O 31 de março de Jair Bolsonaro
Jair Bolsonaro dá “banana” a jornalistas no Palácio da Alvorada. Ele escolheu esta imagem para divulgar o desmentido da informação, noticiada inclusive por John Roberts, da insuspeita FoxNews (com Eduardo Bolsonaro como fonte), de que ele havia testado positivo para COVID-19.
O que Bolsonaro precisa é de uma guerra, ou ao menos algo que pareça uma guerra. Os venezuelanos já sabem, Trump já sabe… Os brasileiros ainda não, mas saberão em breve.
Por Mauro Luis Iasi.
“Ele se portava como um gênio não reconhecido,
que todo mundo tinha na conta de um simplório.”
Karl Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte
A verdadeira meta do presidente miliciano é um golpe clássico que lhe permita a centralização política necessária, sob a espada militar, sem os incômodos parceiros no Congresso e no STF. Ele expressou várias vezes tal intenção, em entrevistas, declarações, posturas. Portanto, o espanto todo agora manifestado pelos senhores parlamentares e juízes diante da convocação pelo Presidente de um ato pelo fechamento do Congresso e do STF não passa de pura encenação, pura pantomima de indignação.
O que se esconde por trás da manobra diversionista é uma complexa relação de forças entre dois segmentos – a direita e a extrema direita – que medem forças como pugilistas no início de uma luta. Temos trabalhado com a hipótese que há um segmento das classes dominantes que pensou em utilizar Bolsonaro como alternativa para derrotar o petismo e implementar a agenda mais dura do capital em crise. Esse segmento acreditava que podia controlar o miliciano, deixando-o com suas proezas bizarras enquanto se ocupava do essencial: as reformas contra a classe trabalhadora.
O problema é que não se trata, como temos afirmado, de mera bizarrice. A profundidade da crise e as características de nossa formação histórico-social atuam de maneira a dar sustentação ao projeto bolsonarista. Em situação supostamente normal, o retumbante fracasso das medidas econômicas do ultraliberalismo de Guedes apontaria para a alternância como forma da ordem democrática manter-se como capa protetora da ordem do capital sobre nova forma – assim como foi Itamar substituído por FHC e este por Lula.
As próprias classes dominantes interromperam de forma casuística a chamada normalidade, ao depor a presidente sob o pretexto das pedaladas fiscais. Como o fracasso de Temer apontava para a volta de Lula, logo apareceram mais casuísmos jurídicos para tirá-lo do páreo, abrindo espaço para o protofascista vencer as eleições.
Tratava-se, portanto, de um mero coadjuvante em um plano maior, um auxiliar para distrair o público enquanto o mágico faria sua arte, um palhaço de rodeio. Entretanto, como diria Chico Buarque, “quem brincava de princesa acostumou com a fantasia”. O miliciano se crê um messias, um mito, um salvador, e diferente da centro-esquerda, dispõe de meios para resistir às tentativas de derrubá-lo.
Quais seriam esses recursos de que o miliciano dispõe? As aventuras da grande burguesia monopolista lograram fraturar o país e forjaram a unidade da extrema-direita fundada no irracionalismo e sua personificação no capitão. Tal fato lhe confere um apoio de parte das massas que ultrapassa a fidelidade momentânea do bom ou mal desempenho da economia, pois é precisamente esse nexo que se queria obliterar – não pode ser medido por pesquisas de aceitação do governo, uma vez que se trata de pura ideologia em funcionamento: uma cruzada contra a esquerda e os inimigos da Pátria e da família realizada pela gente de bem contra o mal. Evidente que o fundamentalismo religioso opera aqui de maneira decisiva.
O pragmatismo da direita, que sempre funcionou tão bem (a ponto de chegar a ser copiado acriticamente pela centro-esquerda), agora se defronta com algo que ele desconhece e teme. Em situações normais, bastava um pretexto qualquer (que no caso não precisaria nem ser inventado, pois estes existem em profusão), uma campanha midiática para isolar a figura e um desfecho institucional que afastasse o miliciano deslocando o eixo do poder para o Parlamento, com algum tipo de parlamentarismo de ocasião ou algo do tipo, por exemplo, com Mourão.
Se o capitão contasse apenas com o apoio de um segmento de massas, ele já teria caído. Neste ponto intervém outro fator: as armas. Além das relações com milícias (que só não são evidentes para as instituições estabelecidas e para o Ministro da Justiça), temos o apoio das corporações militares – como ficou evidenciado no motim do Ceará – e parte das Forças Armadas, evidenciado pela forte presença militar no governo. Este é um ponto obscuro, isto é, até que ponto o capitão teria como mover segmentos das forças armadas em sua defesa, mesmo que para enfrentar outra parte que resistiria. No entanto, neste momento, não se trata de ter ou não o apoio efetivamente; parecer ter é suficiente para o blefe.
Caso interrompêssemos a análise neste ponto, teríamos praticamente um empate. Aqueles que querem retirar o miliciano teriam posições institucionais, aparelhos midiáticos, um segmento de massas e parte do aparato repressivo. O capitão, por sua vez, teria a seu favor (blefando ou não), parte das massas, aparatos policiais e parte das Forças Armadas. Se tivesse que apostar, acredito que nesse cenário ele já teria caído. Por isso, sustento que aqui entra um fator diferenciador: parece-me que ele ainda se sustenta e sobrevive porque as classes dominantes se encontram divididas.
