Vocês (ainda) estão aqui!

imagemCoronavírus e os trabalhadores “autônomos”

Esse escrito foi elaborado por duas pessoas que viram o filme Você não estava aqui no finalzinho de fevereiro e início de março, em sessões separadas. As angústias despertadas pelo filme e os incentivos de alguns amigos nos levaram a escrever essa breve crítica. Quando surgiu a ideia de escrever sobre a temática do filme, o surto do Covid-19 ainda não havia chegado a tal nível no Brasil. À época, pensamos em direcionar o texto a uma visão crítica sobre os “serviços informais” oferecidos no Brasil e dialogar com o filme. Contudo, nesses últimos dias, todas as mortes e o aumento do número de pessoas infectadas com o vírus cresceram tanto que não tem como falar da informalidade do trabalho e não relacionar com a atual crise que nos aflige. Vamos ao filme então…

Você não estava aqui, do diretor britânico Ken Loach, aborda questões relacionadas ao que tratamos como a uberização do trabalho. Logo de início, o personagem principal do filme, Ricky Turner, é convidado a embarcar em um “trabalho autônomo” numa empresa que realiza entregas em uma cidade inglesa. “Você não trabalha para nós, você trabalha conosco!” é um dos jargões utilizados pelo empregador no início do filme. O cotidiano da família Turner, Abbie (esposa), Seb (filho) e Lisa Jane (filha) vai sendo modificado pelo novo trabalho de Ricky, onde será traço marcante o constante distanciamento, pelo menos físico, e a culpabilização mútua entre seus membros.

“Você está exausto!”, diz Abbie em um dos diálogos com Ricky durante o filme. As longas jornadas de trabalho, acima das 14 horas diárias, associadas ao aumento da intensidade do trabalho, obrigam, em um dos momentos do filme, o protagonista a urinar em uma garrafa para economizar tempo. Associado a isso, a transferência dos gastos, da empresa para o trabalhador, com a saúde e responsabilidades com a escala (em caso de falta); pagamento e manutenção do carro, no caso do próprio protagonista; materiais fornecidos pela empresa e os objetos a serem entregues são determinações que desmascaram a ideologia “empreendedora” proposta no neoliberalismo. Loach, amparado na realidade dos trabalhadores de aplicativo, nos apresenta a condição de superexploração da força de trabalho.

O que é sensacional e, ao mesmo tempo, angustiante no filme, é que ele articula dialeticamente o singular-particular-universal. A partir da história da família Turner, podemos refletir acerca dos processos de flexibilização e precarização no mundo do trabalho contemporâneo; da dinâmica distinta e articulada entre centro e periferia do capitalismo; do uso da tecnologia como elemento intensificador e controlador do trabalho e, no momento em que escrevemos esse texto, sobre a pandemia do novo coronavírus (Covid-19).

Ao longos dos últimos 40 anos a “epidemia neoliberal da flexibilização do trabalho” se espalhou pelo mundo, fruto de uma reorganização do capital, em que são alterados processos na aparência do sistema, mas sua essência permanece intocada. A acumulação capitalista depende da exploração da força de trabalho, que a todo custo tenta destruir as barreiras legais que garantam direitos aos trabalhadores. Assim foi com a elevação nas terceirizações, privatizações, formas de contratação chamadas “atípicas” (diferentes dos contratos estáveis que havia antes) nos países de capitalismo central e que cada vez mais ganham terreno nestes, como muito bem mostra Você não estava aqui.

Para nós, país de capitalismo dependente, não são formas atípicas, pois a precarização sempre andou de ‘mãos dadas’ (ainda mais em tempos de pandemia) com os trabalhadores brasileiros. Apesar do trato diferenciado ao longo das últimas décadas, o trabalho informal e/ou autônomo sempre esteve presente. O que é essencial apreendermos é que atualmente ele assume um caráter distinto para a acumulação de capital, quando entendemos o processo de exploração como a exploração de um trabalho/trabalhador coletivo. O avanço das empresas de aplicativos é uma expressão desta dimensão (dentre outras determinações). Vejamos em números oficiais.

Segundo matéria publicada pela Carta Capital, em outubro de 2019, o Brasil bateu recorde de trabalhadores na informalidade, algo estimado em 38 milhões de trabalhadores, 41,4% da população ocupada no país. Destes, cerca de 21% estão na classificação de “trabalhadores por conta própria”. Os números em relação às contribuições previdenciárias são decrescentes: em 2017, 65,3% da população ocupada contribuía para a previdência, já em 2019, são 62,4%. Os aplicativos se tornaram os maiores empregadores no país, já são mais de 14 milhões de trabalhadores e trabalhadoras nesta modalidade de trabalho.

Os Rickys daqui são Joões, Marias, Thiagos, que pedalam, dirigem e “embarcam” em uma condição de trabalhadores sem direitos, em um “empreendedorismo por necessidade” e muitas vezes sem volta. Não estamos, evidentemente, negando o papel da dimensão ideológica de querer “ser seu próprio patrão”, que tem um importante peso na decisão de alguns trabalhadores, mesmo que carregado de outras determinações. As implicações disso são as mais variadas: como Ricky, eles trabalham longas jornadas e sentem a transferência dos custos na pele, antes assumidos pelas empresas contratantes. Pagam o aluguel ou compram as bicicletas, motos ou os carros, além de sua manutenção; do mesmo modo o fazem com o combustível, os celulares, a alimentação etc. Além disso, “não podem” adoecer ou se acidentar (como se isso fosse possível de controlar!), ter férias ou compromissos além do trabalho. Um dia sem trabalhar pode comprometer o mês! Apenas esta rotina diária já é um verdadeiro atentado ao corpo. A doença pode não se manifestar imediatamente, mas o desgaste do corpo e da mente vai acontecendo pouco a pouco.

