realidade material de extermínio convive bem com o Judiciário, o Legislativo, o Executivo, os intelectuais, a universidade, as igrejas, o cinema, os partidos políticos etc.
O fato de termos pessoas que têm memórias e experiências de vida semelhantes ou piores que as de um iraquiano ou um sírio (pra citar países que, nos últimos anos, passaram por guerras brutais fruto de invasão neocolonial do imperialismo) não é uma questão central na política brasileira – mais do que isso: não é e não foi para nenhum presidente da República no chamado período democrático. Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma e Temer contêm poucas diferenças entre si nessa questão. A grande diferença é Bolsonaro, que consegue ser o pior de todos.
O único líder político no pós-ditadura empresarial militar que pode bater no peito e dizer fez ou tentou fazer algo para parar esse extermínio no Brasil chama-se Leonel de Moura Brizola (em sua gestão à frente do governo do estado do Rio de Janeiro). De resto, ou no discurso se coloca um pouco contra (mas mantém tudo na prática) ou reforça a legitimidade da política de extermínio no discurso. Essa legitimação tem ampla guarida inclusive na “esquerda”. Lula da Silva, em 2007, depois de a Polícia Militar matar dezenove pessoas no Rio de Janeiro, disse que “não se enfrenta bandidos com rosas”. A prova de que as dezenove pessoas mortas eram “bandidos” foi… a PM dizer que eles eram bandidos. Lula nunca foi devidamente cobrado por declarações como essas. Em 2015, depois da Rondesp matar doze jovens negros, o governador petista da Bahia, Rui Costa, disse que os policiais são como artilheiros na hora de fazer um gol e que às vezes erram. Rui também nunca foi cobrado como se deve por atitudes como essa e é cotado para uma… candidatura presidencial.
Isso para não falar de como se fazem reflexões sobre Direito, sistema político, democracia, cultura, desigualdade, instituições e afins não incorporando esse dado básico da realidade brasileira: todos os anos mais de 60 mil pessoas são assassinadas. Talvez, e isso é apenas uma hipótese, o centro da questão esteja na economia política: o capital, a acumulação capitalista no Brasil, não sente falta dessa força de trabalho exterminada. Note um dado curioso: mesmo com mais de 60 mil assassinados por ano, formando 1 milhão de mortos em 17 anos, o capital não sente falta ou escassez de força de trabalho. Antes, talvez, o contrário: esse extermínio perene seja funcional ao controle do exército industrial de reserva, ou superpopulação relativa, sempre crescente e com níveis cada vez mais assustadores na periferia do sistema capitalista.
O brilhante sociólogo francês Loïc Wacquant demonstrou com substância a relação entre o neoliberalismo e a onda punitiva de encarceramento em massa. O sistema prisional dos Estados Unidos, por exemplo, chegou a superar os dois milhões de encarados a partir da contrarrevolução neoliberal comandada por Ronald Reagan. Ao sintetizar seus estudos, Wacquant fala de três formas fundamentais de controle da pobreza: a) socialização (por meio de políticas sociais); b) medicalização (por exemplo: internar pessoas em situação de rua, como se o alcoolismo e outros problemas se resumissem a fenômenos biomédicos); e c) encarceramento1. A tese de Wacquant a respeito da relação orgânica entre neoliberalismo e encarceramento se mostra corretíssima, guardadas suas particularidades, também para o Brasil, mas o pensador francês que já escreveu coisas bastante interessantes sobre o nosso país, não percebeu que aqui temos uma quarta estratégia central de controle: o extermínio.
O projeto neoliberal, ampliando o desemprego, o trabalho precário e informal e a chamada marginalidade, veio acompanhado, em nosso país, não só do encarceramento em massa, mas também do aumento sempre crescente da letalidade do Estado. Por isso nosso sistema prisional não pode ser encontrado nas páginas do Vigiar e Punir, de Michel Foucault: ele assemelha-se muito mais a um campo de concentração, com rodadas periódicas também de extermínio e mortes em decorrência de doenças como tuberculose.
A constatação desse dado básico das últimas décadas reforça a hipótese aqui levantada: o neoliberalismo tornou ainda mais funcional à reprodução da ordem capitalista no Brasil o extermínio permanente de milhares todos os anos. O sangue, majoritariamente negro, deve correr para manter o capital lubrificado. Agrego que se faz necessário incorporar um dado fundamental. É incorreto falar somente de extermínio no âmbito da violência direta. Disse certa vez Bertold Brecht,
“Há muitas maneiras de matar uma pessoa. Cravando um punhal, tirando o pão, não tratando sua doença, condenando à miséria, fazendo trabalhar até arrebentar, impelindo ao suicídio, enviando para a guerra etc. Só a primeira é proibida por nosso Estado”
Quantos não morrem todos os anos de fome, falta de atendimento médico, trabalho desumano, precariedade do transporte, ausência de remédios, péssimas condições nos hospitais, secas, grandes obras – como Belo Monte – e afins? Dois anos atrás um militante comunista e enfermeiro me garantiu, durante um debate sobre o tema do extermínio da população negra, que o Brasil não tem menos que 120 mil mortos todos os anos.