Há uma fração das classes dominantes que, apesar de perceber o inconveniente da figura e seus riscos, acredita que ele é um mal menor. Afinal, o fundamental são as reformas e a retomada das taxas de lucro a patamares aceitáveis. Se o preço a pagar é a destruição do país e uma aventura fascista, esses senhores estão dispostos a pagá-lo – como já fizeram no passado, diga-se de passagem. Creio que aqui está a chave do enigma da conjuntura: o miliciano ainda não caiu porque as classes dominantes estão divididas quanto à necessidade de tirá-lo e as consequências que daí viriam. A Rede Globo não está sendo contraditória ao denunciar falcatruas e depois elogiar a política econômica, apenas expressa, com isso, a divisão interna de seus verdadeiros mandantes.
Não devemos menosprezar um fato. Não estamos falando de classes dominantes clássicas, que ponderam, pensam, têm seus intelectuais orgânicos, fazem cálculos e pesam riscos e oportunidades. A adesão da burguesia brasileira ao imperialismo e a aceitação de sua existência subordinada e dependente produziu um subproduto que tem um impacto não desprezível na conjuntura – a saber, aquilo que poderíamos chamar de lumpenburguesia. Trata-se de uma fração da burguesia que lucra diretamente com a contravenção e a corrupção (quando não diretamente com o crime), desde pequenos esquemas até mamatas gigantescas. Ela abarca desde um parlamentar que viu seu patrimônio aumentado em 450% em dois anos e que se notabilizou por cortar um bloqueio às terras indígenas em Roraima, passando por parlamentares que, depois de derrubar a presidente eleita em nome da família e dos bons costumes, são presos por pedofilia, corrupção, assassinato e outros delitos, até chegar em grandes empresários e suas relações perniciosas com o Estado, envolvendo grandes obras, contratos vultuosos, verbas públicas, licitações e outros expedientes pelos quais o fundo público é rapinado por interesses privados.
Em um certo momento da Revolução Cubana, Che avaliou que uma das dificuldades no enfrentamento às forças de Batista era que, diferente de exércitos tradicionais, eles teriam que enfrentar uma corporação que havia transformado desde o soldado até os comandantes em sócios das contravenções, do tráfico, dos cassinos, etc. Em grau e forma diversa, presenciamos esse fenômeno nas forças policiais e seu desdobramento nas milícias. Não se trata de desvio de conduta de um ou outro policial, mas de um sistema que envolve desde o comando até a base da corporação, incluindo empresários, políticos, juízes e governantes. Essa fração está mais preocupada em proteger seus negócios. Não liga para os crimes de Bolsonaro, tampouco para as querelas parlamentares, mas teme que ao revelar os crimes de um acabem por expor os seus.
O golpe de 2016 foi perpetrado sob o pretexto de manter a estabilidade contra o desassossego que impedia as reformas, mas o regime parlamentar com o capitão à frente é tudo menos estável. A burguesia estava pronta para um grande acordo, “com Supremo, com tudo”, mas o capitão move peças heterodoxas contra as quais o parlamento pode pouco. Derrotado o petismo (perdão aos otimistas, mas o petismo caiu da mesa do jogo, pois sua única carta é uma eleição “limpa”, por isso permanece à espera de 2022), o miliciano abre suas baterias contra seus aliados: o STF e o Congresso. Mas por quê? Ora, porque o genial plano econômico não vingou e a milagrosa retomada do crescimento não veio. E alguém terá que ser responsabilizado. O capitão é tosco, mas não é burro (bem, talvez seja, mas certamente sabe jogar) e sabe que ele está escalado para esse papel – e que as consequências de não cumpri-lo não são apenas sair e voltar para a churrasqueira na bela casa em um condomínio mal frequentado na Barra, mas ir parar na cadeia junto com seus filhos. Por isso, ele vai reagir – ou, pior, vai tomar a iniciativa –, e tem recursos para tanto.
O inimigo é o mesmo: o socialismo! Marx, em seu magistral O 18 de brumário de Luís Bonaparte, comenta o um momento em que Luís Napoleão se choca com os interesses parlamentares, passando a acusá-los de socialistas. Nas palavras dele: “Declara-se como socialista o liberalismo burguês, o Iluminismo burguês e até a reforma financeira burguesa” (p. 80). Entre nós, sob o signo da farsa, já tem gente falando que a Regina Duarte é um plano da esquerda para sabotar o governo Bolsonaro, a Rede Globo é esquerdista, o STF é uma instituição a serviço do comunismo internacional, comandado desde a Venezuela.
O paiol está cheio de explosivos, mas falta a faísca que fará tudo explodir. Para os dois lados, o que falta é mobilizar o pretexto. No caso do parlamento e da fração que quer a saída da peça incômoda para seguir o essencial do plano, pretexto já existe (o presidente já cometeu, segundo analistas insuspeitos, pelo menos dez crimes de responsabilidade), mas se depararam com uma correlação de forças que abre a possibilidade de confronto e eles são, fundamentalmente, covardes. O miliciano, ao convocar os atos, colocou as instituições nas cordas, uma vez que estas se viram obrigadas a responder ou aceitar seu destino de viver sob a ameaça de um irresponsável. Agora, por conta da pandemia do coronavírus, os atos foram desmarcados. Fica a impressão de que o vírus acabou sendo uma saída honrosa para o golpista e o Congresso. No entanto, parece só adiar o problema.
Segue o plano de interromper o processo com um ato de força, mas, para tanto, o capitão miliciano precisa de uma situação que justifique o ato de força para fechar o Congresso e estabelecer sua ditadura. E, evidentemente, esta não podem ser as emendas parlamentares que engessam o orçamento ou professores universitários pelados, fumando maconha e dando aula de marxismo nos cursos de engenharia.
A viagem do miliciano aos EUA nos dá a pista. O que Bolsonaro precisa é de uma guerra, ou ao menos algo que pareça uma guerra. Os venezuelanos já sabem, Trump já sabe… Os brasileiros ainda não, mas saberão em breve.
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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.