O poder das palavras inócuas

imagemDeclarações de Lula e Huck evidenciam contradições dentro da luta contra o bolsonarismo

Lucas Caetano – militante da UJC de São Paulo

Nos últimos dias, o ex-presidente Lula concedeu entrevista¹ ao jornalista Jamil Chade, do UOL, tecendo críticas sobre o governo de Jair Bolsonaro (sem partido), as quais reforçaram algumas obviedades, mas também revelaram uma visão extremamente contraditória acerca da atual conjuntura política do Brasil e sua relação com a ditadura militar. Destaco o seguinte trecho:

“Sinceramente, no tempo do regime militar, eles tinham mais respeito pela Constituição. Tratavam da ordem democrática com um pouco mais de sensibilidade. Com todos os erros da tortura, mas não era a grosseria, o fanatismo que temos agora. Isso me deixa preocupado.”

O que é isso senão relativizar a tortura? Me parece que, sob os picos de autoritarismo, o problema maior para o ex-presidente é a “grosseria”, sendo possível relacionar atos do mais alto nível de desumanidade a “um pouco mais de sensibilidade”.

Ou seja, no fundo — e como sempre nesses casos -, o que vale são as palavras que escapam aos microfones, em detrimento das práticas ocorridas na escuridão dos porões.

Obviamente, não são poucas as diferenças entre Lula e Bolsonaro (bem como entre os que os cercam); no entanto, se analisarmos o cenário político aproximando-nos minimamente de sua totalidade, notaremos que essas diferenças representam apenas sutilezas sem efeitos concretos a médio e longo prazo, já que, a rigor, o que importa é ganhar a próxima eleição.

Ao contrário, vemos a continuidade/intensificação de fatores como o banho de sangue nas periferias, o aumento da população carcerária (majoritariamente preta e pobre) e a metástase de uma letargia a atingir nosso povo, desprovido da consciência de classe que lhe daria base para avançar a partir de sua indignação.

Tais sutilezas revelam que partidos e políticos imersos no atual modelo institucional brasileiro — em colapso, diga-se — não promoverão a necessária ruptura pela saída popular. Dessa forma, resta a opção mais fácil e superficial; por isso, a primeira reação a esse sufocamento foi a ruptura tabajara, aquela cuja validade se restringe ao discurso, mas que em seu âmago significa uma radicalização à direita — fanática e simpatizante da tortura, sem desatar os laços com quem realmente dita as regras do jogo (mercado financeiro, grandes empresários, Estados Unidos…).

Radicalizar à direita implica novos tipos de golpe — ou “golpes dentro dos golpes” — , entre eles a tentativa de fechar o Congresso, resgatando este e demais aspectos sui generis da ditadura empresarial-militar. Digo e sempre reforço o “empresarial”, pois todo o estrago causado na época contou com a anuência e o incentivo dos verdadeiros poderosos, ou seja, pela ruptura tabajara. E hoje isso não seria diferente.

Bolsonaro e sua corja pretendem sair às ruas no dia 15 de março para dar esse passo à frente. O presidente divulgou a mensagem apenas via Whatsapp aos seus pares, para que ele pudesse alegar que isso se trata de conteúdo estritamente pessoal, como de fato o fez. A convocação para a marcha fascista², porém, foi espalhada pela ministra da Cultura, Regina Duarte, em seu Instagram, de modo confuso, sem sequer uma legenda.

Sem dúvida, é essencial a construção de um grande movimento para, também nas ruas, realizar uma oposição consistente ao governo Bolsonaro — englobando uma esquerda disposta a tocar um projeto coerente e consequente — na busca por um freio instantâneo à ofensiva ultraconservadora. Entretanto, não se deve perder de vista um horizonte popular, de massas, para além dos limites institucionais. Caso contrário, estaremos fadados, novamente, a caminhar em círculos.

Enquanto não houver a percepção de que a solução deve se dar mirando o Poder Popular, seguiremos presos às palavras, muitas vezes bonitas, outras grosseiras, mas quase sempre inócuas. Impulsionada por elas, está a construção de uma Frente Ampla³, idealizada pelo governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), para as eleições municipais deste ano, congregando setores da esquerda e da direita unidos pelo objetivo comum de frear o ultraconservadorismo no Brasil. Não estranhemos, por exemplo, se Lula, Dino, Fernando Henrique Cardoso, Luciano Huck e Rodrigo Maia sentarem à mesa para, juntos, enfrentarem o bolsonarismo.

