A economia global à beira de um colapso
André Brandão, professor de Filosofia na rede estadual de educação básica na Bahia e militante da Unidade Classista
O atual movimento da circulação mercantil e o papel do capital fictício
A ascensão do Novo Coronavírus ao estatuto de pandemia mundial manifesta-se, pelo menos em seu aspecto mais aparente, como o estopim de uma poderosa crise econômica no sistema-mundo do modo de produção capitalista. Para entender qual o papel real do Covid-19 na economia global, é necessário apreender tal fator no interior da circulação efetiva do tecido social, de modo a estabelecer com quais legalidades se desenvolve um vetor heterogêneo que incide sobre a articulação interna de tal tecido, e qual seria o eixo central deste movimento recessivo. Os estudos da teoria social marxista apontam para a ideia de que a pandemia não é a forma inaugural de um processo de crise, mas sim um elemento potencializador de uma crise econômica que já vinha sendo engendrada antes mesmo da disseminação generalizada da doença. Assim, é preciso retomar o itinerário que pôde constituir as condições de eclosão de uma nova etapa da crise econômica mundial, dramaticamente agravadas pelos efeitos poderosos e nefastos do novo vírus.
Na ordem mercantil, a circulação do capital se estabeleceu de modo que a sua contraditória estrutura forma uma legalidade tendencial no sentido a queda da taxa de lucro dos capitalistas. Como explica o geógrafo marxista brasileiro Maurílio Lima Botelho,
[…] A longo prazo, a tendência do investimento capitalista é incrementar de tal maneira os meios de produção que, em termos relativos, este se torna muito maior do que o montante de capital mobilizado em força de trabalho. Entretanto, o trabalho é a única fonte de valor e, quanto maior for o volume de capital convertido em máquinas e equipamentos, menor será o grau de acréscimo de nova riqueza no sistema. Como a economia capitalista funciona sob a compulsão ao lucro e o lucro nada mais é do que uma função dessa relação entre o volume total de investimentos realizados e a quantidade de valor produzida pelo trabalho, então a tendência é uma queda secular dos lucros capitalistas.
Sobre este movimento, Marx assevera n’O capital que não há capitalista algum que se utiliza por sua própria vontade de tais métodos de produção, por mais produtivos que eles possam ser, a partir do momento que tal alternativa a longo prazo diminuirá a sua taxa de lucro. Ele só o faz porque de imediato tais métodos barateiam as mercadorias, o que faz com que a empresa possa vendê-las originalmente acima do seu preço de produção e quem sabe acima do seu valor. Apenas quando a concorrência a generaliza e a submete a lei geral que a taxa de lucro decresce. No atual estágio do desenvolvimento da ordem do capital, uma série de mecanismos são introduzidos com o intuito de aumentar a curto prazo os seus ganhos, engendrando de maneira sub-reptícia a sua queda a longo prazo.
Como Botelho indica, o desenvolvimento da microeletrônica proporcionado pela terceira revolução industrial levou a economia global a um giro, em que os ganhos em queda nos investimentos produtivos forçaram uma corrida aos mercados financeiros como estratégia de compensação, ainda que temporária, frente às perdas dos lucros da produção com os juros dos investimentos. Desta forma, o capital fictício foi eleito como rota de fuga para o capitalismo contemporâneo. Mas o que seria este capital fictício?
O capital fictício toma forma como capitalização, isto é, como título de propriedade que dá direito a participar proporcionalmente na mais-valia que um dado capital venha a realizar. Sua existência marca a expansão da mercantilização generalizada da vida que é imanente ao modo de produção capitalista, figurando como a “categoria social que transforma os fluxos de renda futura em mercadoria-capital”. Como ferramenta de apropriação de mera expectativa de rendimento no porvir, atende a perspectivas eminentemente financeiras com relação a capacidade de geração em geração de ganhos, respondendo aos movimentos mercantis com relativa autonomia frente a estrutura econômica real. Assim, o capital fictício redefine profundamente as formas de alocação da riqueza social, que passam a ter como referência o modo pelo qual as inúmeras aplicações manifestam-se nos mercados financeiros. Sua introdução e crescimento confere maior flexibilidade a reprodução do capital, ampliando a sua capacidade de acumulação ao proporcionar uma recomposição da riqueza sob a forma financeira.
