Nossas tarefas na presente conjuntura

imagemUm governo em duas horas – parte 3/3

Henrique Suricatto

Os artigos anteriores se basearam no vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, liberado um mês depois e que causou um terremoto político o suficiente para ensaiar, em todos os setores interessados na derrubada de Bolsonaro, os alicerces necessários para explorar uma ofensiva contra o governo. Podemos pegar qualquer fala, qualquer trecho deste episódio (1/3) e teremos um perfeito diagnóstico do que até aqui foi o governo Bolsonaro.

A pandemia do coronavirus impôs a necessidade de realizar uma quarentena para impedir a propagação do vírus. O isolamento social, como podemos notar, sequer foi levado a sério pelos políticos que criticavam Bolsonaro por ser negligente na imposição de medidas mais duras de isolamento, conforme proposto pelas autoridades de saúde. O exemplo de João Dória Jr., Governador de São Paulo, é a síntese de tal postura. Por mais que criticasse Bolsonaro, apressou-se em criar um plano de reabertura econômica quando o número de mortos está próximo de 9 mil (o maior do país) e concedeu ao prefeito paulistano Bruno Covas um status para a capital paulista diferente da região metropolitana, como se a maior região metropolitana da América Latina não tivesse relação nenhuma de uma cidade com as outras. Podemos notar movimento similar no Rio de Janeiro, Rio Grande Do Sul, Minas Gerais, Amazonas, Ceará e Goiás.

Foram pressionados politicamente pela classe burguesa em seus respectivos estados, com destaque aos burgueses comerciantes, com amplas bancadas nas assembléias legislativas estaduais, os mesmos que promoveram e financiaram carretas bolsonaristas contra estes governadores e os mesmos que os colocaram no poder. Nunca foi tão didático demonstrar como o Estado serve como instrumento de mediação entre as disputas intraburguesas, seu balcão de negócios de diferentes setores e os lucros acima da vida (dos pobres!).

A resposta aos nossos desafios na presente conjuntura já estão sendo dadas. Entretanto, antes de encaminhar algumas reivindicações e palavras de ordem gerais, vamos observar alguns movimentos despercebidos ocorrendo debaixo do solo, lá onde a toupeira habita.

AS TAREFAS JÁ TOCADAS

Temos metade da força de trabalho brasileira trabalhando na informalidade. O auxílio emergencial de 600 reais (1200 para chefes de família) não é suficiente para sustentar financeiramente a grande maioria dos beneficiados – isto para quem conseguiu pegar! Outras precariedades ficaram em evidência gritante, como as condições de trabalho, de moradia e de estudos. Os postos de trabalho não oferecem a segurança mínima para a saúde física e mental dos trabalhadores, quiçá sanitária. Quantas categorias não se deram conta disso?

Vale destacar os trabalhadores do telemarketing, conhecidos historicamente por pertencerem a uma categoria de pouca tradição sindical, que se mobilizou massivamente para garantir a segurança sanitária e continuar trabalhando, mas também questionou a classificação do seu serviço como “essencial”. Sentindo a pressão, as direções sindicais pelegas, grandes contribuintes para o marasmo histórico do telemarketing, tiveram que ceder e se colocar em movimento. Os trabalhadores de aplicativos de entrega começam a se organizar coletivamente na perspectiva sindical, isto é, representados enquanto categoria, fazem paralisações e se envolvem cada vez mais politicamente com as questões amplas da conjuntura, como o combate ao fascismo.

As periferias dos grandes centros urbanos, diante desse mar de habitantes precarizados em suas comunidades, mobilizaram amplas brigadas de solidariedade, atreladas às mais diferentes entidades, com destaque para as associações de bairros, que tiveram grande contribuição histórica para o movimento operário grevista dos anos 1970/80. Sendo uma importante retaguarda de apoio popular à vanguarda operária, voltaram a ter papel de destaque. Distribuindo alimentos, produtos de higiene e limpeza, mapeando os grupos vulneráveis, destacando representantes eleitos para colher as demandas destes locais e trazer para melhor racionalização da distribuição dos recursos disponíveis, executam um trabalho de logística bem poderoso.

Isso é a educação dos trabalhadores na democracia direta, sobretudo entre os informais, que encontram nas entidades dos movimentos sociais os primeiros contatos com a organização coletiva dos trabalhadores. Algumas brigadas realizam um esforço hercúleo de disponibilizar insumos necessários para o bom funcionamento dos postos de saúde destes locais, entendendo a gravidade da situação e tendo em mente a precarização histórica do SUS. De uns anos pra cá, isso reativou em amplas regiões os movimentos em defesa da saúde, similares aos que vemos nos anos 1980 e que foram responsáveis por implantar o SUS na Constituição de 1988 (talvez o ponto mais avançado).

