O bolsonarismo e a banalização do fascismo

imagemBRASILIA, DF, BRASIL, 31–05–2020 — (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress)

Arthur Machado

No Que Fazer?, Lênin cita trechos escritos por Engels que, em 1874, defendia a necessidade de um ataque concêntrico por parte da classe trabalhadora, mostrando não somente importante a luta política e econômico-prática, mas também a importância da luta teórica. É nesse tripé que reside força e invencibilidade do movimento do trabalhador. Caminhando nessa direção, não estrita ao marxismo-leninismo — de que ‘interpretar o mundo corretamente é tão importante quanto mudá-lo’ — deve-se acatar à observação de Zetkin: estudar clara e distintamente a natureza das coisas. É o que este texto se propõe.

Não se está a banalizar o terror do Fascismo ao Chamar o governo Bolsonaro de fascista?

O historiador Emilio Gentile, um famoso professor da La Sapíenza, universidade Italiana localizada em Roma, é um dos muitos nomes que defendem a ideia de que a qualificação como fascismo de movimentos políticos de direita ou extrema direita banaliza e trivializa o terror promovido pelo partido de Mussolini. Gentile é um dos mais importantes pesquisadores e historiógrafos especializados no fenômeno do fascismo italiano, ao menos ainda vivo. Segundo sua argumentação central, o termo não deveria perder a significatividade histórica. Em outras palavras, muito embora o fascismo seja indicativo de uma identidade nacionalista e autoritária, segundo o historiador, apenas isto não pode defini-lo, ou seja: sem as características de ter sido um partido armado que chega ao poder, imperialista e que, posterior a 1938, adquire uma política racista e antissemita.

Gentile é um intelectual honesto e muito claro em sua proposta. Ele defende a impossibilidade de realizar abstrações para caracterizar o fascismo. Para o historiador, a experiência concreta é o que define o termo. No caso, só podem ser fascistas tais experiências: o Partito Nazionale Fascista e algum ou outro evento histórico muito pontual. Acontece, pois, no cuidado historiográfico, a interpretação da experiência histórica concreta (todos os detalhes específicos de certa época) assume certo protagonismo nas conceitualizações. Desse modo, na área de Gentile, ao “pinçarmos”, pela abstração, certos elementos do fascismo italiano para determinar o conceito geral de experiências fascistas, de fato, descentralizamos a ‘natureza’ de seu fenômeno. E sem o devido cuidado, podemos banalizar os eventos ocorridos na Itália e, inclusive, incorrer em aventuras revisionistas — o terror de muitos historiadores —, que tanto estimula nossos tão bem conhecidos mal-entendidos.

Entretanto, apesar de haver boas justificações sobre o que deve guiar o rigor historiográfico, pouco importa à História, que não é assinada por qualquer autor. Bem como tem pouca importância à cultura, ao comportamento e, consequentemente, à linguagem. Se toda vez que um costume ou ação tomasse uma nova palavra para ser definido, jamais haveria possibilidade de fluência em qualquer língua. No entanto, precisamos nominá-lo. Além do mais, a ideia de definir a experiência fascista como algo muito pontual, dentro de limites e condições históricas concretas, dificulta a possibilidade de compreendê-la em seu núcleo e fundamento, portanto, e por fim, impossibilita-nos combatê-la quando surgida sob seus disfarces e boas intenções.

[…] todo o proletariado deve concentrar-se na luta contra o fascismo. Será muito mais fácil derrotar o fascismo se estudarmos clara e distintamente sua natureza. Até agora têm sido extremamente vagas as ideias sobre esse assunto, não apenas entre as grandes massas de trabalhadores, mas até no interior da vanguarda revolucionária do proletariado e dos comunistas. (ZETKIN, 1923).

Uma investigação pressupõe, sobretudo, uma ontologia implícita ao que pergunta a pergunta. Como sabemos, não existe um microscópio que seja capaz de focalizar as sociedades humanas e seus elementos assim como é utilizado para verificar os componentes que constituem uma célula. As nossas lentes, para descrever um fenômeno tão complexo, devem ser definidas pelo poder de abstração. Podemos separar a investigação em duas etapas: a investigação histórica e, não obstante, terminológica e suas decorrências.

