Luta de classes em tempos de pandemia

imagemProfissionais da saúde cubanos em ação solidária na Venezuela: de casa em casa para detectar pessoas com sintomas da pandemia.
Foto: Jorge Pérez Cruz

Crise orgânica, recessão econômica e lutas de classes no Brasil em tempos de pandemia

por Rodrigo Castelo

Em 2013, com as Jornadas de Junho, abriu-se no Brasil um período histórico de crise orgânica. Este período – que pode ser de longa duração, como adverte Antonio Gramsci – começou como uma crise de hegemonia no bloco de poder dominante organizado em torno do governo de conciliação de classes do Partido dos Trabalhadores (PT). A mobilização de massas iniciou-se com protestos populares em torno de pautas sociais e, no seu desenrolar, camadas médias e da burguesia trouxeram pautas conservadoras de combate à corrupção, posteriormente hegemonizando os protestos de rua. Os acordos costurados por organizações democrático-populares e grupos sociais dominantes foram rompidos e surgiram novos projetos de dominação burguesa no país.

A partir do biênio 2014-15, tivemos a confluência das crises de hegemonia, econômica e social no Brasil com (1) a fragilidade política da presidenta eleita por estreita margem de voto e o punitivismo da Lava -Jato, (2) a queda das taxas de crescimento econômico e das taxas de lucro, o aumento da superexploração e das expropriações dos meios de subsistência da classe trabalhadora e (3) a intensificação de expressões da “questão social”. Essa confluência de diferentes dimensões de crise configura, dentre outros fatores, tempos de crise orgânica. Além disso, surgiram fenômenos patológicos diversos, dos quais o recrudescimento de forças reacionárias foi um dos mais marcantes, culminando no golpe de 2016 e na vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018.

No último ano do primeiro mandato de Dilma Rousseff, a crise capitalista era uma realidade. A marolinha tinha virado uma tsunami. No plano externo, a queda dos preços internacionais de commodities exportadas pelo Brasil impactou fortemente a nossa balança comercial. A aposta no ciclo de alta dos preços das mercadorias do agronegócio mostrou-se novamente uma forma de aprofundamento da dependência do Brasil à divisão internacional do trabalho imposta pelos países imperialistas. No plano interno, o produto interno bruto (PIB) cresceu míseros 0,5% em 2014 e, no ano seguinte, a recessão mostrou suas garras com a queda do PIB em 3,5%, seguida de mais uma queda de 3,3% em 2016. O fortalecimento da política econômica neoliberal, comandada por Joaquim Levy, gestor político das frações burguesas rentistas no Estado, foi decisivo para o aprofundamento da crise. A guinada ainda mais à direita da política econômica e anos de apassivamento das organizações de massa da classe trabalhadora pagaram um alto preço, minando o lastro social de uma resistência do governo do PT capaz de barrar o golpe em andamento.

Depois de dois anos de retração, as taxas de crescimento do PIB voltaram a um patamar positivo, mas nunca recuperaram o fôlego, permanecendo estacionadas na faixa de 1% (1,3% em 2017 e 2018 e 1,1% em 2019). Foram, portanto, dois anos de forte recessão e três de pibinhos, totalizando cinco anos de uma brutal estagnação econômica. Por trás das taxas do PIB, temos o desenrolar do conflito distributivo pela riqueza entre lucros e salários. As taxas de lucro seguiram a tendência de queda do PIB no triênio 2014-16, mas logo voltaram a se recuperar em 2017. Para isto, concorreram o aumento da superexploração da força de trabalho e a edição de políticas econômicas ortodoxas pelos governos federais que se acentuaram com o golpismo de Michel Temer, como a privatização de bens públicos, a promulgação da Emenda Constitucional 95 (a do teto dos gastos sociais) e das contrarreformas trabalhistas. O balanço global foi a retomada das taxas de lucro e a queda dos rendimentos da classe trabalhadora, concentrando ainda mais a renda e a riqueza nacionais nas mãos das classes dominantes.

