Pandemia e psicologização das relações sociais
A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ACERCA DA PSICOLOGIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS
Bárbara Maria Turci – Psicóloga e militante do CFCAM-Uberlândia/MG
Elton Luiz da Costa Alcantara – Assistente Social e militante do PCB-Uberlândia/MG
Uma epidemia, que em qualquer outra época teria parecido um paradoxo, desaba sobre a sociedade – a epidemia da superprodução. A sociedade vê-se subitamente reconduzida a um estado de barbárie momentânea; como se a fome ou uma guerra de extermínio houvessem lhe cortado todos os meios de subsistência; o comércio e a indústria parecem aniquilados. (MARX e ENGELS, 1998, p. 45)
Iniciar qualquer consideração acerca da pandemia do coronavírus (Sars-CoV-2) e suas implicações na vida social (quaisquer que sejam) torna imperativo ter como questão a própria sociabilidade sob o jugo do capital. Ainda que o vírus em si tenha causa natural, que possa ser explicado a partir de pesquisas laboratoriais, bioquímicas, isolando-o do ambiente externo com suas variáveis, a pandemia do coronavírus é expressão fenomênica de uma lógica do capital, do seu incontrolável avanço sobre todo o planeta, movido pela ânsia voraz da lucratividade. De tal maneira, não pode ter suas expressões de barbárie resolvidas no interior de sua própria lógica, que são, no limite, (mal) atenuadas.
Nas palavras de Sérgio Lessa (2020), “o modo de produção capitalista se tornou essencialmente (ou seja, não pode ser outra coisa) um criadouro de vírus e de epidemias”, e no rol de respostas ofertadas pelo Capital sinalizam-se aquelas que podemos apontar como caracterizadoras de um processo de psicologização das relações sociais, em que: a responsabilidade pela propagação do vírus coloca-se sobre o trabalhador que não se isola, a despeito das necessidades concretas que o forçam a não fazê-lo; o dever de zelar pela própria saúde também se coloca exclusivamente ao indivíduo, que, quando pode se isolar, é incentivado a buscar alternativas individuais para se manter em pleno desenvolvimento, produzindo; outro aspecto que também se apresenta é o de creditar a culpa às pessoas que, mesmo podendo, não seguem as premissas do isolamento social. Tais elementos buscarão ser refletidos aqui, conectando-os com as questões basilares da sociedade capitalista.
A fim de apresentar nossa hipótese, sem a intenção de esgotar o debate, cabe uma breve elucidação sobre o fenômeno da psicologização das relações sociais, categorização apropriada a partir do livro Capitalismo Monopolista e Serviço Social, de José Paulo Netto ([1992] 2011).
Procurando suas determinações fundamentais, o autor vai apontar esse fenômeno como sendo “um processo que enlaça […] componentes teórico-culturais e tendências econômico-sociais próprias da gestação e da consolidação da ordem monopólica” (Idem, p. 50). Como produto do desenvolvimento do capitalismo na fase dos monopólios, cujas características centrais envolvem a ascensão desse modo de produção a um novo patamar de exploração, acumulação, concentração e centralização, a uma “fase superior” denominada imperialismoi.
Nesse processo de inscrição global do modo de produção capitalista a uma nova fase de seu desenvolvimento, observa-se uma alteração qualitativa do Estado. Essa alteração não significa, porém, uma mudança no seu próprio caráter, que, em última instância, é garantidor dos interesses da burguesia, mas de fato uma mutação em prol de se adaptar às exigências do novo ciclo, o ciclo monopólico. Dessa forma, seguindo as indicações de Gramsci, pode-se dizer que o Estado se amplia, integraliza-se, servindo bem para servir sempre aos interesses monopolistas da burguesia.
A despeito das diversas nuances e distintas particularidades que se apresentarão com o passar do tempo nas variadas localidades do mundo, esse é um processo que se universalizará, percorrendo o século XX e nos acompanhando até hoje, quando nos aproximamos da segunda década do século XXI.
No processo em que o Estado assume demandas da classe trabalhadora organizada, respondendo para além da repressão – com políticas, programas e serviços sociais organizados -, caminhará com uma “dupla face”: a do público (relativo aos direitos sociais) e a do privado (dentro da lógica do individualismo liberal).