Devido à pandemia do Covid-19 isto se agrava. Com o aumento da divulgação na mídia e dos casos confirmados da doença, as ruas começam a ficar mais esvaziadas, mas “eles (ainda) estão lá!” e não vão sair. Amontoados em calçadas próximas a restaurantes, vários trabalhadores com os bolsões verdes, laranjas, roxos e vermelhos ficam diante dos celulares aguardando o chamado. “Eu já nem sei se tenho mais medo de ficar doente, ou sem trabalho”, resume um entregador.

O isolamento social é uma medida sanitária necessária, no caso desta epidemia, mas não morrer de fome e sustentar suas famílias é uma necessidade diária maior para esses trabalhadores. Não importa que se fique doente ou carregue o vírus para a comunidade ou família, a necessidade básica fala mais alto. Brecht é certeiro: “Pra quem tem uma boa posição social, falar de comida é coisa baixa. É compreensível: eles já comeram”.

Talvez esse movimento continue pelos próximos dias, esses trabalhadores e trabalhadoras precisam continuar nas ruas para não morrerem de fome. O Estado não garante sua seguridade, pelo contrário, retira a renda mínima dos que deveriam ficar em casa. Agora, como trabalhar se o governo “impôs” uma quarentena, que limita o ganha-pão desses trabalhadores, ao mesmo tempo em que não lhes garante o básico para sua sobrevivência durante o isolamento?

O Coronavírus é uma ameaça que ainda não chegou ao corpo, e quando chega pode ficar ali quieto por um tempo. A fome queima o estômago, impele o pai e a mãe necessitados a colocar comida em casa. Quando Ricky sofre adoentado na fila do hospital sem atendimento, no dia seguinte pega seu carro e sai para trabalhar. Essa é a rotina dos trabalhadores informais, a doença não é um limitador até que se torne impossível trabalhar.

Alguns veículos midiáticos afirmam que o vírus é “democrático”, está aí para infectar todas e todos. Com um olhar estritamente biologista, isso pode até ser confirmado, mas devemos entender que a saúde é “determinada socialmente”, isso significa dizer que alguns adoecerão e morrerão mais que outros, e isto não é obra divina ou do acaso. Essas determinações têm traços classistas, de gênero e raciais. Os trabalhadores mais precarizados são os pobres e negros (onde estão nossos “autônomos informais”); as pessoas em situação de rua são negras em sua maioria; as pessoas privadas de liberdades (“presidiários”) nem se fala; entre outros, são exemplos de camadas mais “vulneráveis socialmente”. É a casa precária com um cômodo para 6 pessoas, a falta no abastecimento de água, o ônibus lotado, o baixo salário…. Não à toa, as primeiras mortes por Covid-19 no Brasil foram de um porteiro e de uma empregada doméstica.

Por isso, exigir a responsabilização dos empregadores em relação a estes trabalhadores é essencial, não apenas em um momento de agravamento à saúde pública. Mas é óbvio que muitos deles vão bradar “o problema não é meu, não consigo empregar se o movimento está parado”, ou vão reclamar quando o Estado tomar providências respaldado na lei para garantir o interesse coletivo.

Temos diante de nós algumas medidas necessárias a serem tomadas, que compreendam a realidade brasileira, para atacar a epidemia do Covid-19 e a precarização do trabalho. Imediatamente, empresas e Estado têm que se responsabilizar por esses trabalhadores, garantindo a remuneração necessária e o direito à quarentena. A revogação imediata da Emenda Constitucional 95, que congela os gastos na saúde e educação. Os direitos trabalhistas, previdenciários, o financiamento adequado do Sistema Único de Saúde (SUS), os limites na jornada de trabalho e na intensidade do trabalho, a remuneração suficiente são elementos fundamentais para garantia da saúde dos trabalhadores e de uma vida digna. Afinal, o trabalho deveria ser apenas um componente de nossas vidas e não tomar conta dela toda, ou pior, acabar com ela antes do tempo!

Na contramão do exposto no parágrafo anterior temos as medidas tomadas pelos governos brasileiros, que estimularam a ampliação da informalidade, o sucateamento do SUS, que por mais importante que seja no dia a dia hoje dá provas nítidas do pouco investimento, as contrarreformas trabalhista e previdenciária, o congelamento dos gastos públicos por 20 anos…. O Estado escancara seu caráter classista e racista, e isso não é a primeira vez. Historicamente, no Brasil, temos exemplos de como o Estado impõe aos pobres um padrão higienista que não leva em conta a realidade desses, foi assim ao longo do século XIX e XX. Proíbe a ricos e pobres de saírem às ruas, mas a rua é o lugar onde esses últimos tiram seu sustento.

Sentimos que junto a população existem sopros de esperança. Ouvimos alguém exclamar “a vacina está vindo”, “a China vai ajudar”, “em setembro isso passa”, mas ao final desse período de pandemia voltaremos à rotina normal em que algumas doenças são aceitas, a falta de saneamento básico faz parte do dia a dia e o desemprego leva muitos trabalhadores a informalidade. Eles ainda estarão lá ! Até quando?

Maxuel França é Historiador, Mestrando em História pela Universidade Federal de Pernambuco; militante do Partido Comunista Brasileiro.

Paulo Lira é Médico Veterinário, Sanitarista e Mestre em Saúde Pública pelo Instituto Aggeu Magalhães — Fiocruz — Pernambuco; militante do Partido Comunista Brasileiro.