Sobre a História: a condenação de estar no mundo

Muito embora aparente o contrário, a História se dá sem autoria final. Desde Platão estamos acostumados a conceber “espíritos do mundo”, “mãos invisíveis” ou interesses de classe na confecção da História. Entretanto, sabemos, como diz Marx, que a história não anda com a cabeça, tampouco podemos admitir que pensa com os pés. Ela é como um livro em que capítulos são escritos, contraditos e sempre continuados em uma vasta variação de nomes para assiná-los. Entretanto, na escrita de certos capítulos, situações promovem sujeitos específicos como responsáveis a pontuarem pontos finais ou a escreverem uma última frase. No escrever desses capítulos, enquanto são vividos, as coisas assumem um ar de contingência: tudo parece caminhar ao acaso, sem muita correlação. Logo depois, os acasos se compensam e se faz possível tomar posição, desenhando continuidade entre os capítulos; “Desvelando a verdade” e dando-lhes sentido.

Porque estamos no mundo, estamos condenados ao sentido, e não podemos fazer nada nem dizer nada que não adquira um nome na história (MERLEAU-PONTY, 1999).

Como qualquer investigação de fenômeno histórico, a dúvida que permanece é sobre o procedimento de interpretação. Ou seja, em outras palavras, investigar o desenvolvimento histórico é questionar como se deve compreender. A História de um fenômeno se compreende pela economia, psicologia das massas, a partir da ideologia? Todas essas versões são verdadeiras. Por detrás destas dimensões passíveis de abstração, permanece um núcleo único de significatividade; ou totalidade. Nosso intuito é reconstruir o concreto partindo da investigação de elementos simples e gerais. Uma vez isto feito, quer dizer, elementos complexos e contemporâneos sendo expostos em seus fundamentos, em sua natureza, a própria interpretação do desenho histórico, no caso aqui examinado, do fascismo, será melhor compreendida. Nos modelos mais complexos e definidos, incluem-se os menos; extraem-se leis gerais.

O que é que o fascismo tem?

Diferente de como interpreta Gentile, Umberto Eco, um outro pensador que se lança na interpretação do fenômeno fascista, por não ser precisamente um historiador, aposta na possibilidade de traçar um conceito para definir Eles, os fascistas. Tal tarefa que não se dá separada da investigação do que aconteceu na Itália de Mussolini.

Para impedir a utilização sinédoque do termo fascismo a partir do fascismo original, da propriedade histórica, deveria haver uma essência no fascismo de Mussolini, um tipo de ‘quintessência’ que não permite ao fenômeno se replicar senão naquelas condições muito específicas, como ocorre no caso do Nazismo. Pois o Nacional-Socialismo possuía uma filosofia própria que, embora inspirada no fascismo italiano, é manifestada sistematicamente em Mein Kampf, defendia um programa político de luta de raças, superioridade do povo ariano, além de uma noção muito pontual e delimitada da arte degenerada, que pretendia combater. Enquanto que o “fascismo original” não possuía um sistema filosófico complexo, mas sim uma colcha de retalhos com várias ideias políticas, jamais realizadas enquanto projeto (ECO, 2018). Ou seja, bastante diferente da “versão” posterior fundada na Alemanha, que perdeu a guerra tão mais devido à potência soviética inesperada do que por falta de sistematização e projeto.

O artigo sobre o fascismo assinado por Mussolini para a Enciclopédia Treccani foi escrito ou inspirou-se fundamentalmente em Giovanni Gentile, mas refletia uma noção hegeliana tardia do “Estado ético absoluto”, que Mussolini nunca realizou completamente. Mussolini não tinha qualquer filosofia: tinha apenas uma retórica.(ECO, 2018, p.,24)

O fascismo italiano, ou fascismo original, no campo econômico, dá-se como uma resposta à crise econômica na Itália pós primeira guerra mundial. É uma ditadura com interesses muito bem delimitados, embora nunca alcançados. Daí que Thierry Maulnier escreve na esperança de resgatar um fascismo possível, em detrimento do Fascismo real, concreto, de propriedade histórica. A Ação Integralista Francesa é só uma das várias inspirações ao fascismo de Mussolini, que ao mesmo tempo o recusa como “fascismo realizado”.