As sequelas inerentes ao sistema capitalista, fruto da contradição entre capital e trabalho, serão respondidas por esse Estado com duas faces. De um lado, ao legitimar as demandas dos trabalhadores trazendo a “resolução” para dentro do seu campo de atuação (as instituições burguesas), fornecerá respostas organizadas racionalmente (pela racionalidade burguesa) que jamais tocarão o cerne do problema, qual seja: a exploração como base fundante das desigualdades sociais. De outro, fortalecerá a lógica na qual são as pessoas (consideradas indivíduos isolados) as únicas realmente responsáveis pelos próprios sucesso ou fracasso na sociedade, perspectiva recuperada com novas roupagens da tradição liberal.
Com outras palavras:
o redimensionamento do Estado burguês no capitalismo monopolista em face da ‘questão social’ simultaneamente corta e recupera o ideário liberal – corta-o, intervindo através de políticas sociais; recupera-o, debitando a continuidade das suas sequelas aos indivíduos por ela afetados. (NETTO, 2011, p. 36)
E assim prossegue: “a incorporação do caráter público da ‘questão social’ vem acompanhada de um reforço da aparência da natureza privada das suas manifestações individuais” (Ibidem, p. 36).
Uma conjuntura histórica bastante específica foi determinante para a formatação desse Estado, notadamente nos países centrais (ou de “primeiro mundo”), construindo um aparato de seguridade social, “pleno emprego”, consumo em massa, etc., que – surfando em uma “onda longa expansiva” (MANDEL, 1982) e em disputa com a URSS pelos rumos do mundo – teve condições de enfatizar uma atuação em prol do público (ressaltamos novamente: nos países centrais, inclusive à custa da periferia do mundo, que não viu essa “era de ouro” brilhar em suas várzeas), com políticas sociais universalizantes – ainda que, mesmo desse modo, sejam de atuação limitada à epiderme do tecido social e geralmente com um saldo político de cooptação de setores da classe trabalhadoraii.
Isso posto, é necessário ressaltar que esse é um padrão que emerge no processo sócio-histórico apontado, ganhando modalidades distintas, porém com traços de permanência. Ao mesmo tempo, desenvolvem-se perspectivas de explicação e mecanismos de intervenção de cunho individualizante e moralizante, personificadas e culpabilizadorasiii. Assim, o trecho a seguir apresenta uma síntese precisa desse ponto:
as condições que o marco do monopólio estabelece para a intervenção sobre os problemas sociais não destroem a possibilidade de enquadrar os grupos e os indivíduos por eles afetados numa ótica de individualização que transfigura os problemas sociais em problemas pessoais (privados); ao contrário, esta ótica aparece como persistente elemento coadjuvante e/ou, em situações histórico-sociais precisas, até mesmo componente de extremo relevo do enfrentamento público das sequelas da ‘questão social’ (NETTO, 2011, p. 36).
Dessa forma, podemos tomar outra consideração do autor em tela, de como a psicologização das relações sociais terá maior ou menor incidência a depender da conjuntura considerada, inclusive podendo ser elemento central constitutivo do período em que nos encontramos, sob a égide do que se chamou de neoliberalismo.iv
Nesse sentido que nossa hipótese se apresenta, apontando as expressões de uma evidente psicologização das relações e dos processos sociais em uma conjuntura profundamente crítica. Relações e processos tais que, ao invés de serem relacionados às determinações econômico-sociais do capitalismo, têm tais expressões relegadas em prol do subjetivismo mais rasteiro, moralizador, hiperdimensionado, subordinando ao plano individual a responsabilidade em dar cabo das sequelas oriundas do próprio modo de produção, do sociometabolismo do capital.
Mészáros (2002) vai apontar que desde os anos 1970 o capitalismo não produz mais civilização, apenas barbárie. Uma espécie de Rei Midas que, no mesmo toque em que produz “ouro” (lucro), destinado a uma parcela cada vez minoritária da humanidade, a classe dos capitalistas, deixa destruição para a grande parcela da humanidade, a classe trabalhadora. Mas vai além e causa danos cada vez mais profundos na própria biosfera, comprometendo a base sobre a qual o ser humano se origina e jamais se descola, a natureza.
