Cinema e uberização do trabalho
Rick Turney, personagem principal em Você não estava aqui, de Ken Loach
TRÊS FILMES PARA PENSAR A TECNOLOGIA E A UBERIZAÇÃO DO TRABALHO
Por Alexandre Campos
Passamos pelo Dia do Trabalhador (1° de maio) com pouco a se comemorar. Os impactos econômicos por conta do isolamento social imposto pela pandemia de coronavírus são inevitáveis e se somam a um cenário que já era desanimador. Em 2019, o PIB brasileiro cresceu apenas 1,1%, menos da metade da expectativa que os analistas econômicos haviam projetado no início daquele ano, que era de 2,53% [1]. O mercado de trabalho vem passando por um processo de precarização, que, em linhas gerais, significa uma desvalorização da força de trabalho. Embora nos últimos anos tenha havido aumento do número de contratações com remuneração de até dois salários mínimos, há 14 anos seguidos (desde 2006) o Brasil teve redução dos postos de trabalho com valores acima de dois salários mínimos [2]. Em linhas gerais, isso significa dizer que o mercado de trabalho está pagando menos, que tem ocorrido um achatamento salarial em massa há mais de uma década e que isso vem cada vez mais afetando a classe média, que é justamente o estrato social que disputa os postos de emprego acima dessa faixa salarial. E claro que o governo (todos eles), na hora de alardear a criação de postos de trabalho, fala sobre o aumento de empregos de até dois salários, mas omite a redução dos empregos com remuneração acima desse valor.
A precarização já seria um problema grave por afetar trabalhadores das classes baixas, mas, como dissemos, tem avançado nas classes mais elevadas. Algumas políticas públicas voltadas para o trabalho e emprego contribuem para esse avanço. A terceirização das atividades-fim é um exemplo: uma coisa é uma empresa terceirizar seus funcionários de limpeza, zeladoria e segurança; outra é fazer o mesmo com engenheiros (se for uma empresa de engenharia) ou nutricionistas (uma empresa da área de saúde), ou seja, profissionais com nível superior (o que, no Brasil, está normalmente relacionado a pessoas até então com maior poder aquisitivo).
Outras iniciativas se somam na construção de um cenário desolador para a força de trabalho, como a reforma da previdência, que reduziu as expectativas de futuro e de uma aposentadoria digna, e a reforma trabalhista, que, passados dois anos, não cumpriu a promessa de gerar mais vagas de emprego feita por seus defensores, na tentativa de convencer a opinião pública e a classe trabalhadora [3]. Tudo isso serve para contextualizar a realidade brasileira, mas o fato é que o trabalho vem passando por transformações muito rápidas no mundo todo, nem sempre traduzidas em vantagens para seu sujeito principal, o protagonista dessa história: o trabalhador.
A tecnologia tem papel primordial nas mudanças. Hoje não há quem não conheça alguém que faz um “bico” como motorista de aplicativo ou mesmo tem nessa atividade sua principal fonte de renda. Aplicativos como a Uber, por exemplo, fazem parte do que vem sendo chamado de “economia de compartilhamento”. Em linhas gerais, um termo que abrange mudanças nas formas de trabalho que incluem o consumo colaborativo e atividades de compartilhamento de bens e serviços mediadas pelas tecnologias. Tudo ainda é muito novo. Embora alguns especialistas apontem que a organização do trabalho tende a se tornar mais flexível e horizontalizada (ou seja, sem rigidez hierárquica, como na imagem clássica do chefe mal-humorado batendo na mesa e distribuindo ordens), muitos cientistas sociais apontam que todo esse ideário da economia compartilhada só esconde uma relação cada vez mais exploratória entre os executivos responsáveis pelas plataformas tecnológicas, de um lado, e os vendedores da força de trabalho, ou seja, os trabalhadores, de outro.
Bertrand Russell, Stephen Hawking e Charles Chaplin: tecnologia e trabalho
Em sua obra, o filósofo britânico Bertrand Russell já nos lembrava na primeira metade do século 20, muito antes da Uber aparecer, que, apesar dos avanços tecnológicos, continuávamos a trabalhar bastante, até exaustivamente. Ele estava se referindo às máquinas industriais, não a aplicativos, mas desde aquela época já havia certa decepção com o fato de que a tecnologia não atendia à expectativa de atenuar, de modo geral, a carga de trabalho para o ser humano. Como dizia Russell, “até agora continuamos a ser tão enérgicos quanto éramos antes que existissem as máquinas. Em relação a isso, temos sido tolos, mas não há razão para que essa tolice continue sempre” [4].