Na esfera do mundo do trabalho, uma velha prática muito produtiva volta à tona em larga escala, que são os canais de denúncias. Seja por auxílio dos sindicatos combativos, frentes sindicais, ou promovidas pelos próprios trabalhadores, são criados grupos e fóruns nas redes sociais onde acontecem estas denúncias, o que ajuda a unificar a categoria, gerar uma solidariedade de classe e preparar as estruturas para ações mais enérgicas, como a defesa dos salários e empregos, das melhorias das condições de trabalho e para evitar abusos nas relações trabalhistas. Quando expostas para o público em geral, ajudam a fazer com que a sociedade pressione a empresa a reverter suas ações de ataques aos seus funcionários. É por esse caminho que a elevação da consciência de classe acontece.

Estabelecimentos de ensino onde não havia movimento estudantil ou onde este é débil experimentam uma necessidade de se organizar coletivamente contra a precarização do ensino, manifestada no ensino à distância e nas condições de estudos em que a grande maioria dos estudantes se encontram.

Quando a precarização é comum à grande maioria, quando as verdades consolidadas pelo discurso hegemônico da ideologia burguesa se desmancham no ar pelas forças das próprias contradições desencadeadas pela crise, o que afetou imediatamente todas as esferas da sociedade, abre-se uma enorme oportunidade para os revolucionários comunistas recomporem as forças e reorganizarem a classe trabalhadora coletivamente em prol de seus interesses materiais mais imediatos, até prepará-los para a sua tarefa histórica de derrotar a burguesia e fazer a tão necessária revolução. Senhores, eis a luta de classes!

É lindo de ver? Sim, mas só ver não adianta nada, ou pior, permite o avanço do oportunismo de direita e de esquerda nas organizações diretas da classe trabalhadora. Vemos algumas massas novamente despertando para o senso coletivo de organização e, para as questões políticas em geral, o velho volta a ser apresentado como o novo para estas pessoas e isso não tem outro nome a não ser oportunismo, pois os agentes que o promovem, o fazem conscientemente em defesa de seus interesses políticos.

Os petistas – ou aqueles que seguem a linha política do campo democrático-popular – tendem a novamente girar o movimento de base para o campo da institucionalidade, a promover seus parlamentares de base e candidatos nestes espaços, monopolizando o debate político e recusando qualquer ataque à sua linha política. Já testemunhamos as consequências históricas deste movimento e as sentimos ainda hoje.

Mas o petismo (democrático-popular) pode continuar existindo mesmo de maneira espontânea, já que o senso comum de esquerda é petista e é mais que natural que suas concepções de luta, tática e estratégia voltem a ser implementadas, sob outros nomes. Vemos o reflexo disso nas reivindicações máximas existentes, como a “defesa da democracia”, carregada de uma abstração enorme para os lutadores engajados hoje.

Visando estes espaços anteriormente citados (os locais de moradia), cabe a nós expor pacientemente, mas de maneira firme, as divergências com esta concepção de luta meramente reivindicativa voltada às instituições, em como elas ajudam a desarticular os espaços de luta e convertem as suas lideranças em políticos comuns das câmaras municipais, cada vez mais descolados do movimento real dos locais de moradia. Não podemos permitir que estes espaços somente existam para reagir aos ataques desferidos contra nós. Eles devem ser espaços reais de vida política, efetivamente inseridos nas lutas dos bairros. Assim, há uma educação e mobilização permanente, combativa, não meramente reivindicativa, um efetivo embrião do poder popular.

Os petistas estão em uma linha tênue entre os adversários políticos dentro do mesmo “campo” de influência política, mas não são raros os inimigos reais, tais como os políticos da direita ou os centristas fisiológicos.

Nos locais de trabalho, não tem segredo, os interesses coletivos dos trabalhadores em defesa da renda e dos salários, isto é, das condições de vida, devem ser defendidos organizadamente. Devem denunciar todo e qualquer abuso do patronato, para que tais denúncias cheguem a toda a sociedade, para que ganhem a empatia das demais categorias, maior identificação de outros postos de trabalho da mesma categoria, procurando educar os demais colegas de trabalho – a depender do local e da categoria – para a luta coletiva, aprendendo a se proteger e reivindicando os direitos básicos assegurados pelo mínimo de “progressismo” da legislação trabalhista atual e organizando greves e piquetes quando se fizer necessário para defender os seus direitos.