Deste modo, o capital fictício origina-se no ciclo de reprodução ampliada do capital industrial, distorcendo a sua circulação. Isto não significa que ele se contrapõe a legalidade de tal processo, mas, em sentido contrário, constitui-se como um apêndice contraditório que potencializa a capacidade de exploração da força de trabalho. Nunca é demais lembrar que os chamados fundos de pensão, originariamente constituídos para garantir uma renda suplementar a trabalhadores aposentados, possuem protagonismo real no mundo financeiro, sendo geridos por profissionais das finanças que especulam com as poupanças reunidas em seus empreendimentos, muitas vezes as sequestrando em operações inescrupulosas.
Marx aponta que o capital fictício se estabelece como um título puramente ilusório, e sua existência não se conforma de modo a excluir a possibilidade de que represente mera fraude. O filósofo alemão chega a afirmar que “na medida em que a desvalorização ou valorização desses títulos é independente do movimento de valor do capital real que eles representam, a riqueza de uma nação é exatamente do mesmo tamanho tanto antes quanto depois da desvalorização ou valorização”. Enquanto alternativa para manter os lucros a qualquer custo, o desenvolvimento do capital fictício manifesta-se de uma maneira surpreendente justamente pelo seu estilo especulativo e predatório. Como afirma David Harvey, o avanço do capital fictício concretizou-se por meio de
Valorizações fraudulentas de ações, falsos esquemas de enriquecimento imediato, a destruição estruturada de ativos por meio da inflação, a dilapidação de ativos mediante fusões e aquisições e a promoção de níveis de encargos de dívida que reduzem populações inteiras, mesmo nos países capitalistas avançados, a prisioneiros da dívida, para não dizer nada da fraude corporativa e do desvio de fundos (a dilapidação de recursos de fundos de pensão e sua dizimação por colapsos de ações e corporações) decorrente de manipulações do crédito e das ações — tudo isso são características centrais da face do capitalismo contemporâneo.
Assim, como nos lembra Michel Husson, “o capitalismo prefere não produzir em vez de produzir sem lucro”, mesmo que os graves ônus dessa construção especulativa cresçam de maneira subterrânea para explodir em uma crise maior a longo prazo.
Levando em conta todos estes aspectos, podemos atestar que ainda tem grande atualidade a metáfora marxiana de que o desenvolvimento das relações burguesas de produção e troca assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar as potências infernais por ele postas em movimento. O feitiço do capital fictício surpreende a todos com a aparência a curto prazo de gerar valor a partir de nenhum lastro real, mas com a chegada da crise o seu preço pode ser dissolvido com extrema facilidade. Como Marx indica n’O capital, em tempos de crise, o capital fictício pode perder drasticamente seu preço, seja pela escassez geral de créditos, que obriga seus possuidores a lançá-los em massa no mercado a fim de conseguir dinheiro, seja pela diminuição das rendas a que dão direito ou mesmo graças ao caráter fraudulento dos empreendimentos que tão frequentemente representam, diminuindo enormemente em época de crises e, consequentemente, caindo o poder de seus possuidores de obter dinheiro no mercado, uma vez que os títulos não tem relação com o capital real que representam, mais sim com a solvência de seus proprietários.
A exaustão de um ciclo
Mas afinal, existe de fato uma bolha financeira? Diversas fontes do próprio “mercado” apontam para este momento, indicando uma clara saturação dos títulos e culpabilizando o universo de pequenos agentes econômicos que adentraram na bolsa nos últimos tempos, resultado de sua pauperização, que os obrigaram a buscar uma renda extra nos mais diversos campos, seduzidos pelo canto da sereia do mito do microempreendedor épico que, em meio às oscilações financeiras, faz fortuna da noite para o dia. Aqui, os veículos ideológicos do capital financeiro reproduzem ao seu modo as pseudoexplicações promovidas pelos keynesianos, seja pela denúncia de um frágil espírito animal dos agentes econômicos, que os levariam sempre a respostas emocionais aos mecanismos do mercado, seja pelo Momento Minsky, que reduz as apostas arriscadas dos investimentos a mero sobressalto devido a uma confiança indevida, escamoteando a saturação estrutural dos títulos menos arriscados.