Pois chegamos ao século 21 e o problema persiste. O físico Stephen Hawking teve um trabalho de pesquisa amplamente dedicado à astrofísica, mas deixou algumas considerações sobre a tecnologia e a inteligência artificial. Ele tinha uma grande preocupação com os riscos que máquinas e robôs trazem ao ser humano. Hawking não se referia “apenas” a algum tipo de rebelião ao estilo Matrix ou Blade Runner, mas a questões aparentemente mais triviais, como o risco de desemprego e até de concentração de riquezas. Para ele:
“Se as máquinas produzirem tudo de que precisamos, o resultado dependerá de como as coisas são distribuídas. Todo mundo poderá aproveitar uma vida de lazer luxuoso se a riqueza produzida pela máquina for compartilhada, ou a maior parte das pessoas pode se tornar miserável se o s donos das máquinas conseguirem se posicionar contra a redistribuição da riqueza. Até agora, a tendência tem sido para a segunda opção, com a tecnologia aumentando a desigualdade” [5].
No ano passado, o cofundador da Uber, Garret Camp, arrematou uma mansão em Beverly Hills no valor de U$$ 72 milhões (isso mesmo: setenta e dois milhões de DÓLARES), um montante bem mais alto do que a esmagadora maioria dos trabalhadores do mundo terá trabalhando por toda a vida [6]. A grande aquisição aconteceu em um momento em que muitos trabalhadores da Uber, no Brasil, Reino Unido, EUA e diversos outros países reivindicam melhores condições de trabalho e maiores ganhos. Stephen Hawking tinha razão em se preocupar. Russell também tinha razão em chamar a atenção para o fato de que, ao longo da história, os avanços tecnológicos estão sendo desvirtuados da função que poderiam ter de atenuar o trabalho humano e coletivizar o bem-estar e a prosperidade: apesar dos inúmeros avanços tecnológicos, a sociedade atual trabalha mais do que camponeses medievais, com tempo bem menor de descanso e férias [7]. Por que isso? Porque, como dissemos, Hawking estava certo: não é a tecnologia em si que faz a diferença, mas a forma como ela é apropriada e distribuída.
A economia do compartilhamento é a cara do trabalho no século 21. Se Charles Chaplin estivesse vivo e fizesse uma releitura de seu clássico Tempos Modernos, as filmagens provavelmente não seriam em uma fábrica, mas com profissionais sobrecarregados dominados por seus aparelhos celulares. O gênio responsável por Carlitos não está mais entre nós, mas o cinema, seja o de ficção quanto o documental, segue atento às transformações na sociedade, incluindo aquelas relacionadas ao mundo do trabalho. Aqui selecionamos três filmes que mostram a cara do trabalho no século atual. São dois longas-metragens (um documentário e outro de ficção) e um curta, que mostram a realidade da uberização no Brasil e exterior. O processo, apesar de ter sido apelidado de “uberização”, não diz respeito somente à Uber. A empresa de caronas compartilhadas apenas “emprestou” seu nome por ser uma das mais conhecidas do público e dos pesquisadores sobre relações de trabalho. Especialistas e trabalhadores têm apontado alguns caminhos para melhor regulamentação do trabalho no setor. Não se trata de ser contra a tecnologia, mas de buscar alternativas e políticas públicas de valorização da força de trabalho [9].
GIG- A uberização do trabalho [10]
Dirigido por Cauê Angeli e produzido pela ONG Repórter Brasil, o filme traz uma grande diversidade de trabalhadores de aplicativos, desde motoristas da Uber até motociclistas, empregadas domésticas e professores. Sim, o processo de uberização chegou à área de educação e u m professor de geografia que dá aulas particulares por meio de uma plataforma fala de sua experiência. O filme se propõe a fazer uma abordagem teórica bem contextualizada da economia de compartilhamento e seus impactos nas relações de trabalho, por isso a fala de cientistas sociais brasileiros e estrangeiros divide espaço com a dos trabalhadores. Um desses especialistas é o geógrafo David Harvey, que associa a desregulamentação trabalhista atual, incorporada e fomentada pela economia de compartilhamento, ao avanço do neoliberalismo. Em uma perspectiva histórica, ele diz que o neoliberalismo foi uma resposta à Primavera de 1968, em que estudantes pediram liberdades individuais e justiça social, mas a elite empresarial descartou a justiça social, focando apenas na primeira parte das reivindicações.