Foi somente nos anos 1930 que surgiram movimentos fascistas na Inglaterra, com Mosley, e na Letônia, Estônia, Lituânia, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Grécia, Iugoslávia, Espanha, Portugal, Noruega e até na América do Sul, para não falar da Alemanha. (Ibidem)

Mussolini aparece como um sujeito que pretende revolucionar o sistema econômico e, sobretudo, político; antissistêmico, em alguma medida. Seu projeto possui uma pretensão revolucionária; a saber, de resolução da questão proletária dos trabalhadores na questão nacional. Fortemente anticomunista, pretendia resolver os problemas da debilidade industrial alternativamente sem recorrer ao socialismo. Ele é o primeiro a criar uma liturgia militar, um revisionismo histórico que exalta as vitórias sangrentas do passado pretendendo conservá-las, em conjunto a um ideário “revolucionário”. Também atrai, de modo impressionante, os olhos de muitos “liberais”. Pois é inegável que havia uma crise que debilitou o mercado capitalista italiano, e por esta razão é que o Partito Nazionale Fascista de Mussolini conta com um brutal financiamento e apoio da alta classe. Como argumenta Clara Zetkin (1923), o Estado italiano era incapaz de dar auxílio ao capital industrial do norte da Itália. Além disso, concentrava atenção ao capital agrário e ao pequeno capital financeiro. As indústrias pesadas que, durante a guerra, com produção de materiais bélicos, haviam sido alavancadas, com o findar do conflito colapsaram, e uma onda de desemprego sem precedentes se instalou, gerando inflação e, mais que inflação, o caos.

Além da força do capital arruinada, a economia esfacelada, a precária situação econômica de desemprego, havia uma classe média sentindo-se humilhada. O fortalecimento da nação, a promessa de gerar empregos, de conservar antigos valores, “ressuscitando” a supremacia de um povo, moveram as massas. A desorganização e falta de poder na classe trabalhadora não sustiveram o avanço do ‘Partito’.

O “fascismo original” foi uma ditadura, muito embora não tenha sido “totalitária”, como aponta Umberto Eco. Não por sua “brandura” ou pacificidade, tendo ela sido extremamente violenta. Porém, por não possuir uma filosofia sistemática, a não ser um apelo às sobrevivências morais, reivindicando mitos e heroísmos, deveres e sacrifícios. É uma ideologia que deposita a resolução dos problemas sociais nas fontes mais fáceis e suspeitas de exaltação (MERLEAU-PONTY, 1980). É a alternativa à democracia recitativa*, quando esta se apresenta incapaz de assegurar privilégios oligárquicos e econômicos. As experiências fascistas inicialmente se lançam ideologicamente como uma terceira via entre o socialismo e o capitalismo na busca de superação de ambos. Em seu fim, demonstram ser uma ideologia da falência, que realiza-se na preservação de um Estado assegurador da luta de classes em sua forma original (MERLEAU-PONTY, 1980).

Se o terreno onde a praga do fascismo cresce gera necessariamente sua falência, isso diz pouco respeito às condições materiais e econômicos que o compõem, mas à filosofia da história e o sistema interpretativo que o alicerçam. Ou melhor, a falta deles. As características “filosóficas” do “fascismo original”, diferentes das do Nacional-Socialismo que, embora fascista em definição, possui todo um sistema complexo e elementos engrenados, não podem ser reunidas sistematicamente. São, como diz Eco, alguns arquétipos emocionais e psicológicos. O fascismo de Mussolini era a combinação entre a monarquia e a revolução, o exército real misturado à milícia pessoal, privilégios concedidos à Igreja e defendendo uma educação estatal, exaltava o Estado e a violência ao mesmo tempo em que tinha como princípio o livre mercado.

O fascismo não tinha bases filosóficas, mas do ponto de vista emocional era firmemente articulado a alguns arquétipos. (ECO, 2018).

Sobre os arquétipos, é possível delinear alguns na conceitualização do termo fascismo. Entretanto, mesmo nos eventos assumidamente fascistas, em sua realização, é possível notar a ausência de alguns desses elementos. Ou seja, o termo consegue se adaptar e enquadrar em várias experiências históricas levemente distintas, mesmo na falta de um desses elementos em tais eventos. Antes da exposição de processos históricos e econômicos (terreno fértil ao fascismo), é possível apontar arquétipos psicológicos e emocionais que o compõe.