O fato é que podemos observar o movimento do capital real apresentando sinais evidentes da chegada de um limite para o atual circuito do sistema-mundo mercantil. O mercado imobiliário, forte termômetro para relações da ordem mercantil tem apontado para um crescimento gigantesco do preço de imóveis em diversos espaços do mundo, como no conjunto dos países europeus, apresentando uma clara artificialização. O impasse entre a OPEP e a Rússia com a definição dos preços do barril de petróleo e ao ritmo de produção, manifesta os impactos geopolíticos e econômicos de tais relações em que os países digladiam-se para tomar para si as últimas fatias do bolo, levando a uma queda brusca do preço do barril do petróleo, que chegou ao absurdo de adquirir preço negativo, abaixo de zero. No Brasil, antes da eclosão da pandemia, mais de 25% do parque produtivo estava parado e a ociosidade tornou-se crônica: os bens de capital, chegaram a 40% de ociosidade; a indústria automobilística ficou com um terço de suas máquinas paradas, numa dinâmica produtiva em que a extensão portuária brasileira acumulou em média 50% de ociosidade.
Neste cenário, em termos financeiros, o montante da soma das dívidas mundiais já atingiu 225% do total da economia global real. Para termos dimensão do risco que tal dado apresenta, em 2007, nas circunstâncias pré-crise de 2008, a economia real era quatro vezes menor o volume das dívidas e dez vezes menor do que a movimentação do mercado financeiro futuro. No momento presente, o aumento do capital fictício está inviabilizando os ganhos especulativos gerais, promovendo um redirecionamento em massa dos investimento para os títulos da dívida pública dos países, cuja remuneração tornou-se irrisória, por conta dos juros baixíssimos a nível mundial, chegando até mesmo a se tornarem negativos, remunerando menos que a correção da inflação, algo nunca antes visto na história mundial, pelo menos não neste volume. Já são 17 trilhões de dólares investidos em títulos de governos com rendimentos negativos ao redor do mundo, um quarto de todo o mercado da dívida pública global. O problema do volume da esfera fictícia do capital já não é mais a conformação de uma massa de capital sem oportunidades de investimento produtivo: o acúmulo de investimentos fictícios inviabiliza até mesmo os investimentos meramente especulativos.
Nesse ritmo, diversos países, antes mesmo da chegada brutal do novo Coronavírus, já indicavam recessão, como o Japão e Alemanha. Após o crescimento da pandemia, os Estados Unidos já esperam um encolhimento de 30% do seu PIB e atingir 30% de desemprego. Só na segunda metade do mês de março, mais de 10 milhões de estadunidenses buscaram alternativas de seguro-desemprego. Aqui, no Brasil, é esperado o maior recuo da economia desde 1962. Assim, assistimos ao desfecho de um ciclo de superprodução, em que a pletora de capitais fictícios rompeu com o circuito possível do movimento da economia. Temos assim uma crise mundial se instalando aos poucos, representando assim mais uma comprovação que o movimento do real nos dá acerca da inerência das crises cíclicas na circulação do valor do modo de produção capitalista.
Marx concebe que a principal característica que desenvolve a crise capitalista é a contradição entre a pobreza e a restrição ao consumo das massas promovida pelo mercado e o ímpeto da produção capitalista a desenvolver as forças produtivas como se estas tivessem seu limite apenas na capacidade absoluta de consumo da sociedade. Deste modo, ao mesmo tempo que impõe limites à cristalização do valor que o consumo representa, busca transpor os limites pela sua pura necessidade de reproduzir-se ampliadamente. Isto se reflete na grave contradição existente no capitalismo, entre a produção social da riqueza e sua apropriação privada, destinada aos fins do caráter abstratamente autoexpansivo do metabolismo social do capital.
Neste sentido, o voo de galinha que representou a aparente saída da crise que o Brasil enfrentou em 2014-2016, movido por sua desindustrialização, pelo ajuste fiscal, pelo desmonte do estado e pela uberização das relações de trabalho obedeceram a compreensão engelsiana de que os capitalistas buscam a saída da crise com o engendramento da próxima. A capacidade de consumo das famílias brasileiras foi destruída nos últimos anos, chegando a um cenário em que 61 milhões de brasileiros estão endividados, 104 milhões de brasileiros possuem renda per capita de até 413 reais por mês, vivendo jornadas de trabalho extenuantes, e com cada vez com menos direitos trabalhistas, abrindo mão de férias, décimo terceiro, FGTS, ao passo que, com o desenvolvimento dos vínculos informais e precários, a taxa de extração de mais-valia bate a casa dos 20 a 25%. Ao acabar com sua fonte real de cristalização do valor, a burguesia acaba cavando a cova da crise econômica.
