“Deixar matar, deixar morrer”
A lógica liberal do extermínio sob o fascismo brasileiro
Por Lucas Andreto
Clausewitz demonstrou que uma guerra se resume em boa parte em impedir e anular o objetivo estratégico do inimigo enquanto faz o próprio objetivo estratégico triunfar. Não é à toa que a nossa atual direita fascistóide começou e teve como um dos pilares de sua propaganda de terrorismo virtual o ataque ao socialismo como ideia e como realização prática. Usou ad nauseam o Livro Negro do Comunismo para gritar aos cinco ventos as falsas “100 milhões de mortes causadas pelo terror vermelho”, não tendo pudor nenhum de colocar na conta da União Soviética os assassinatos cometidos pelos invasores nazistas na Segunda Guerra Mundial. Em boa parte, devemos à máquina de agitação e propaganda do neofascismo o mérito de ter reduzido o debate político ao limite de um mesquinho concurso de carnificina.
O camarada Jones Manoel já bem indicou como as mesmas pessoas que se horrorizam com o terror vermelho sequer enxergam o sofrimento daqueles que penam na miséria no presente de seu próprio país, quantos morreram de fome ou por outras razões decorrentes de nossa organização social. Fez muito bem em denunciar a “economia política do extermínio” presente na sociedade capitalista. E de fato temos que denunciar que a política de extermínio é inerente à economia política burguesa. Algumas passagens da Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra de Friedrich Engels retornam a ser esclarecedoras a esse respeito. Após citar uma passagem de Adam Smith em que o cânone do liberalismo explica que a demanda da mercadoria “trabalhadores”, “assim como qualquer outra mercadoria”, regula a própria produção, isto é, a existência de sujeitos que trabalham, Engels acrescenta:
Assim como a demanda de qualquer outra mercadoria! Se há poucos trabalhadores, o preço (isto é, o salário) sobe, os operários vivem melhor, os casamentos se multiplicam, aumentam os nascimentos, cresce o contingente de crianças, até que se produza o número suficiente de operários; se há muitos trabalhadores, o preço cai, vem o desemprego, a miséria, a fome e, em consequência, as epidemias, que varrem a “população supérflua”.
Ler a passagem de Engels durante um período de funcionamento comum da sociedade brasileira nos faz perceber que a mão invisível do mercado usa como uma de suas ferramentas de regulação um punhal de assassino. Ler esta passagem enquanto o Brasil enfrenta uma pandemia que mata principalmente os idosos para quem nossos governantes liberais afirmam há um bom tempo não ter mais dinheiro para pagar aposentadoria, que, portanto, eles seriam um custo muito alto para o Estado etc. escancara escandalosamente a lógica genocida do livre mercado diante de nossos olhos!
Em outra passagem muitas páginas depois, Engels descreve o Estado Político que corresponde à sociedade civil liberal, autorregulada pelo mercado:
Durante o período em que permaneci na Inglaterra, a causa direta da morte de vinte ou trinta pessoas foi a fome, em circunstâncias as mais revoltantes; mas, quando dos inquéritos, raramente se encontrou um júri que tivesse a coragem de atestá-lo em público. Os depoimentos das testemunhas podiam ser os mais claros e inequívocos, mas a burguesia – à que pertenciam os membros do júri – encontrava sempre um pretexto para escapar ao terrível veredicto: morte por fome. Nesses casos, a burguesia não deve dizer a verdade: pronunciá-la equivaleria a condenar a si mesma. Muito mais numerosas foram as mortes causadas indiretamente pela fome, porque a sistemática falta de alimentação provoca doenças mortais: as vítimas viam-se tão enfraquecidas que enfermidades que, em outras circunstâncias, poderiam evoluir favoravelmente, nesses casos determinaram a gravidade que levou à morte. A isso chamam os operários ingleses de assassinato social e acusam nossa sociedade de praticá-lo continuamente. Estarão errados?
Em outras palavras, o direito burguês não reconhece a violência social: a miséria, a morte por fome e pelas… epidemias! Para o Estado burguês as vítimas de tal barbárie caíram em azar, suas mortes se devem ao acaso. Se o coronavírus atingir as favelas brasileiras e dizimar uma parte significativa de sua população, que culpa têm os especuladores imobiliários, os moradores de palacetes, as empresas de saúde privada e farmacêuticas ou então os revoltosos patrõezinhos do varejo? Nenhuma. E o Estado, o que deveria fazer perante isso? Absolutamente nada, é claro. Deixai matar, deixai morrer. A mão invisível cuidará de ceifar a quantidade de almas necessárias para regular o mercado, aliviar o déficit público, salvar o orçamento do Estado. Eliminar a “população supérflua” através do assassinato social.
A política levada a cabo por Bolsonaro, nesse sentido, é liberalismo puro e erram aqueles que pensam que Paulo Guedes é um “democrata”, pois “liberal”, em meio a fascistas. Nos nossos tempos, o liberalismo defendido por Paulo Guedes se objetiva como a forma econômica adequadamente correspondente ao fascismo, uma vez que é a melhor maneira de instaurar um experimento de darwinismo social que cumpre o papel de Auschwitz sem chamar atenção, visto que o “campo de extermínio” atual não tem paredes e grades com arame farpado. Bolsonaro e Paulo Guedes estão sendo fieis à sua religião, pagando tributos ao Deus Mercado, chamando os sumo sacerdotes da FIESP, FIRJAN e congêneres para serem consultados, garantindo assim que a política não cometa nenhum desvio, por mínimo que seja, dos sagrados interesses da burguesia. O fascismo brasileiro não é atributo de mentes tresloucadas, como muitos afirmam, mas sim expressão política dos interesses econômicos de uma classe dominante que, para continuar existindo como classe, precisa instaurar a barbárie.
Quem irá fazer a conta do assassinato social no Brasil, juntando os números de mortos na epidemia ao número de mortos pela violência de Estado nos bairros proletários e aos mortos de fome? Bolsonaro, na ânsia de ser um messias, conseguiu ao menos trazer consigo os cavaleiros do apocalipse: a fome, a peste, a morte, falta apenas… a guerra.