A despeito da instabilidade advinda do processo golpista de impeachment e da prisão política de Lula, a hegemonia da fração rentista do grande capital continuou inabalada. As disputas inter e intra classes se acirraram desde 2013. O bloco de poder dominante no Estado mudou de gerência três vezes nos últimos anos – sendo o governo Temer o de maior impopularidade da história da República – e, ainda assim, a supremacia rentista foi capaz de reafirmar a sua direção intelectual-moral. Em primeiro lugar, esta supremacia é reorganizada no mundo da produção com novos maquinários e a inteligência artificial da indústria 4.0, o aumento da superexploração e da precarização da força de trabalho e o enfraquecimento dos sindicatos, permitindo uma retomada da alta das taxas de lucro dos conglomerados do capital financeiro financeirizado. Em segundo, os postos-chave do Estado continuam ocupados por gerentes do capital monopolista, garantindo a linha neoliberal de superávit primário, câmbio flutuante, metas de inflação, tributação regressiva e benefícios fiscais e creditícios aos seus patrões.

O ponto alto da supremacia rentista foi a constitucionalização da austeridade fiscal com a Emenda Constitucional 95 – escudada por trincheiras jurídicas bem guarnecidas, como a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e a Desvinculação de Receitas da União (DRU) –, que operam o aumento do saque do fundo público em favor das rendas dos detentores dos títulos da dívida pública. Desde a consolidação do neoliberalismo nos governos do PSDB, impôs-se uma quarentena permanente nos gastos sociais, impedido-os de romper limites determinados pela política econômica ortodoxa.

A vitória de Jair Bolsonaro e seus acordos com a alta burguesia, com destaque para o imperialismo estadunidense, fortaleceram a supremacia rentista. A política econômica de Paulo Guedes, um lumpenrentista de setores menores do grande capital, radicalizou o ultraneoliberalismo herdado de Michel Temer. E, logo no primeiro ano como ministro, anunciou medidas de privatização e/ou desmonte de aparatos estatais, com destaque para o sistema financeiro (Banco do Brasil, BNDES e Caixa Econômica Federal). Na área fiscal, aprofundou os cortes nos gastos de investimento e custeio, retraindo a demanda estatal. Como resultado, mais um ano de pibinho, sendo ainda mais baixo do que os do governo Temer. Estava acessa a luz amarela.

Em 2020, a conjuntura mundial alterou-se radicalmente com a pandemia do coronavírus, sendo ainda muito difícil prever os desdobramentos da crise orgânica. Mas algumas tendências começam a se delinear, em especial no cenário econômico. De acordo com previsões dos organismos imperialistas como FMI e Banco Mundial, a recessão mundial é certa. No Brasil, o PIB foi revisto pelo próprio governo e o Banco Central zerou a sua previsão de crescimento em 2020. O Banco Safra, num cenário mais pessimista – e também mais realista do que as ilusões governamentais – fala numa queda de 2,8%. E Henrique Meirelles, o atual secretário de fazenda e planejamento de São Paulo, estima uma queda de 3%.

Aferrado aos dogmas terraplanistas do ultraneoliberalismo, o governo brasileiro anunciou medidas tímidas para o combate aos efeitos socioeconômicos do coronavírus numa economia dependente, isto sem falarmos no genocídio sanitarista contido na proposta do isolamento vertical. Em diversos países do centro imperialista, entretanto, os liberais sacam a Teoria Geral de Keynes das suas gavetas e estantes e anunciam ações de estímulo mais contundente às atividades econômicas com pacotes na ordem de US$ 1,5 trilhão. É insuficiente, mas é uma demonstração inicial de que as burguesias centrais farejam o tamanho dos efeitos sociais e políticos do agravamento da recessão econômica mundial. E até mesmo medidas estatizantes são implementadas por ordem de Donald Trump, o testa de ferro mundial do ultraneoliberalismo, como a produção compulsória de ventiladores pulmonares por parte de empresas automobilísticas estadunidenses.

Para tornar o quadro ainda mais complexo, a China é o primeiro país a apresentar portas de saída da crise sanitária, e junto com Cuba, começa a exportar profissionais da saúde, medicamentos, tratamentos e equipamentos para regiões mais afetadas, mostrando ao mundo a sua capacidade de contornar a grave crise. Com medidas de planificação estatal, a potência asiática se gabarita também a ser o primeiro país a retomar o crescimento econômico, que já era um dos mais pujantes antes da pandemia. Isto colocará os Estados Unidos nas cordas da arena de disputas pela supremacia no mercado mundial. Temos, assim, mais um elemento de aprofundamento da crise orgânica global. Nada será como antes.