No cenário catastrófico que pouco a pouco se explicita, o novo coronavírus surge como um duplo golpe ao sistema econômico capitalista. Ao mesmo tempo em que o isolamento social congela parte significativa do capital variável, da massa de trabalhadores que efetiva a criação de valor, bem como diversos postos de trabalho nos setores de distribuição e troca das mercadorias, o momento de sua cristalização — como já foi citado, no ato de consumo — também é interditado pela quarentena. Assim, a exaustão que a circulação capitalista mundial já vem sinalizando ganha um novo e inédito fardo, e claramente não possui as condições para absorvê-lo sem a intensificação do quadro da crise. A redução da dinâmica da ordem mercantil à reprodução ampliada do valor impõe limites tremendos para garantir os investimentos públicos necessários nas ações de saúde e a sobrevivência das massas tais como o capital as concebe: como trabalho e como consumo.
As duas respostas possíveis para a crise
Os trabalhadores não podem esperar o movimento de resposta dos capitalistas à crise em que eles mesmos colocaram os primeiros. Para eles mesmos, podemos esperar generosas ajudas. Perante os estragos ampliados pelo Covid-19, o governo dos Estados Unidos já estabeleceu um pacote de estímulo de 2 trilhões de dólares para salvar o mercado financeiro, e este montante em curto a médio prazo pode chegar a 6 trilhões. Enquanto isso, o que nós podemos ver de imediato são mais ataques aos salários, condições de trabalho e dignidade dos trabalhadores, como no exemplo recente da startup educacional de Luciano Huck, expondo o seu tratamento vil aos trabalhadores.
Ao surgir uma nova crise, a faceta destrutiva do capital radicaliza-se de vez, buscando de todo modo destruir uma massa de forças produtivas, conquistar novos mercados e explorar de modo mais intenso os mercados antigos para derrubar a crise momentaneamente. Neste sentido, podemos aguardar uma série violenta de tentativas de expropriações e uma mercantilização maior das mínimas condições de produção e reprodução da existência da classe trabalhadora. Em nosso contexto latino-americano, o impacto pode ser ainda maior, uma vez que a nossa economia obedece a uma dinâmica global de trocas desiguais, em que transferimos valor para as economias centrais como mecanismo de compensação das exigências de acumulação e desenvolvimento da mais-valia relativa destes países. Assim, para o desenvolvimento de novos mercados e destruição de forças produtivas, nenhum tipo de expropriação pode ser descartado, desde a destruição de todo um sistema de saúde e de previdência pública, a dilapidação das universidades e do sistema educacional como filão de mercado e até mesmo as guerras nas periferias do sistema-mundo capitalista, como trincheiras forçadas dos confrontos interimperialistas.
A crise não advém do Coronavírus. A crise sanitária representada pela doença agrava fortemente a crise econômica que já estava à espreita. O encontro das duas crises e a sua simbiose, se pudermos vê-la em todos os seus aspectos, demonstra certas aberturas históricas. Talvez, a principal delas seja a constatação prática de que o trabalho humano objetivado, e não a circulação especulativa de papéis, é a única fonte de valor. Só o trabalho e os recursos naturais se constituem como riquezas efetivas. É o trabalho que constrói, no dia a dia, a produção e a reprodução da existência humana, e é só o trabalho que pode dar, enquanto resposta proletária, um rumo para essa crise que possa efetivamente transformar o mundo. Só o trabalho pode denunciar as contradições inerentes na economia capitalista e apontar para uma outra forma social, não mais marcada por um sistema de riqueza abstrata, que suga as potências humanas em prol de uma reprodução ampliada per si. É por isso que Marx apontava para a crise como uma abertura sui generis do movimento histórico, que só pode ser efetivado pela classe trabalhadora:
O monopólio do capital torna-se um entrave de produção que floresceu com ele e sob ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho atingem um ponto em que se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista. […] Soa a hora final da propriedade privada capitalista.