Os sindicatos precisam ser identificados minuciosamente, se são dirigidos por representantes realmente interessados na defesa da categoria, ou se são amarelos fechados com o patronato e não passam de burocratas fisiológicos. Diante da segunda constatação, devemos aprender a combater a “pelegada” e tomar para a classe trabalhadora a entidade sindical.

Nos locais de estudo, vale a mesma forma de denúncia. Com a riqueza de detalhes, os estudantes percebem que não se trata de sensacionalismo esquerdista, mas sim da perfeita descrição da precariedade do ensino neste país. A lógica do sindicato dirigidos por pelegos vale para a entidade estudantil dirigida por burocratas mirins, carreiristas profissionais, interessados apenas na manutenção de seu medíocre e “sagrado” status de dirigente estudantil. Mas Nota Bene: jamais condenar ou demonizar a entidade em si, pois foi esta cultura esquerdista que permitiu o avanço de contrarreformas e de ataques públicos da burguesia a órgãos construídos pelos próprios trabalhadores para os representar coletivamente em contraponto à mera institucionalidade burguesa. A quase liquidação geral das estruturas representativas das entidades de base seria um retrocesso de décadas na consciência de classe. A nossa democracia direta mais consolidada, os germes mais sólidos do Poder Popular, por uns fios estão em função decorativa.

Para aqueles que já atuam nestes espaços, são estas as tarefas colocadas e continuarão a ser tocadas com estes objetivos em mente, mas, sem ligação com a conjuntura geral, tende-se a não conseguir tocar as tarefas necessárias de suas próprias esferas de atuação, pois umas estão ligadas às outras. As táticas precisam estar subordinadas a uma estratégia.

Faz-se necessário também analisar o movimento geral do atual momento em seu sentido macro. As manifestações de rua e as palavras de ordem levantadas por estas são expressões dos objetivos gerais não somente dos lutadores engajados nos espaços anteriormente citados, mas sobretudo pelos independentes e massas recém-despertas para a política que saem às ruas para participar de manifestações e outras ações políticas de base.

OS ATOS E A CONTRAOFENSIVA DOS REVOLUCIONÁRIOS

Por conta da pandemia e do receio de se contaminar com o vírus, há de se reconhecer que estas manifestações tocadas até aqui são tímidas em sua expressão numérica, na capacidade de colocar gente na rua. Entretanto, para aqueles que se limitam a julgar o movimento geral somente pelas suas manifestações de ruas, ou não constroem absolutamente nada em lugar nenhum – o que não é nenhum problema para independentes (politizados não organizados), mas condenável para organizações – ou não se estão atentos à conjuntura como deveria.

As manifestações tendem a ter um impacto maior não somente pelo número de pessoas e de forças que conseguem levar junto, mas pelas suas reivindicações, e é este fator em específico que veremos agora.

A luta antifascista

Vindo dos independentes com mais força, muitos veem nos discursos e pronunciamentos de Bolsonaro em fechar o regime, na sua retórica cada vez mais radicalizada e no mais visível apoio de grupos mais radicalizados da extrema direita, uma guinada fascista do governo a caminho, e esta precisa ser combatida sem cerimônias e ser enfrentada em todos os espaços possíveis. Que a reivindicação antifascista não tem capacidade de levar às ruas e ao engajamento político amplas massas isso é fato, mas que a mesma traz os independentes ao engajamento político e a estes a necessidade de se organizar coletivamente em prol das reivindicações colocadas já é um grande avanço para a presente conjuntura, em que o antipartidarismo típico de 2013 parece ser ensaiado novamente por outros setores, sobretudo os mobilizados “em defesa da democracia”.

A Ação AntiFascista, criada pelo Partido Comunista Alemão no início de 1930 tem um enorme apelo histórico. Uma investigação séria da história do AntiFascismo enquanto movimento histórico de união das forças da esquerda classista contra o fascismo permite não somente politizar e organizar de maneira efetiva e permanente esta massa politizada, como ajuda na demarcação de uma certa independência de classe perante as outras forças que se reivindicam “antifascistas”, mas não passam de liberais hipócritas que não querem assumir o filho que criaram. Desses demagogos estamos cheios por aí, reunidos no “somos 70%” , “Estamos Juntos” e na oposição meramente formal de partidos, instituições e entidades da dita sociedade civil, muito refinados em escolher as palavras que usarão para descrever o aspirante a ditador colocado no Planalto, mas covardes em colocar nas ruas a sociedade. Nas vésperas dos atos de 7 de junho, 5 partidos da oposição desencorajaram seus filiados a irem às ruas, a priorizar uma militância digital; o próprio PT desconversou, ficou vacilante em ir às ruas. Tamanha demagogia já enche a paciência até de nossos costumeiros analistas burgueses, esperando de fato um movimento eficiente na derrubada de Bolsonaro.