Os itens são caracterizações descritas em O Fascismo Eterno, por Umberto Eco, originalmente uma conferência proferida em 1995. Alguns elementos fiz questão de transcrever, porque parecem trágicos demais aos enraizados brasileiros.
Culto à tradição: a verdade já foi anunciada anteriormente, é necessário preservá-la, em costumes e cultura. Neste quesito, há a variação das fontes. O Nacional-Socialismo, que era necessariamente uma adequação ao conceito de fascismo, mas não suficientemente apenas isso, possuía suas anunciações na teosofia de Helena Blavatsky sobre arianismos, e outras fontes ocultas.
A recusa à modernidade: o elogio à tecnologia surge somente ao usufruir superficialmente a ciência técnica. Quando trata-se, portanto, de atributos morais e religiosos, qualquer possibilidade de avanço científico é negado em nome de uma tradição obscurantista e irracionalista.
Irracionalismo: é condenar os meios intelectuais e científicos em detrimento dos valores tradicionais. Por exemplo, “As universidades são um ninho de comunistas”, a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo* (ECO, 2018, p., 39). Além da condenação anticomunista, o Fascismo é característico por sua condenação ao liberalismo, justamente porque este tem como essência romper com certos preceitos da tradição. Em outras palavras, um liberalismo econômico, mas que não interfira nos costumes (ECO, 2018).
O desacordo é traição: o espírito crítico essencialmente é “distinção”. Na significação da palavra “crítica” revela-se algo como “diferença”, criticar é distinguir. Distinguir é sinal de modernidade, portanto, de rompimento do tradicionalismo. Criticar é traição.
Medo da diferença: o primeiro apelo de um movimento fascista ou que está se tornando fascista é contra os intrusos. (ECO, 2018, p., 39). O Fascismo é, portanto, discriminativo por definição.
Apelo às classes médias frustradas: “Uma característica típica, que tem se repetido historicamente é o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos” (ECO, 2018, p., 39).
Obsessão por conspiração: a frustração das classes médias e a própria situação de classe são amparadas pelo discurso de ter nascido em um mesmo país. Ou seja, a resolução tem como fim a questão nacional. É evidente que resulta no aparecimento de políticas e conspirações xenofóbicas. A psicologia do fascismo fundamenta-se em alguma conspiração internacional.
Os inimigos, ao mesmo tempo, são fortes e fracos demais: os adeptos devem se sentir prejudicados por privilégios que não possuem, humilhados pela riqueza e organização dos inimigos. A necessidade de conspiração estipula que os “inimigos” estejam fortemente organizados em seu sistema. Mas, ao mesmo tempo, a retórica fascista propõe que, devido à degeneração, o inimigo pode ser derrotado.
A negação do pacifismo: o pacifismo é sinal de conspiração com o inimigo. Há a necessidade, por parte do fascismo, de exaltar e promover um contexto cênico de guerra a algo, uma emulação de combate eterno contra a estrutura inimiga. Um psicologia moldada sobre a atmosfera de batalha eterna. O Armagedon, que, no entanto, precederá contraditoriamente a paz.
Desprezo pelo fraco: o fascismo tem, como aspecto típico, assim como qualquer ideologia reacionária e aristocrática, o desprezo pelos fracos. No entanto, o modo de proceder na promoção de seu elitismo é “populista”. Todos os cidadãos adeptos do fascismo e da questão nacional pertencem ao melhor povo do mundo. Além disso, o modo hierárquico é militar, ou seja, de subordinação.
Heroísmo perante a morte: mitos vagos, como o mito do herói, são decorrências do desprezo pelo fraco. A “educação fascista” dirige o sujeito para que assuma a personagem de herói, que, se necessário for, parta para o sacrifício em nome da própria nação. A morte é um alcance dessa plenitude heroica, seus adeptos têm como fim o martírio pela nação. O herói Fascista espera impacientemente pela morte. Note-se, porém, que sua impaciência provoca com maior frequência a morte dos outros (ECO, 2018, p., 41).
Machismo: o estado de guerra e violência permanente, assim como o de heroísmo diante da morte trazem riscos demais quando assumidos além da retórica. O fascista “ (…) transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem de seu machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos sexuais não conformistas, da castidade à homossexualidade.” (ECO, 2018, p., 42). Como o jogo da sexualidade também não é tão fácil de jogar de modo afirmativo, a retórica sempre é de negação, condenando diversas formas de manifestação da sexualidade, a partir, claro, da ótica fálica. A exaltação às armas representa, na superfície, os valores de guerra e de heroísmo, mas esconde na psicologia a inabilidade no jogo sexual. Quanto maior a arma ostentada, mais manifesta está a “invidia penis” permanente.
Populismo qualitativo: por último, em comparação com a democracia, que tem como base moral uma liberdade já dada, uma identidade fundamentada sobre o direito quantitativo (a decisão da maioria), já o fascismo menospreza as liberdades individuais. A vontade de uma maioria comum é interpretada e representada por seu líder, defendida em oposição à vontade da minoria. Os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos, e “o povo” é concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica que exprime “a vontade comum” (ECO, 2018, p.,42).

