A política de extermínio da ditadura

imagemNota da Editoria da página do PCB:

Em função de mais uma passagem do famigerado golpe militar-empresarial de 1964, que destituiu o governo democrático de João Goulart em 31/03/1964, inaugurando um período de 21 anos de regime autocrático, reproduzimos artigo do camarada Edmilson Costa, publicado aqui em 10 de maio de 2018, em virtude da divulgação, à época, de documentos desclassificados da CIA, comprovando a participação direta do alto comando das Forças Armadas nas ordens para dar continuidade às perseguições e assassinatos dos militantes de oposição à ditadura, durante uma reunião comandada pelo ditador Ernesto Geisel em 30 de março de 1974.

Edmilson Costa*

Os desinformados, ingênuos, ou aqueles que negavam a ocorrência das torturas, dos assassinatos e desaparecimentos de presos políticos durante a ditadura militar, mesmo sabendo que estas barbaridades existiam, agora estão diante de um grande dilema: um documento desclassificado e assinado pelo diretor da CIA, Willian Colby, para o Secretário de Estado, Henry Kissinger, relata de maneira clara como a cúpula militar brasileira não só tinha conhecimento da barbárie que ocorria nos porões da ditadura, como também autorizava pessoalmente o assassinato dos militantes que consideravam perigosos para a ordem ditatorial. Com a divulgação desse documento, 44 anos após sua elaboração, está provado que tortura, morte e desaparecimentos de oposicionistas eram políticas oficiais do governo militar.

O documento da CIA relata uma reunião, no dia 30 de março de 1974, entre o ditador Ernesto Geisel, recém-empossado, e os três chefes dos principais órgãos de inteligência do regime, a saber: João Baptista Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Informações; o general Milton Tavares de Souza e o também general Confúcio Danton de Paula Avelino, respectivamente ex-chefe e aquele que iria assumir o Centro de Informações do Exército (CIE). Durante a reunião, o general Milton, o mais falante de todos, relatou o trabalho do CIE durante o governo Médici, anunciando que 104 “subversivos perigosos” foram sumariamente executados no ano anterior ou pouco antes, e defendeu que esses “métodos extra-legais” deveriam continuar no próximo governo.

O general Geisel, relutante, falou sobre aspectos prejudiciais dessa política e pediu um tempo para refletir sobre a questão. No entanto, o general João Figueiredo concordou plenamente que esse método deveria continuar. No dia primeiro de abril, Geisel já tinha tomado a decisão: autorizou o general Figueiredo a continuar a política de execução de prisioneiros, ressaltando que só deveriam ser assassinados “os subversivos perigosos” e recomendando que, quando o CIE detivesse um prisioneiro dessa categoria, só o deveria executar com a aprovação expressa do general Figueiredo.

O documento da CIA deve conter ainda coisas mais escabrosas, pois vários parágrafos, possivelmente por sua alta sensibilidade e talvez por comprometer pessoas ainda vivas, estão com tarja preta, impossibilitando a leitura. O documento do diretor da CIA vem comprovar de maneira cristalina aquilo que prisioneiros sobreviventes, militantes e defensores dos direitos humanos já vinham denunciando há décadas e que a Comissão da Verdade Nacional e as comissões estaduais e específicas já tinham identificado nos depoimentos de prisioneiros e torturadores que resolveram falar, bem como em relatos pela imprensa e livros escritos por jornalistas investigativos, que colheram depoimentos de torturadores que resolveram contar o que sabiam. Muitas coisas ainda precisam vir à tona, mas o documento da CIA vem provar que houve tortura, assassinatos e desaparecimentos no período ditatorial. Ou seja, o mentor de todos eles, a CIA, se encarregou de abrir para o público o que acontecia nos porões e na cúpula da ditadura.

Os esbirros da ditadura tinham um código cruel: deveriam ser executados os principais dirigentes da guerrilha urbana e todos aqueles que haviam sido trocados pelos embaixadores e que retornassem ao Brasil, os que justiçaram torturadores e empresários que financiavam a tortura, bem como aqueles que realizaram treinamento nos países socialistas, especialmente em Cuba. Quando a guerrilha urbana já estava derrotada, restava apenas o PCB como organização com capacidade política para unir várias forças políticas, em função de sua estratégia de unidade das forças democráticas e sua inserção social, em consequência de seu trabalho de organização no principal centro operário do País, o ABC paulista; além da influência junto à juventude estudantil, devido à atuação no meio dos jovens brasileiros, fato que explica o brutal assassinato, com injeção de matar cavalo, do secretário político da União da Juventude Comunista, José Montenegro de Lima.