A TV Globo, já sacando a capacidade mobilizadora do Antifascismo – olhando também para o Império, onde os EUA vivem uma série de manifestações antirracistas – pauta a discussão em explicar a sua versão de antifascismo e fascismo, e assim oculta de toda a sociedade intencionalmente que foram os comunistas os maiores responsáveis pela derrota do fascismo.

A reivindicação de combate ao fascismo é justa na medida em que Jair Bolsonaro (JB) fica cada vez mais isolado e, com uma militância orgânica menor mas radicalizada, mais aberta a ideias e concepções mais fascistas, citar frase de Mussolini, beber leite em um gesto típico dos supremacistas brancas estadunidenses, tolerar o uso de símbolos da ultradireita ucraniana em manifestações e simpatizar com suas táticas é muita coincidência. Em política coincidências não existem, existem fatos e narrativas, e os fatos não permitem outra narrativa. Bolsonaro sabe lá no fundo que lá atrás foi incompetente o suficiente para não organizar organicamente seus seguidores mais fiéis e agora busca desesperadamente dar força material para seus militantes. O mundo digital não parece mais tão eficiente quanto era há um ano atrás. O Aliança pelo Brasil, um partido a sua imagem e semelhança é uma demonstração dessa necessidade. Mas como os fascistas são uma minoria entre os próprios bolsonaristas, a tarefa colocada é minar os fascistas mais consequentes da reação bolsonarista, enfraquecendo e isolando cada vez mais o presidente e os burgueses que o apoiam.

Mas não é porque esta reivindicação do antifascismo é justa que ela é suficiente ou se torna a principal reivindicação do movimento. O nosso papel perante os lutadores independentes mobilizados pela luta antifascista é apontar que a luta meramente reativa é insuficiente para o combate ao fascismo e que as manifestações por si só não vão combater o fascismo. É necessário criar comitês de defesa dos trabalhadores, uma educação que permita a preservação dos lutadores antifascista e ao mesmo tempo fortaleça as entidades alvo destas hordas reacionárias, com ódio fisiológico aos trabalhadores. E, por fim, explicar a estes que o fascismo é a expressão máxima da burguesia decadente em período de crise e é insuficiente lutar contra o fascismo sem lutar contra o capitalismo e seus representantes, que procuram fechar com toda a perspectiva que possa existir com uma defesa abstrata de uma democracia burguesa, quando esta não está ameaçada em sua totalidade, ou quando a própria burguesia não faz muita cerimônia em defendê-la. Blindar esta massa de uma influência liberal é o nosso objetivo, por isso a palavra de ordem do antifascismo precisa ser disputada e esta só tem força material efetiva em conjunto com as principais palavras de ordem levantadas pelo movimento na atual conjuntura. Para isso precisamos desidratar outra palavra de ordem levantada com força nesta conjuntura, com um potencial mais perigoso tanto na sua formulação quanto em seu conteúdo.

Em defesa da democracia

Em 31 de maio a reação começou, o que ocorreu antes era ensaio. Vários atos ocorreram em diversas capitais do Brasil, puxados por movimentos ligados a torcidas organizadas. Em São Paulo, o movimento chamava-se “Somos Democracia”, promovido por alas da esquerda da Gaviões da Fiel, a maior organizada do SC Corinthians Paulista e contou com a presença de torcedores de outros times e setores de torcidas organizadas de outros clubes paulistas presentes, além de coletivos de torcedores Antifascistas.

Um fato interessante é o retorno de movimentos políticos ligados às torcidas de futebol, não visto com destaque desde o começo da redemocratização. São parcelas das torcidas que durante este período atuaram politicamente (vide a vida orgânica destas subsedes de organizadas existentes Brasil afora), mas de forma mais localizada e dispersa, sem pretensões de se debruçar sobre questões para além do futebol. Contudo, como se tornaram alvo do bolsonarismo na correia da elitização do futebol – similar ao ocorrido na era Thatcher, no Reino Unido dos anos 80 – o debate da inserção das organizadas na sociedade voltou a atuar com mais notoriedade e grupos mais à esquerda destas torcidas voltaram a atuar efetivamente. É importante enfatizar que os coletivos antifascistas das torcidas de futebol não surgiram exclusivamente das organizadas, mas tem membros que atuam nelas.

Anteriormente ao 31 de maio, estas torcidas vinham se contrapondo os atos bolsonaristas nas mesmas vias e locais onde se manifestavam: em Porto Alegre, Antifas de Grêmio e Internacional foram confrontar bolsonaristas em frente ao Comando Militar do Sul em 24 de maio; a Democracia Corintiana vinha fazendo o mesmo na Avenida Paulista. O papel principal era de encorajar o resto da sociedade a se contrapor ao governo nas ruas, e parcialmente vem conseguindo.