A cadela do fascismo está sempre no cio

Com a exposição feita anteriormente, em formas de características pseudo-filosóficas, psicológicas e emocionais, a dúvida inicial se torna mais clara, passível de vestir-se como perguntas. Qual a relação histórico-econômica com a possibilidade de denominação de experiências fascistas?A falta de alguns destes ‘elementos arquétipos’ não seria fruto da má utilização do termo?

A respeito da primeira questão, é viável compreender da seguinte maneira: é impossível que seja reprisado o evento do Nazismo sem que as condições pontuais da filosofia nazista e seus objetivos muito específicos sejam replicados. Desse modo, fora da Alemanha, não há possibilidade de repetição deste fenômeno; só existiu um nazismo. As experiências fascistas da Ucrânia, ou de supremacistas brancos ao redor do mundo, não podem, por isso, admitir o caráter nazista, senão como neonazismo — a então definição usada —; uma adaptação de conceitos muito específicos. O que não ocorre com o fenômeno simples do fascismo.

“O fascismo tem características diversas em diferentes países. No entanto, tem duas características distintivas em todos os países, a saber, a pretensão de um programa revolucionário, que é habilmente adaptado aos interesses e demandas das grandes massas, e, por outro lado, a aplicação da violência mais brutal.” (Zetkin, 1923).

Quer dizer, é possível jogar com o termo de muitas maneiras sem que mude o nome. Na noção de “Fascismo” ocorre algo semelhante à noção de jogo (ECO, 2018).

Qual a definição de jogo? Existem muitas qualidades de jogos, jogos que são jogados individualmente, em duplas, em grupos limitados ou não. Podem existir objetivos particulares preestabelecidos ou nenhum, pode vir a ser competitivo ou nem isso. Podem vencer, obtendo-se prêmios, somente risadas, ou a morte. Há jogos em que é melhor não vencer. Seriam “[…] os jogos, assim como o fascismo, uma série de atividades diversas que apresentam apenas alguma “semelhança de família”?

Vejamos. Suponhamos que exista uma série de grupos políticos. Estes grupos são caracterizados pelos aspectos emocionais e psicológicos, semelhante à exposição que fiz acima.
O evento 1 é caracterizado pelos “aspectos políticos e históricos” abc;
o evento 2 pelos “aspectos políticos e históricos” bcd;
o evento 3 possui “aspectos políticos e históricos” cde;
o evento 4, do mesmo modo, def.

Vejamos que o evento 2 possui semelhança ao evento 1 na medida em que tem dois “aspectos políticos e históricos” em comum, ou seja, b, c. O grupo 3 é semelhante ao 2 em c, d; e o 4 é semelhante ao 3 pela mesma razão: e, f. O evento 3 também é semelhante, em “aspectos políticos e históricos” ao 1, têm em comum o aspecto c. O caso mais curioso é dado pelo evento 4, obviamente semelhante ao evento 3 e ao evento 2, mas sem nenhuma característica em comum com o evento 1. Apesar desta não contiguidade entre o evento 1 e o evento 4, em virtude da ininterrupta série de similaridades entre os eventos 1 e 4 é possível estabelecer uma espécie de “transitoriedade ilusória”, um ar de familiaridade entre o 4 e o 1. Que faz com que Nacional-Socialismo e o Franquismo sejam semelhantemente fascistas, embora diferentes em sua configuração interna. Sendo as condições históricas, sociais e econômicas que promovem estas modificações no núcleo interno do “jogo fascista”.

Porém, a noção de fascismo enquanto jogo de linguagem, inspirada no segundo Wittgenstein, incorre em duas problemáticas. A saber: em primeiro lgar, assim como “jogo”, o termo “fascismo” não é um juízo secreto, que é compreendido por ser utilizado. Ele torna-se semelhante à noção wittgensteiniana de jogo apenas quando incorporado à definição de fenômeno de caráter “eterno”, de ferramenta, que sempre pode manifestar-se — como na frase de Brecht que titula esta parte. O uso da linguagem e o funcionamento da totalidade social são igualmente simbólicos e convencionais, e não naturalmente assentados. Lembremo-nos que o grande trabalho de Marx é também o de demonstrar o equívoco em compreender fenômenos sociais como naturais.