Vale ressaltar que, além dos companheiros de outras organizações assassinados, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi a organização que pagou um dos tributos mais caros na luta contra a ditadura. No período de 1974-75, cerca de dois mil militantes foram presos ou torturados, toda sua organização operária e estudantil foi desbaratada e foram assassinados na tortura um terço do Comitê Central, muitos destes camaradas sob uma crueldade brutal. Davi Capistrano foi esquartejado e seus restos pendurados como gado após ser assassinado na tortura. Elson Costa, após vários dias de suplício, como não fornecia informações aos algozes (o que foi a marca registrada de todos os que foram assassinados), teve seu corpo embebido em álcool e redebido o ultimato: ou fala ou vai morrer. O camarada Elson continuou calado, e os torturadores o queimaram vivo. Outros foram assassinados com injeção para matar cavalo e ainda outros, após a tortura, tiveram seus corpos queimados nos fornos da usina Cambahyba, no Estado do Rio de Janeiro.

As razões para o massacre

Para a ditadura, a abertura não poderia ser realizada com a emergência de um Partido Comunista forte, com uma linha política vitoriosa e influente junto às forças democráticas, com inserção no principal centro do proletariado e com forte prestígio junto à juventude estudantil. Estas foram as principais razões pelas quais a cúpula da ditadura militar resolveu exterminar fisicamente dirigentes e militantes do PCB. Foi uma ofensiva cientificamente planejada e executada: mata-se a cúpula do partido, prende-se quase toda a militância, desbaratam-se suas organizações de massa e aí então a abertura pode ser feita sem surpresas desagradáveis. Existe um documento confidencial do Ministério do Exército, intitulado “Neutralizando o PCB”, no qual os chefes da inteligência militar estabelecem a estratégia para o extermínio do PCB, inclusive citando nominalmente os dirigentes que deveriam ser “neutralizados” para que se pudesse desarticular a máquina clandestina do Partido.

Entre estes dirigentes constavam da lista da inteligência da ditadura Giocondo Dias (Secretário-Geral), Hércules Corrêa (responsável sindical, residindo na então União Soviética, cujo retorno era esperado pela ditadura em função das quedas do PCB), Orlando Bonfim Jr.(considerado pela repressão como o segundo homem na hierarquia do Partido), Jaime Amorim de Miranda (considerado o quarto homem na hierarquia, mas vivendo na URSS; ao regressar foi assassinado), Aristeu Nogueira (do secretariado do Comitê Central e da Comissão de Controle), Renato Mota (responsável pela ligação com o setor militar do Partido), Elson Costa e Hiran de Lima Pereira (ambos responsáveis pela secretaria de agitação e propaganda). Todos eles tinham responsabilidades estratégicas na máquina clandestina do PCB. Quase todos foram presos ou assassinados na tortura. Agora se sabe que suas mortes não foram “acidentes” ocorridos nas sessões de tortura, mas execuções ordenadas pela mais alta cúpula do regime.

É importante que o proletariado brasileiro e a juventude tenham conhecimento não só do enorme sacrifício desses camaradas, mas principalmente do trabalho clandestino que o PCB realizou nesse período, o que enfurecia a ditadura e foi o principal motivo para a tentativa de extermínio do PCB. O PCB, por não ter aderido à luta armada, teve condições de realizar um paciente trabalho de massas junto à classe operária e à juventude, além do fato de que, até 1975, publicou mensalmente seu jornal clandestino, a Voz Operária, onde denunciava os crimes da ditadura, informava sobre os acontecimentos políticos que a imprensa censurada não podia publicar e incentivava a organização política e popular contra o regime.

O trabalho junto à classe operária foi realizado a partir do “Plano de Construção do Partido nas Grandes Empresas”, tendo como região piloto o Grande ABC, especialmente as grandes empresas. Num paciente e perigoso trabalho de base, o PCB conseguiu organizar células comunistas em todas as grandes empresas do ABC. De acordo com Lucio Bellantani, secretário político do Comitê de Empresa da Volks e principal dirigente operário da época, ainda vivo, o Partido estava organizado nas principais seções da Volks, tinha militantes inclusive próximos à gerência da empresa e distribuía mensalmente 150 exemplares do jornal Voz Operária entre os trabalhadores. Esta organização foi destroçada na ofensiva contra o PCB, com a prisão de dezenas de operários e todo o Comitê Clandestino na região.