Os especialistas destacam que, apesar de um aparente barateamento dos serviços oferecidos pela uberização, tudo isso tem um custo social, que inclui a redução de renda de um número cada vez maior de trabalhadores, e perguntam qual o risco que as classes média e alta querem assumir para que a lgumas d e suas necessidades sejam atingidas de uma forma mais barata. Afinal, tudo tem seu preço. Os pesquisadores chamam a atenção também para o que nomearam de “gamificação do trabalho”, uma influência do vídeo game nas rotinas e procedimentos de trabalho de motoristas e entregadores. Por meio dos aplicativos, esses trabalhadores passam a se ver como personagens em uma espécie de jogo, em que algumas de suas ações geram bônus, estimulando-os a trabalhar sempre mais e mais e incentivando a competitividade entre os colegas. Tudo isso bem arquitetado por psicólogos ligados às plataformas e intermediado pelas telas de celulares. Do ponto de vista técnico, com a uberização nunca foi tão fácil regular o trabalho: é como se cada trabalhador tivesse milhares de gerentes, já que os clientes dão as notas, nem sempre de forma muito justa. Uma doméstica que faz diária por um app diz que se vê obrigada a limpar até coisas que, teoricamente, não deveria limpar, pois, caso não o faça, sua nota cai. A “profecia” de George Orwell recai sobre as relações de trabalho [8], como bem lembra uma das pesquisadoras ouvidas.
Vidas entregues [11]
Este curta-metragem, dirigido por Renato Prata Biar, tem o Rio de Janeiro como cenário e sons bem conhecidos pelos cariocas, como o sino do VLT, fazendo a ambientação sonora. O veículo sobre trilhos divide o espaço urbano com os ciclistas de aplicativos como Rappi, Ifood e Uber Eats. Sem falas de especialistas, o protagonismo é total para os entregadores de comida, que, aparentemente, são os mais precarizados dentre todos os profissionais que atuam na economia de compartilhamento. Eles falam sobre seus dramas e preocupações, incluindo a falta de perspectiva de futuro. “A mãe do meu filho sempre me cobra: até quando você vai trabalhar com aplicativo?”, diz o entregador Vitor Pinheiro dos Santos. Em falas como essa, vê-se a deterioração do conceito de carreira e de trajetória de vida, algo discutido também em GIG- A uberização do trabalho. Os três principais personagens do filme são negros, o que mostra que o segmento tem um recorte étnico muito perceptível. Mas a personagem que mais se destaca é Bianca Souza dos Santos. Mulher e negra, ela dá ainda um recorte de gênero ao curta. Bianca trabalha com o marido, que também é profissional de aplicativos, fala do cansaço com a rotina de entregas e do quanto a ideia do empreendedorismo pode ser ilusória: “microempreendedora eu não sou, não. Sou uma pessoa desesperada. Não tem emprego, fazer o que?” Todos os personagens preferiam estar trabalhando de carteira assinada.
Você não estava aqui [12]
Por fim, esse filmaço de Ken Loach (mesmo diretor do aclamado Eu, Daniel Blake, que também fala sobre trabalho, com foco no esfacelamento do chamado “estado de bem-estar social”) é de um realismo quase documental. Você não estava aqui (Sorry, we missed you) tem o mérito de ir além do cotidiano de trabalho tão bem retratado nos documentários aqui apresentados para mostrar os impactos desse tipo de atividade na vida privada e familiar. É como se Loach cruzasse uma linha que os documentários não cruzaram para nos trazer uma realidade mais intimista. Você não estava aqui mostra que o maior inimigo da família é o mercado de trabalho predatório. É ele quem atrapalha as pessoas de se casarem. E quando elas conseguem, ele as atrapalha de ter filhos. E quando elas conseguem, ele as atrapalha de criá-los. E quando, na medida do possível, elas criam seus filhos, ele atrapalha que esses filhos lhes retribuam a criação com um amparo na velhice. Aliás, essa falta de amparo à terceira idade é trabalhada não por meio de Ricky Turner, o protagonista motorista de um aplicativo de entregas, mas de sua mulher, cuidadora de idosos. Ao falar sobre a rotina extenuante de seu marido para uma de suas clientes/pacientes (uma ex-sindicalista aposentada), é indagada: “mas o que houve com a jornada de trabalho de oito horas?”. Pois é, a desregulamentação atropelou!