A segunda problemática surge quando, ao incorporar o fenômeno de “noção de família”, procede que muitos ou todos os eventos políticos podem vir a compartilhar da denominação de fascista; mas isso só ocorre quando uma abstração muito geral, de aspectos emocionais, torna-se a conclusão da ideia, ou seja, ocorre sem verificar as bases históricas que fundam a natureza do fenômeno. Tais que são três muito básicas e já referenciadas anteriormente acima, além dos aspectos psicológicos e emocionais apresentados.

As condições materiais do despertar fascista, em que manifestam-se os aspectos emocionais e psicológicos, analisando os diversos casos históricos, têm sua natureza, sobretudo, em uma burguesia que oferece todas as forças sob seu comando a serviço do fascismo, pois mesmo a democracia recitativa, fundada na desigualdade social, já não pode preservar uma alternativa ao capital.
Um ideal autoritário de aparelhamento estatal a serviço de um líder, que, apesar das reivindicações de união do trabalhador com o capitalista, na tentativa de estabelecer um Estado que transcenda a questão de luta de classes, inevitavelmente caminha para o “fascismo existente”. “O antagonismo de classes começa a permear até mesmo as fileiras dos fascistas. Os fascistas não conseguem cumprir as promessas que fizeram aos trabalhadores e aos sindicatos fascistas. Reduções salariais e demissões de trabalhadores estão na ordem do dia. Assim acontece que o primeiro protesto contra o movimento sindical fascista veio das fileiras dos próprios fascistas (Zetkin 1923).
E, por último, que tenha como fundamento e fim o nacionalismo e o combate ao socialismo — por isso o Nacional-Socialismo deixa de ser “socialismo” quando é “Nacional”, fato compreendido muito bem pelos burgueses que acrescentaram esse prefixo (PONTY, 1980).

“O velho italiano resumiu o que passamos nos dias de hoje”

Gramsci, em suas interpretações sobre as coisas, descreve o fascismo, que o prendeu até a morte, como não propriamente distante do estado democrático. Segundo ele, “(…) democracia e fascismo são dois aspectos de uma mesma realidade, duas formas distintas de uma mesma ação, a ação de classe que a burguesia empreende para conter o avanço da classe trabalhadora (…) Somente a história italiana dos últimos anos oferece uma demonstração desta tese sem erros. (GRAMSCI, 1977, p., 163 — tradução minha)”. Quer dizer, a aparência democrática não impede, tampouco assegura, a estabilidade estrutural da liberdade civil e da igualdade. Acaba sendo, como concluiu Merleau-Ponty, muito mais uma posição moral de defesa de alguma liberdade naturalmente dada do que propriamente uma investida estrutural em relações de desigualdade.

Gramsci também não somente define a natureza cancerígena da democracia, que tende como uma célula a autodestruir-se, mas também conclui, sobre a complexidade histórica, que “(…) no movimento histórico não se volta nunca atrás”, ou ao menos “não há restauração ‘in toto’” (GRAMSCI, 1977).

Nas últimas semanas, com a ofensiva bolsonarista aos frágeis pilares da democracia brasileira, uma série de contrarrespostas tem aparecido. Ameaças de velhos fantasmas, o partido fardado que conclama poder sobre outros poderes e manifestações apoiadas pelo próprio presidente da república desencadearam no autoproclamado movimento antifascista. A internet, maior representante da racionalidade tecnológica em tempos atuais, não deixou de memeficar essa luta. Tanto de um lado quanto de outro. Junto disso tudo, a incompreensão se faz presença. Assim, como nos dizeres de Clara Zetkin, agora é escancarada a nossa “vagueza de ideias” — quiçá mais que em 1923. E convenhamos: não é muito cauteloso brigar com os olhos fechados.

Acredito que seria não só frágil, bem como insuficiente, cientificamente, apontar como atitudes efetivamente fascistas a “encenação à Goebbels” por parte do ex-secretário da cultura; interpretar os copos de leite como alusão à Alt-Rigth; ou utilizar do fato de o presidente ter compartilhado a frase do Mussolini nestas últimas semanas. Me parece que o óbvio é mais evidente que isto. Estas demonstrações e, talvez, ocasionalidades, interpretadas como atitudes perversas e reveladoras não se oferecem como a caracterização do fenômeno fascista presente no governo Bolsonaro. São, e somente podem ser, sintomas de um específico modo de organização social, contiguidades de um fundamento velado; realização de algo que já trazia consigo. Somente com elas não abrimos as cortinas para apontar qual é o terreno que precede a assunção da identidade fascista. Consequentemente não conseguiremos combatê-lo por completo.