A pandemia que ora se apresenta é tragicamente didática para a compreensão desse caráter do capitalismo, que já vinha gerindo um quadro de crise, sendo aquela o elemento que dissolveu as aparências que insistiam em velar as contradições desta, mas que joga com novas camadas de aparência mistificadoras de uma compreensão mais aprofundada da questão em tela: a crise estrutural do capital em suas particularidades mais recentes.
Trocando em miúdos, os resultados da propagação do vírus por todo o Planeta são fruto das consequências do capitalismo, de seu modo de produção e reprodução. Sua aparição se deu num contexto em que o tecido social já estava profundamente debilitado, sendo catalisador das latências da crise capitalista, de suas características fundamentais. Assim, as repercussões do encontro do Covid-19 com o sociometabolismo regido pelo capital estruturalmente em crise são originárias deste e agravadas nesse momento histórico.
Atribui-se à suposta incontrolabilidade e inevitabilidade de um vírus, as mazelas de uma classe que historicamente sofre processos de precarização. Mascara-se tais expressões como resultados inevitáveis de intercorrências naturais e não de um modo de produzir e reproduzir a vida que, para continuar mantendo uma classe dominante, torna necessário que a maioria da população permaneça sobrevivendo apenas o suficiente para vender sua força de trabalho.
Ao esclarecermos que os complexos sociais, elementos fundantes de um modo de produção específico, são determinantes da constituição e da atividade dos indivíduos, não pretendemos inferir uma inerente passividade ou imutabilidade ao ser humano, mas apontar sua ontologia como ser social.
Foi o desenvolvimento natural e biológico que possibilitou o surgimento do ser humano primitivo, mas conforme a natureza exigia desse ser, para que sobrevivesse, o domínio e a transformação dos elementos que lhe oferecia, ele passa a ultrapassar cada vez mais essa natureza, para se tornar ser social (MARX, 2004). É através do trabalho de modificação da natureza que os homens se humanizam, ou seja, desenvolvem instrumentos de trabalho necessários para suas atividades e, com isso, desenvolvem sua própria consciência, passando a ser os únicos seres vivos a conseguirem antecipar e planejar sua atividade antes de realizá-la (LÚRIA, 1979; LUKÁCS, 2013; MARX, 2017).
Com cada vez mais sofisticação, exigida pelo meio social em uma relação dialética com a atividade humana, o trabalho enquanto relação social é, ao mesmo tempo, a exteriorização e a objetivação do homem, e seu constituidor. Ao atuar por sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica sua própria natureza (MARX, 2004).
É nesse sentido que estão determinadas por suas relações sociais de trabalho: as características físicas, a consciência, a personalidade e a atuação do indivíduo no mundo, formando um complexo processo de síntese histórica e universal, com várias particularidades que a mediam, desembocando em um modo de produção e reprodução da vida.
Em outras palavras, o trabalho é a base da constituição do ser humano enquanto tal, é “o modelo de toda práxis social” (LUKÁCS, 2013, p. 83), complexo social em torno do qual se constituem e organizam todos os demais complexos. Nesse processo, a própria consciência humana se constrói, retroalimentando o metabolismo entre ser humano e natureza na busca de satisfazer suas necessidades.
Na sociedade capitalista, porém, com o atual desenvolvimento das forças produtivas e o domínio do capital sobre o trabalhador, a atividade humana não se relaciona com a totalidade social e com outros atos humanos pelo seu conteúdo em si, mas sim pelo produto que surge dessas atividades: as mercadorias.
As relações que se dão entre pessoas são obscurecidas por uma relação entre coisas. A forma-mercadoria, expressa na forma-valor, esconde o conteúdo das próprias relações sociais. Aqui, Marx desenvolverá a categoria de fetichismo da mercadoria (MARX, 2017), donde desdobra-se o fenômeno da alienação.