Liberais, conservadores, socialdemocratas, “socialistas democráticos” e até certos marxistas, em especial meus amigos trotskistas, adoram fazer contabilidade de corpos na URSS ou na China Popular. Mas que tal fazermos esse exercício aqui mesmo no Brasil?
Poderíamos aprofundar ainda mais a questão e pensar a história da formação social brasileira em longa duração histórica. O genial Darcy Ribeiro já falou do Brasil como um “moinho de gastar gente”, tratando dos ciclos de extermínio de indígenas, negros e afins2. Na história recente do Brasil, é difícil pensar em um momento de modernização desprovido de um grande massacre para coroar as transformações no padrão de dominação política e acumulação de capital: Canudos, Contestado, Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, Carandiru etc.
Em suma, ontem, como hoje, somos um moinho de gastar gente. Uma fantástica fábrica de cadáveres que convive normalmente, com Estado de Direito, “com supremo, com tudo”. Trata-de um genocídio permanente, com sangue e corpos nas ruas todos os dias, com crianças sendo assassinadas com balas de fuzil atravessando seu corpo e nada acontece (um amigo de militância estudou Medicina em Cuba e teve dificuldade de explicar para os cubanos como tem tiroteio todo dia no Brasil e como é normal ver corpos na rua, sendo que não estamos em guerra civil).
Mas e Paraisópolis? Essa é a grande questão. O massacre de Paraisópolis foi o massacre do momento por uma semana. Já passou a repercussão. A família, alguns movimentos populares e juristas com compromisso popular é que ficam até o fim com compromisso com a verdade. O caso passa. A vida volta ao normal. Depois vem “outro caso”. Depois outro. E outro. E assim segue. Desde que me tornei militante, em 2010, não passou um mês sem um “grande caso” da polícia matando alguém. Cláudia, Amarildo, DG, 111 tiros no Costa Barros, Cabula, chacina de Fortaleza etc. etc. etc.
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Aqui mora o centro da questão: esse extermínio é normal. E normal aqui no sentido sociológico da palavra, como conceito: uma série de práticas sociais e suas correspondentes ideologias de legitimação aceitas como parte constitutiva da sociedade em seu funcionamento cotidiano. É como a pobreza. Embora em discurso seja dito que ela é um problema e precisa ser combatida, não deixamos de comer, dormir, beber, estudar, se divertir ou sair toda semana na rua por causa da pobreza. Eu, você e todos nós saímos na rua, vemos pessoas na miséria, voltamos para nossa casa e segue a rotina. O extermínio brasileiro não é uma anomia, nos termos colocados por Émile Durkheim.
Aconteceu Paraisópolis, e vai acontecer a próxima “tragédia”. E a próxima… Usar os “casos” para provar que a polícia é uma máquina no genocídio da população negra ou que existe racismo estrutural é um discurso que tem um impacto na hora, momentâneo, e depois volta tudo ao normal.
Numa coluna anterior aqui do Blog da Boitempo chamada “Duas teses sobre a questão racial no Brasil” eu apontei a importância do antirracismo revolucionário na estratégia da Revolução Brasileira. Será que conseguiremos confrontar o poder burguês no Brasil sem colocar no centro da agenda política o enfrentamento ao extermínio da população negra? Aliás, como podemos colocar no centro da cena política a questão do extermínio? Como tirar esse massacre cotidiano da normalidade, da naturalização, do “é isso mesmo”?
Essas são perguntas centrais para esse ano que se inicia. Para fazer com que massacres como o de Paraisópolis deixem de ser comuns. E não vou tentar, agora, fornecer as respostas. No decorrer do ano, voltaremos a esse tema no âmbito das nossas reflexões sobre o antirracismo revolucionário. O primeiro passo, porém, é entender o que disse a música:
“O pedido do secretário de segurança é especifico:
Soldados, atenção! Sem testemunha e feridos;
abatam pelo cabelo, pela roupa, pela cor.
Só cuidado com a laje, com cinegrafista amador.
Dá um vazio vê que ainda não fiz o escrito
com o poder de evitar os enterros coletivos;
impedir que os antigos vizinhos de rua
depois dos bum se tornem vizinhos de sepultura.
Eduardo Taddeo, “A era das chacinas”, A fantástica fábrica de cadáver.
NOTAS
1 Loïc Wacquant, Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos (3° edição). Editora Revan, Rio de Janeiro, 2007.
2 Darcy Ribeiro, O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. Global editorial, São Paulo, 2017.
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Jones Manoel é pernambucano, filho da Dona Elza e comunista de carteirinha. Começou sua militância na favela onde nasceu e cresceu, a comunidade da Borborema, construindo um cursinho popular, o Novo Caminho, junto com seu amigo Julio Santos (ele, Julio e outro amigo, Felipe Bezerra, foram os primeiros jovens da história de Borborema a entrar em uma universidade pública). Depois de dois anos com o cursinho popular, passou a militar no movimento estudantil em paralelo ao seu curso de história na UFPE. Pouco tempo depois, ingressou nas fileiras da UJC (a juventude do PCB). Ativo no movimento estudantil até 2016, hoje atua no movimento sindical e na área da educação popular. Mestre em serviço social, atualmente é professor de história, mantém um canal no YouTube e participa do podcast Revolushow. Segue militante do PCB. Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
A economia política do extermínio: Paraisópolis e a próxima “tragédia”…