Logo de cara, Loach mostra a que veio. No início do filme, durante uma entrevista a qual Turner é submetido, o recrutador diz: “Você não trabalha para nós, você trabalha conosco”. A afirmação dá uma falsa sensação de liberdade (a ideia do “microempreendedor de si mesmo”), que é desconstruída sequência após sequência. A escravidão moderna fica cada vez mais clara na medida em que Turner não tem tempo nem de ir ao banheiro, tampouco autonomia para levar a sua filha ao trabalho, mesmo trabalhando com seu próprio veículo. Aos poucos, vê-se que a relação trabalhista não se trata de uma parceria, mas de uma clara subordinação. O desfecho do filme, um final bastante inconclusivo, deixa no espectador o sentimento do quanto é difícil lidar com o problema atual da desregulamentação exploratória do trabalho. Entretanto, em muitos países os trabalhadores já se organizam para reivindicar soluções. Mas é importante lembrar que a história do trabalho mostra que as melhorias e direitos obtidos não caem do céu. Eles são frutos da capacidade de organização e luta da classe trabalhadora.
Alexandre Campos é graduado em Cinema (UFF), mestre em Mídia e Cotidiano (UFF)
Texto original: https://camerapolis.blogspot.com/2020/05/feliz-dia-do-trabalhador-tres-filmes.html
Referências:
1 – Crescimento do PIB em 2019 abaixo das expectativas: https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2020/03/04/pib-por-que-2019-frustrou-mais-uma- vez-expectativas-de-crescimento-da-economia.htm
2- Redução da oferta de empregos com remuneração acima de dois salários mínimos: https://oglobo.globo.com/economia/pais-nao-cria-vagas-com-ganhos-acima-de-2-salarios-minimos-ha-14-anos-24211895?fbclid=IwAR3kmtgEXRp3pKqHtAeOVclvcHG8Saa7SZDuV0iayU642-gPW5vKzjODR1M
3- Alguns resultados da reforma trabalhista: https://economia.uol.com.br/reportagens-especiais/reforma-trabalhista-completa-dois-anos-/#mais-mudancas-no-emprego
4- RUSSEL, Bertrand. O Elogio ao ócio. Disponível em: http://tele.sj.ifsc.edu.br/~msobral/pji/ElogioOcio.pdf Acesso em 23 abr 2020.
5- Stephen Hawking, sobre desigualdade e tecnologia: https://www.huffpostbrasil.com/entry/stephen-hawking-capitalism-robots_n_5616c20ce4b0dbb8000d9f15?ri18n=true
6- Cofundador da Uber compra sua mansão de U$$ 72 milhões: https://oglobo.globo.com/economia/cofundador-do-uber-paga-us-72-milhoes-por-mansao-em-beverly-hills-2 3781807< /a>
7- Sociedade moderna trabalha mais do que camponeses medievais: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/sociedade-moderna-trabalha-mais-horas-que-camponeses-medievais-indica-pesquisadora.phtml
8- Sobre George Orwell: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/21/cultura/1487699424_853146.html?%3Fssm=FB_BR_CM&fbclid=Iw AR3lPWTP7Bzs2EEYGySRe0KbMWUX7HbrYGD8tqUM7o6cfMrd4XsYCIYKBac
9- Mesa-redonda com o diretor do filme GIG – A uberização do trabalho: https://www.youtube.com/watch?v=eZfdM16ORY0
10- GIG – A uberização do trabalho: https://reporterbrasil.org.br/gig/
11- Link para o curta Vidas entregues (na íntegra): https://www.youtube.com/watch?v=cT5iAJZ853c
12- Sobre Você não estava aqui: https://brasil.elpais.com/cultura/2020-02-28/nosso-filme-olha-para-o-caos-da-vida-dominada-pela-tecnologia-e-sobre-essa-falsa-ilusao-de-liberdade.html