Sobre o retorno das torcidas nas manifestações de ruas políticas é melhor tratar em outra oportunidade, temos militantes com ótimos acúmulos sobre o assunto e que poderiam dar contribuições importantes ao conjunto dos comunistas (fica a dica).

O mais importante de analisar aqui são suas principais reivindicações: além da luta contra o fascismo, a defesa da democracia é a mais dita. Tendo em vista as constantes ameaças de JB ao estado democrático de direito (ao regime burguês republicano propriamente dito) e impressionados pelas constantes notícias a respeito na defesa da democracia vindas de toda a imprensa burguesa, de instituições da sociedade civil e de partidos políticos de vários espectros e mesmo dentro da esquerda, é natural que expressem tal palavra de ordem. São reflexos de sua politização, de qual é o seu nível neste setor e de quais foram as suas fontes de influência. Tomar os torcedores como exemplo de análise da palavra de ordem “em defesa da democracia!” é buscar a melhor expressão política organizada de uma pauta mobilizadora do movimento atual. A reivindicação da defesa da democracia tal como está colocada é carregada de uma abstração passível de ser explorada por qualquer campo político, e é aí mora o problema.

Sejam as forças mais oportunistas da direita e da esquerda, até o próprio governo hipocritamente usa a “defesa da democracia” para alimentar sua base de militantes a se contrapor aos poderes legislativo e judiciário, alegando a necessidade de equilíbrio de poderes, ao uso da interferência de um sobre o outro e da necessidade de um poder moderador se impor sobre os poderes que abusam de suas atribuições – uma “ótima” retórica para justificar o emprego dos militares. O estado democrático de direito é aquele regido pelo juspositivismo da legislação burguesa, encontrada sua expressão máxima na Constituição. A democracia reivindicada é a democracia representativa das eleições burguesas. Ora bolas, sabemos que as eleições burguesas são carregadas de fraudes e irregularidades inerentes ao seu sistema, não representam a maioria dos interesses da sociedade, apenas de alguns grupos que apresentam seus interesses como interesses universais nas campanhas eleitorais, fazendo o que agrada aos possíveis eleitores e ao povo em geral, mas imediatamente eleitos, trabalham pela manutenção dos próprios interesses e dos grupos políticos burgueses que os representam de fato.

Não é forçoso afirmar que as eleições e o sistema eleitoral baseado na democracia representativa são algumas das maiores farsas que o capitalismo nos oferece. Mas, ao mesmo tempo, é o seu melhor sistema, adequado a funcionar em tempos de paz e o ideal máximo do sistema político por ele construído. Tal reivindicação, na prática, tal como colocada e passível de ser explorada na perspectiva liberal, passa a dizer às massas que não se trata de mudar o sistema, mas de reformá-lo e de aprimorar o seu funcionamento. Se não funciona bem é por não estar seguindo os princípios de sua estrutura e não por sua estrutura por si só, o que expressa uma contradição enorme para as classes dirigentes. Se é justa esta reivindicação perante os fatos da conjuntura? Sim. Ela está certa perante as tarefas impostas no presente momento? De maneira nenhuma.

Novamente, Bolsonaro pode muito bem tensionar o aparato do regime atual de estado para impor sua agenda política. Os conflitos que testemunhamos entre o executivo, o legislativo e o judiciário são as tensões internas deste regime para se adaptar ao seu projeto de poder. Um golpe aberto é a última – e desesperada – tentativa a ser tocada, o que não venha a ser o caso enquanto seu enfraquecimento político continue sendo levado a cabo. A democracia que tanto gritam aos quatro cantos que está seriamente ameaçada desde 2018, na prática, para nós comunistas, não é a democracia do parlamento burguês, da autonomia dos estados, da justiça, do sistema eleitoral, é a dos trabalhadores, das suas entidades, de seus sindicatos, de seus movimentos sociais e de seus partidos políticos, é a democracia direta da nossa classe que é atacada, ameaçada e passível de esmagamento quando for encerrado este círculo de “terror sem fim”.

Portanto, sem nenhuma ilusão com o regime burguês, mas ciente dos perigos reais que rondam a nossa classe, a defesa das liberdades democráticas e dos direitos dos trabalhadores soa mais consequente e passível não somente de diálogo com tais setores mobilizados em torno da perspectiva da defesa dos poucos direitos conquistados ao longo de intensos e dolorosos processos de luta no passado para garantir o mínimo as classes oprimidas. Mas!?!?