No Brasil, com o obscurantismo negacionista de Bolsonaro, a sua popularidade começa a se esvair junto com a sua capacidade de gerenciar a direção intelectual-moral da supremacia rentista. As suas franjas sociais na classe média dos grandes centros urbanos se dissolvem a passos largos, com panelaços em bairros elitizados que votaram em massa no candidato da extrema-direita. Os representantes políticos destes setores médios desembarcam da base de apoio do governo, que encontra enormes dificuldades para aprovar projetos no Parlamento e enfrenta resistências também nos distintos escalões do Judiciário, da primeira instância ao Supremo Tribunal Federal. E setores do agronegócio e da grande burguesia começam a se desencantar com a mitologia bolsonarista, antevendo o tamanho da crise.

As contas para dar os anéis com o intuito de salvar os dedos já são feitas por setores dominantes mais esclarecidos. Em recentes artigos e entrevistas em jornais da grande mídia, Armínio Fraga e Pérsio Árida, ex-presidentes do Banco Central e atuais dirigentes do mercado financeiro, denunciam a incapacidade do governo federal no tratamento da crise e demandam medidas mais profundas, em termos liberais, de combate às mazelas sociais. A Banca já sabe o que os seus subordinados no governo não querem ver e, por conta desta miopia, se apresentarão despreparados para a nova recessão que se avizinha na esquina da história.

Mesmo com perda de base social, o bolsonarismo solda um núcleo duro de apoio, como atestam as carreatas da morte e o ativismo cibernético das suas milícias digitais. Congregações evangélicas conservadoras e forças de segurança oficiais e paramilitares, assim como estratos médios em cidades pequenas e médias do Sul e Sudeste e do empresariado nacional cerram fileiras com o governo. O bolsonarismo ainda tem cartas na manga até mesmo para uma possível saída golpista. Nesse cenário nebuloso, os militares, numa operação cesarista, podem ser uma força decisiva na radicalização da autocracia burguesa, com ou sem Bolsonaro.

E, junto a isto, temos uma tímida movimentação da oposição de setores democráticos, progressistas e de esquerda, sem aglutinar uma base social mais coesa na classe trabalhadora, que ainda se encontra desorganizada no atual cenário. As palavras de ordem de interdição, renúncia, impeachment e/ou Fora Bolsonaro e Mourão ganham eco na sociedade, inclusive em grupos conservadores que até ontem estavam na base de apoio do governo federal. Bolsonaro é um perigo real e imediato à vida humana e precisa ser banido a qualquer custo. Este é um passo fundamental a ser dado, mas devemos ir além do Fora Bolsonaro, retomando um projeto estratégico de poder popular calcado na reorganização da classe trabalhadora, sempre atentas/os às táticas conjunturais.

Na crise orgânica, junto aos antigos pesadelos, temos a gestação de novos sonhos. Múltiplas saídas políticas se abrem na encruzilhada histórica de uma crise orgânica e a revolução socialista pode ser uma delas, caso a classe trabalhadora se coloque na cena como um sujeito consciente e organizado com um projeto classista autônomo. De forma emergencial e tática, para combater a pandemia sanitária do Covid-19, um bom ponto de partida é a defesa do SUS 100% estatal, público, gratuito e universal e a garantia de boas condições de trabalho às trabalhadoras e trabalhadores do sistema de saúde e de setores operários e camponeses que precisam manter outras atividades essenciais.

Junto a isto, temos que travar um combate decisivo no plano da economia política, minando as bases de sustentação da supremacia rentista. Neste sentido, ações de planificação estatal e investimentos públicos em áreas essenciais, com ampliação de direitos e proteção social, e garantia de emprego e renda para a classe trabalhadora, além da revogação imediata da Emenda Constitucional 95 e seus aparatos jurídicos correlatos, como a LRF e a DRU, devem ser encampadas pelas organizações revolucionárias da classe trabalhadora, visando a superação do atual estado de coisas capitalista.

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