Outro trabalho importante do PCB nesse período foi a linha política de construção da UNE de Massas, a partir do documento “Movimento Universitário: Reconquistar sua força, Papel e Prestígio”. Diante das dificuldades de atuação da UNE na clandestinidade, o PCB elaborou uma política de organização dos estudantes a partir de seus cursos específicos, através dos “encontros científicos dos estudantes” que reuniam inicialmente estudantes de um curso de determinada universidade, depois realizavam-se os encontros estaduais e, posteriormente, os encontros nacionais de cada curso. Entre 1971 e 1974 foram realizados encontros nacionais de estudantes de vários cursos, e o objetivo final era a construção da UNE de Massas, a partir das reivindicações específicas e encontros nacionais de estudantes de cada curso, o que deveria culminar na construção da entidade nacional com forte base social. Com as prisões, não se conseguiu o objetivo de reconstruir a UNE em novas bases. Mas as executivas de curso que ainda existem hoje são consequências diretas da política formulada naquele período.

Agora, quando vem a tona este documento da CIA, é fundamental que se realize um ajuste de contas com o passado, com o julgamento e prisão dos torturadores e mandantes ainda vivos. Não há mais nenhum motivo para que o Supremo Tribunal Federal continue com o entendimento de que a anistia vale para todos, torturados e torturadores. Está claro que a máquina de repressão tinha comando na mais alta cúpula, suas atividades eram controladas por seus comandantes, suas ações documentadas (104 executados na época da reunião da cúpula militar) e, portanto, está na hora da abertura dos arquivos da ditadura para que se possa tomar conhecimento tanto das circunstâncias dos crimes cometidos pela ditadura, mas principalmente para que os agentes responsáveis sejam obrigados a informar onde estão os corpos dos prisioneiros assassinados e desaparecidos.

Por memória e justiça!

*Edmilson Costa é secretário geral do PCB

Abaixo, a íntegra do documento da CIA, agora revelado.

Memorando do diretor da Agência Central de Inteligência Colby para o secretário de Estado Kissinger

Washington, 11 de abril de 1974.
Assunto: Decisão do presidente brasileiro Ernesto Geisel de continuar a execução sumária de subversivos perigosos sob certas condições
1. [1 parágrafo (7 linhas) não desclassificado]
2. Em 30 de março de 1974, reuniu-se presidente do Brasil, Ernesto Geisel, com o general Milton Tavares de Souza (chamado de general Milton) e o general Confúcio Danton de Paula Avelino, respectivamente o chefe que sai e o que entra do Centro de Informações do Exército (CIE). Também esteve presente o general João Baptista Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI).
3. O general Milton, que falou durante a maior parte do tempo, detalhou o trabalho da CIE contra os alvos subversivos internos durante a administração do ex-presidente Emilio Garrastazu Médici. Ele ressaltou que o Brasil não pode ignorar a ameaça subversiva e terrorista, e que os métodos extralegais devem continuar sendo usados contra subversivos perigosos. A este respeito, o general Milton disse que cerca de 104 pessoas nesta categoria foram sumariamente executadas pelo CIE durante o ano passado, ou pouco antes. Figueiredo apoiou essa política e insistiu em sua continuidade.
4. O presidente, que comentou sobre a seriedade e os aspectos potencialmente prejudiciais desta política, disse que queria refletir sobre o assunto durante o fim de semana antes de chegar a qualquer decisão sobre sua continuidade. Em 1º de abril, o presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que muito cuidado deveria ser tomado para assegurar que apenas subversivos perigosos fossem executados. O presidente e o general Figueiredo concordaram que quando o CIE prender uma pessoa que possa se enquadrar nessa categoria, o chefe do CIE consultará o general Figueiredo, cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa seja executada. O presidente e o general Figueiredo também concordaram que o CIE deve dedicar quase todo o seu esforço à subversão interna, e que o esforço geral do CIE será coordenado pelo General Figueiredo.
5. [1 parágrafo (12½ linhas) não desclassificado]
6. Uma cópia deste memorando será disponibilizada ao Secretário de Estado Adjunto para Assuntos Interamericanos. [1½ linha não desclassificada]. Nenhuma distribuição adicional está sendo feita.

https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1969-76ve11p2/d99

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