Mas, sem vacilar, questionar quando afirmarem que estão lutando em defesa da democracia, perguntaremos: para qual classe? Assim, estaremos abrindo as contradições deste sistema vigente aos independentes honestos e às massas recém despertadas e mobilizadas por esta palavra de ordem, a fim de expor a incapacidade de uma democracia burguesa de fato ser democrática e que a democracia direta dos trabalhadores precisa ser fortalecida em contraponto às ameaças impostas às condições de vida das classes e grupos sociais mais oprimidos e explorados.

Nada é mais motivo de contestação para os comunistas, diante de uma conjuntura desta natureza, do que permitir que tal perspectiva se mantenha, que uma palavra de ordem abstrata não seja contraposta ou colocada em contradição, mas é duplamente condenável a postura daqueles que imediatamente condenam os grupos de nossa classe mobilizados por esta palavra de ordem, e o motivo é simples: ela é reflexo da ideologia dominante, da consciência média da classe na presente conjuntura, do conteúdo despejado por parcelas da burguesia temerosa a Bolsonaro e que esperam algo similar a junho de 2013 para derrubá-lo. Cabe a nós expor as limitações da democracia representativa, fortalecer a democracia direta dos trabalhadores, apontando para os trabalhos de base e para o fortalecimento das suas entidades. As manifestações de ruas são extremamente importantes para demonstração de poder, mas só vamos conseguir demonstrar uma força real, se por trás desses atos houver uma construção orgânica, uma mobilização prévia sustentada em concretos trabalhos de base e fortalecimento de lutas cotidianas nos mais diversos espaços. Essa é a orientação política para qualquer manifestação de rua, antes e depois.

O Movimento Negro e a luta contra o racismo estrutural e a violência policial

Nem cabe falar muito sobre se a pauta é justa ou não, ela é inteiramente justa na medida em que o grosso de nosso proletariado é negro e pardo, sofre com a cor da sua pele uma dupla opressão da classe dirigente, com fetiche nos tempos da escravidão e só um esquerdista europeizado pode negar a tamanha importância que a questão do racismo tem na luta de classes brasileira. Se, nos EUA, o levante antifascista teve como estopim a crônica violência policial americana, com o assassinato de George Floyd ocorrer da forma mais banal, no Brasil, além deste fator (assassinato de João Victor, no Rio, numa operação policial), temos a morte de uma criança pequena (Miguel) ao despencar de um prédio de classe média alta em Recife, sob os cuidados da patroa da empregada doméstica. A patroa não se importava com a vida de uma criança negra tanto quanto a necessidade de pintar as unhas ou colocar sua cadela a passear. Se isso não é uma demonstração de racismo, não sei o que é.

A pauta em si é extremamente justa, mas sozinha é insuficiente, pois reivindicar mudanças na estrutura de repressão do Estado brasileiro e do racismo estrutural sem alterar as relações de produção e reprodução da vida material existente é limitar as reivindicações no campo da institucionalidade, é não fortalecer os movimentos de resistência e não educar para a organização direta e mobilização permanente do Movimento Negro. Claro, precisamos dar respostas imediatas, no campo das reformas, mas sempre reivindicando reformas que em si não alcançam sua efetivação completa por conta da própria estrutura social vigente, com uma contradição necessária para a evolução da luta. O Movimento Negro Classista, consciente desta tarefa, atua para tirar o Movimento Negro da influência liberal que tanto corrói a organização e a consciência dos lutadores honestos. Permanecer lutando por pautas liberais não é honrar a memória dos que morreram sob a violência racista, dos anônimos à Marielle.

A Justeza do Fora Bolsonaro e Mourão

No artigo anterior (2/3), à luz da repercussão da reunião ministerial de 22 de abril, afirmei que o bolsonarismo é a última expressão que as forças burguesas mais reacionárias conseguiram erguer contra os trabalhadores sem depender totalmente dos militares, estes sim, a única e sólida instituição: o partido fardado capaz de combater com toda a eficiência necessária a classe trabalhadora. Com o enfraquecimento de Bolsonaro e sua radicalização protofascista, os militares gradualmente se incorporam ao bolsonarismo para continuar sustentando o governo e combater por ele. A linha que separa o bolsonarismo do partido fardado é nebulosa, não se sabe até que ponto e o tamanho da intersecção existente, o suficiente para serem uma coisa só.

Bolsonaro vai se agarrando ao que pode, seja aos poucos fascistas abertos que saem às ruas e cada vez mais encorajados pela retórica e apoio indireto do presidente, seja ao fisiológico Centrão, para manter o poder a qualquer custo.