As palavras podem ser vazias, mas também são capazes de formar um amálgama de contradições à medida que se entrelaçam. Nas últimas semanas, Bolsonaro vomitara mais uma de suas pérolas, em nova demonstração de um dos piores níveis de machismo, incluindo trocadilhos de cunho sexual, ao referir-se à jornalista Patrícia Campos Mello. Essa foi a gota d’água para Luciano Huck. Em seu Twitter, ele anunciou que, naquele momento, as “fronteiras da decência foram ultrapassadas”⁴.

Por que só agora? Quer dizer que não houve, antes disso, nenhum registro de indecência do presidente? As incontáveis atitudes racistas, misóginas, corruptas, milicianas, sempre lado a lado com as reverências à ditadura, eram, portanto, “decentes”. E para alinhar o discurso “amplo” contra Bolsonaro, Lula soma-se ao apresentador, chegando ao ponto de, publicamente, relativizar a tortura.

Ou seja, à primeira vista, palavras grosseiramente ditas foram o motivo de tal reação de Huck, e não todo o pacote composto pelo bolsonarismo. Já sobre a marcha fascista, Lula voltou manifestar repúdio, desta vez reverberado por FHC, entre outros⁵. Disse o tucano, mais um a demonstrar o “espanto” tardio:

“A ser verdade, como parece, que o próprio Pr tuitou [na verdade, enviou a amigos por WhatsApp] convocando uma manifestação contra o Congresso (a democracia) estamos com uma crise institucional de consequências gravíssimas[…]”

As reações acima trouxeram novas palavras, bonitas, enfáticas, mas que, se analisadas por cima, sinalizam um dissímulo da estratégia imediata principal: emplacar a Frente Ampla. Estamos em ano eleitoral, é preciso consolidar desde já o seu capital político durante os pleitos municipais para, finalmente, buscar o Poder em 2022.

No livro “O 18 de brumário de Luís Bonaparte”, Karl Marx traça um raio X da luta de classes e do Estado francês no intervalo entre a Revolução Francesa e o golpe de Estado que culminou na ascensão de Napoleão III, bem como a consolidação dos interesses burgueses. Em um trecho da obra, o autor critica veementemente os democratas, alertando para os reais interesses desse grupo:

[…]por representar a pequena burguesia, ou seja, uma classe de transição, na qual os interesses de duas classes se embotam de uma só vez, o democrata tem a presunção de se encontrar acima de toda e qualquer contradição de classe. Os democratas admitem que o seu confronto é com uma classe privilegiada, mas pensam que eles é que constituem todo o povo junto com todo o entorno restante da nação, que eles representam o direito do povo, que o seu interesse é o interesse do povo. Por conseguinte, não teriam necessidade de verificar, na iminência de uma luta, os interesses e posicionamentos das diferentes classes. (MARX, 2011, p.67)

Qualquer semelhança não é mera coincidência. A Frente Ampla aglutina sobretudo os “democratas” da atualidade, cujo conceito de democracia só se aplica debaixo dos próprios narizes. Portanto, a ameaça à sua liberdade, emerge no momento em que sua atividade institucional está em xeque. Nas periferias, não há e nunca houve democracia; pobres e pretos vivem à mercê do genocídio que a cada minuto dilacera seu presente e futuro, ao mesmo tempo em que apaga o seu passado. Tudo em nome de um projeto eufemizado pelas palavras.

Para os democratas, contudo, só agora a democracia entrou em vertigem. A democracia deles.

Por isso, entra em ação a Frente Ampla. Conservadores — super, hiper e mega — também serão muito bem recebidos. Basta que suas palavras mascarem a grosseria dos porões.

Notas

1. Entrevista de Lula a Jamil Chade. (https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/02/22/guedes-e-heleno-mostram-desqualificacao-do-governo-bolsonaro-diz-lula.htm)

2. Convocação de Regina Duarte em seu Instagram. (https://www.instagram.com/p/B9A6a9JHW-X/)

3. Entrevista de Flávio Dino ao UOL e à Folha de S.Paulo, na qual defende a criação de uma Frente Ampla visando às eleições presidenciais de 2022. (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/01/23/flavio-dino-nao-descarta-chapa-com-luciano-huck-para-a-presidencia-em-2022.htm)

4. Tweet do apresentador de TV, Luciano Huck, sobre o rompimento com as fronteiras da decência por parte de Jair Bolsonaro. (https://twitter.com/LucianoHuck/status/1229897830543896577)

5. Reação de Lula, FHC, entre outros, após convocação para ato anti-Congresso. (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/02/fhc-lula-ciro-e-oab-reagem-contra-ato-anti-congresso-apoiado-por-bolsonaro.shtml)

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