Enquanto escrevo esse artigo, o presidente da república “chama manifestantes pró-democracia de ‘marginais, terroristas, desocupados e maconheiros’”. Ele identifica os “pró-democratas” como conspiracionistas, que “põem suas mangas para fora”. Sua base política busca aprovar a tipificação do movimento “antifa” como terrorismo através da PL 3019/2020. Ademais, o seu guru filosófico classifica sua “brandura” como covardia, pressionando-o e requerendo dele mais firmeza. Apesar de uma estética que não deixa por adequar-se às particularidade históricas, sem jamais cometer o erro de reproduzir um outro passado, senão como farsa, o bolsonarismo é uma nova máscara de um velho rosto. Apenas um pouco variado culturalmente no modo de expressão dos semelhantes arquétipos psicológicos e emocionais expostos acima. Economicamente, apoia liberação de créditos aos empresários, reabertura do comércio durante uma das maiores crises de saúde dos últimos tempos, inclusive recontando oficialmente os dados de morte e infecção. A natureza desvelada do fenômeno político do governo Bolsonaro encontra-se em uma antítese que nós, comunistas, estudamos há muitos anos, cristalizada sob a convicção do presidente: que o que mais lhe preocupa é a morte de CNPJs. Em outras palavras, uma frente econômica preparada a amparar os que mais têm sobre os que quase nada possuem, não importando quais sejam os custos.

Perdoado e jamais esquecido

“Bolsonarismo” não merece ser recordado como terminologia. Não tem dignidade, importância e grandeza dentre as tragédias humanas para ser distinguido; é um grande erro da democracia suicida, que não necessariamente merece uma página própria na história. Merece apenas desaparecer. Nomear alguma coisa significa marcar algo ou ser marcado. Bolsonarismo é um movimento que marcha assumindo-se idêntico ao fascismo eterno, sempre cuidadoso. Mais uma expressão das condições materiais, das falhas e do que não se pode segurar. Que, por este motivo, deve ser perdoado, mas não esquecido da história. É um exemplo da terribilidade nas coisas que não deveriam ser. Não que o que tudo o que nela aconteça mereça ser, mas o que desaparece merece desaparecer (PONTY, 1980).

É difícil determinar e intuir o que pode ocorrer, o exercício político não funciona com clarividência. Muito embora, a cada dia, caminhemos em direção à realização do que já parecia estar realizado, em germe, em-si. Em maio de 1948, Marcuse, em uma carta endereçada a Heidegger, criticando o posicionamento de seu antigo mestre de que não se deve justificar o início de um movimento pelo seu fim, afirma: “Sabíamos, e eu mesmo vi, que no princípio já continha o seu fim.” E é assim, certas coisas carregam descaradamente em si o seu cruel desfecho.

NOTAS REFERENCIAIS

* Democracia Recitativa: é um termo do próprio Emilio Gentile. Com isso, segundo ele, quer dizer: democracia de “recita”, Democracia de fachada, encenação.

**Ur-fascismo é o termo empregado por Umberto Eco para identificar uma certa natureza, um conceito de definição nebulosa, do chamado fascismo eterno, ainda sobrevivente na contemporaneidade e diferente do fascismo original, porém que não deixa de ser fascismo.

Bibliografia
Sobre a banalização do termo, segundo Emilio Gentile. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/10/uso-banalizado-do-termo-fortalece-o-fascismo-afirma-historiador-italiano.shtml?aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996

ARENDT, H. Origens do Totalitarismo, 1989.

ECO, U. O Fascismo Eterno, 2018.

GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere, 1977.

__________. Sobre el fascismo, 1977.

Lenin, Que Fazer? Obras Escolhidas, 1986.

MARCUSE, Correspondence with Martin Heidegger, 1947–48.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção, 1999

_________________. Os pensadores, 1980.

ZETKIN, C. Fascim. In Labour Monthly, August 1923. – Versão em português disponível em: https://www.marxists.org/portugues/zetkin/1923/08/fascismo.htm

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