A burguesia cada dia que se passa convence-se que, mesmo com divergências, os militares continuarão dentro da caserna e entendem o Governo Bolsonaro como o governo deles, não há uma polarização entre Bolsonaro e Mourão tal como tinha entre Dilma e Temer ou Collor e Itamar. Ao sacarem este fato desesperador a muitos burgueses, alguns esperam uma moderação de Mourão caso este venha a ser o futuro presidente em um processo de impeachment, cortejado por alguns setores da burguesia e explorado parcialmente pelos comunistas, ao entender que o impeachment radicaliza a conjuntura ao nosso favor por um tempo. Mas abrir a oportunidade de Mourão – o partido fardado – dirigir o executivo diretamente é dar carta branca para a perseguição aberta às organizações dos trabalhadores. O verdadeiro poder moderador está com os detentores do monopólio da violência. Talvez seja isso que nossos burgueses esperam com a renúncia ou deposição de Bolsonaro e a manutenção de Mourão na presidência. O impeachment será somente viável com uma ampla pressão da sociedade, refletida nas ruas e na opinião pública. Qualquer um sabe disso e sabe que Rodrigo Maia não vai mover uma palha se não tiver pressão nas ruas. Se vai ou não ser aprovado é outra história, mas é o suficiente para mobilizações amplas. Visando o risco Mourão, plenamente justificado, seria um erro grave somente direcionar os ataques a Bolsonaro e não dirigi-lo ao seu vice. Afinal, sob a premissa de os militares estarem bem inseridos no governo, de sempre serem o último argumento da burguesia para vencer a luta de classes e alimentar na sociedade e sob a classe uma confiança nos militares como solução é dar um tiro no joelho, é reduzir nossa mobilidade enquanto movimento operário classista para os tempos futuros. O Tribunal Superior Eleitoral sinaliza prosseguimento nas investigações da chapa Bolsonaro/Mourão. Para se transformar num efetivo processo de cassação, depende da sinalização da Procuradoria Geral da República, dirigida por um aliado vacilante de JB, Augusto Aras. Sua posição em relação à CPI das Fake News foi uma advertência de que Aras não é tão aliado assim, tal como o Centrão.

Isso não quer dizer que dependemos deste processo para impor o Fora Bolsonaro e Mourão ao movimento de levante nas ruas. Teremos que esclarecer para aqueles que reivindicam o Fora Bolsonaro isoladamente o quão esse governo na verdade expressa toda uma relação da classe dominante para liquidar a democracia direta. confiar nos militares é trocar – neste caso literalmente – 6 por meia dúzia, e a situação concreta não vai mudar. Derrubar a chapa como um todo não tem a ver com o que se pode esperar da classe política até 2022, com um governo de transição. É quebrar temporariamente as alternativas mais radicais que eles têm na conjuntura. No caso de Bolsonaro, é vencê-lo tirando-o e ridicularizando, perante a própria burguesia, o seu filho rejeitado. No caso dos militares é impor um grande recuo na sua presença política no Brasil republicano (recuo, não saída, os desafios que o momento nos impõe a médio e a longo prazo visam prudência para cada movimento com esta instituição tão habilidosa).

Sob estas palavras de ordem, a organização direta dos trabalhadores só tem a ganhar na elevação da consciência de classe, na compreensão exata da conjuntura brasileira e na educação organizativa das massas colocadas na ação política para algo mais sólido e duradouro. Somente uma vanguarda inserida nos mais amplos espaços, com uma estratégia acertada no presente momento e táticas que envolvam os mais amplos setores organizados da classe trabalhadora e de algumas classes médias poderá influenciar consequentemente os rumos destes levantes que se anunciam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aquele vídeo fornecerá a todas as forças interessadas na derrubada do atual governo um forte material de análise e propaganda por muito tempo. Passadas mais de duas semanas desta revelação e suas consequências ainda são discutidas, vira e mexe voltam a utilizá-la como referências, um dia será usada em aulas de ciências humanas pelas universidades. Estará fresca na memória de milhões de brasileiros.

Não à toa, a reação começou a ganhar destaque ali, não exagerado é constatar a incapacidade de diversos agentes políticos em fazer frente aos ataques de Bolsonaro a tudo e a todos. A pandemia do novo coronavírus matou cerca de 50 mil pessoas oficialmente enquanto terminava este artigo, a queda do PIB em 2020 gira para 9% segundo estimativas dos bancos de investimentos e de revistas de economias sérias como o Valor Econômico, Exame e InfoMoney, um estado de miséria se anuncia. A manifestação cada vez mais fresca da barbárie força a tomar ações mais consequentes e ofensivas contra essa nossa lumpemburguesia, merecedora de todo o ódio de classe possível. A incapacidade das organizações de esquerda pautadas somente em soluções institucionais e na perspectiva eleitoreira é um atestado de falência. Veja-se o Lula, o que dele restou, a derrota consumiu sua cabeça e o que lhe resta é reafirmar um passado que não volta mais. Dentro das fileiras do PT, é evidente o descontentamento de algumas parcelas com o seu líder enfraquecido e derrotado. O PT não soltou Lula por força própria e, quando comemora vitórias obtidas sob a força dos outros [STF], fica passível de sucumbir diante das lutas futuras.

A ausência do PT enquanto partido, de suas respectivas centrais sindicais e entidades por ele dirigidos nos diz muito da derrota do PT e de um projeto de esquerda. Porém, o petismo, enquanto uma forma de ser da esquerda, estará vivo e depende de condições favoráveis para emergir com a força que o oportunismo permitido pode lhe oferecer.

Não pode continuar a ser alimentado o risco de poder abrir a via para o retorno de um antipartidarismo (na verdade de um oportunismo liberal) danoso, tal como manifestado em junho de 2013, segundo aposta da oposição liberal ao governo (Somos 70% e Estamos Juntos) e a imprensa oposicionista; o resultado é bem conhecido. Se não formos coerentes em cada espaço de atuação nosso, do mais banal, discreto e cotidiano, ao mais extraordinário, espontâneo e grandioso, vamos fracassar de novo e neste momento não se trata de uma mera derrota, mas do esmagamento da classe trabalhadora. A toupeira quer sair e não quer levar uma cacetada de um porrete.

A combinação de atuação entre os levantes espontâneos da classe em revoltas e manifestações com a necessidade de fortalecer os lutadores nos trabalhos cotidianos de base respectivos e sua inserção na sociedade vai preparar o movimento como um todo para vencer Bolsonaro e Mourão, construir as células de Poder Popular nos mais variados espaços e garantir os alicerces para empreitadas maiores. Os comunistas devem ser a força política mais responsável para influenciar este processo. É enganoso supor que se consiga dirigir uma insurreição espontânea, mas pode-se influenciar objetivamente a opinião pública sobre estes levantes espontâneos e atrair seus elementos mais avançados para a organização coletiva cotidiana. A vanguarda fomenta sua retaguarda.

Nestes vários locais onde exercem uma atividade política de base, diante da conjuntura geral, notarão com a própria dinâmica do movimento as limitações de uma ação tão dispersa no que tange às reivindicações isoladas existentes, mas, ao mesmo tempo, perceberão que não devem depender somente de atos e manifestações para renovarem as energias políticas das massas que pretendem colocar em ação. A necessidade da unificação das lutas em torno de palavras de ordem mais objetivas, que correspondam aos desafios da conjuntura, que eduquem os trabalhadores na teoria e na prática e os coloquem em um trabalho político sistemático a médio e a longo prazo, para vitórias mais sólidas e permanentes, que não rebaixam as experiências organizativas, quanto o acúmulo teórico, exige um partido político para operar estas lutas.

O partido político não será “revelado” pela autoproclamação, por mais justeza este tenha em suas pretensões ou em seus programas, mas pela sua capacidade de corresponder aos desafios da conjuntura. São assim que partidos revolucionários tornam-se a vanguarda “espontânea” dos movimentos sociais, dos sindicatos, das entidades estudantis e de outras formas de luta organizadas surgidas no seio da luta de classes, como os comitês de bairros, de locais de trabalho e a organização de caráter sindical de novas categorias de trabalhadores.

A vanguarda não deve se autoproclamar, não promover seus símbolos – por mais que tenha um significado histórico – e brasões aos quatro cantos por aí se não conquistou relevância política suficiente para ditar os rumos políticos dos trabalhadores em movimentos. Para toda vanguarda, existe uma retaguarda muito mais numerosa. A difusão de nossa linha política e o fortalecimento real da organização da classe são as tarefas colocadas a nós em momentos de ascensão espontânea das massas. É ingênuo imaginar que se possa dirigir uma insurreição espontânea, mas é duplamente ingênuo supor que não se possa influenciar nos seus rumos ao longo do processo de levante, e depois dele, supor que o acúmulo conquistado sobre uma experiência direta de lutas por si só possa ser conservado.

Camaradas, temos uma batalha pela frente e não participamos de uma batalha se não tivermos a ambição real de vencê-la. A toupeira precisa sair.

FORA BOLSONARO E MOURÃO!

PELAS LIBERDADES DEMOCRÁTICAS DA ORGANIZAÇÃO DOS TRABALHADORES!

PELO PODER POPULAR!

Categoria
Tag