O ser humano não tem apropriação dos meios de produção de sua atividade, consequentemente, nem do próprio processo de trabalho e do produto desse. Como tal processo constitui suas características humanas, incluídas sua consciência e personalidade, o trabalhador se desumaniza, se afasta daquilo que o constitui, as relações sociais de trabalho. Ao perder a consciência da totalidade que o faz ser humano, tem sua personalidade e afetividade modificadas e tolhidas em seu desenvolvimento, produzindo a não-consciência de si e impossibilidade de autoconsciência de forma imediata.
No sentido em que o ser humano se vê alienado na sociedade capitalista, o trabalho – que é o seu medium humanizador, diferenciando-o dos animais – se converte também, na forma assalariada, em processo desumanizador. Isso nos ajuda a compreender um importante fundamento da psicologização, já que o ser não percebe nem a si nem ao outro como social, algo além de um indivíduo isolado em meio a tantos outros indivíduos, cuja relação se dá por trocas mercantis, ocultando as pessoas relacionadas.
Nesse entremeio, há ainda a fortíssima propagação da ideologia da classe dominante, que fará uso de mecanismos diversos (os seus aparelhos privados de hegemonia) para introjetar nos trabalhadores a certeza de que os seus interesses particulares são universaisv. Ao longo do seu desenvolvimento histórico, o capital apresentou distintos interesses, sempre em consonância com a necessidade de acumulação ampliada. No elenco de medidas para conter as quedas das taxas de lucro, contou com um elemento fundamental nos 25 anos finais do século XX, a inserção de novas formas organizacionais de trabalho.
Fruto de alterações na esfera produtiva a nível mundial, a referida inserção baseia-se fundamentalmente no chamado modelo toyotista de produção. Com consequências as mais diversas, consideramos importante a menção à intensa inserção da tecnologia nos processos de trabalho, junto ao incentivo do empreendedorismo e aparente autonomia do trabalhador, que factualmente significa uma maior flexibilização dos direitos trabalhistas e a captura da subjetividade do indivíduo que trabalha (ALVES, 2011)vi.
Nesse contexto, o trabalhador é chamado de colaborador, o ambiente de trabalho se torna espaço de aprendizagem, e as horas trabalhadas, que parecem ser controladas pelo próprio “autônomo”, são ditadas pelos algoritmos e pelo baixíssimo preço pago por hora de trabalho. Na consciência, de uma forma geral, o trabalhador pensa que tem o controle desses processos. Na essência, permanecem (e até aprofundam) as marcas do fetichismo e da alienação, da perda do corpo e da mente do indivíduo para o produto de seu trabalho.
Essa inserção de novas formas organizacionais do trabalho, portanto, representa ataques profundos não só à organização dos trabalhadores, mas à saúde dos mesmos, que concretamente acabam trabalhando mais, incorporando a ideologia do neoliberalismo e assumindo para si a responsabilidade de serem bons explorados, “cordeiros” que vagam (quando não correm) calmamente, guiados pelo “pastor” (que às vezes é até um deles) em direção às trituradoras de sua saúde e de sua vida.
Assim, tanto o trabalho quanto a falta dele, na sociabilidade regida pelo capital, gera, invariavelmente, adoecimento mental e físico. O empobrecimento das relações sociais, a restrição da atividade humana ao trabalho isento de sentido e a falta de recursos concretos para existir, produzem limitações e regressões no próprio desenvolvimento humano (ALMEIDA, 2018).
Em tempos de crise isso se agudiza. As reformas trabalhista e previdenciária tendem a elevar ainda mais tais indicadores. Nesse ínterim, a retórica ideológica do capital insere toda a responsabilidade por esse quadro sobre o indivíduo enquanto ser atomizado. O discurso do empreendedorismo é uma das principais embalagens dessa responsabilização, não à toa proliferam-se os coachs e suas variações (inclusive profissionalizadas), mas que não têm sustentáculo material para garantir a sobrevivência dos trabalhadores com a mera mudança no mindset.vii
Buscando concluir, sabendo que esse é um tema em aberto, compreendemos que as determinações então apontadas, características de profundas mudanças que ocorrem desde os anos 1970, mas intensificadas particularmente a partir da década de 1990, operam uma grande reorganização na sociedade capitalista a nível global no sentido de aprofundar ainda mais suas características fundantes, como a exploração e a alienação.
Do plano ídeo-cultural ao econômico, passando pelo plano político, os trabalhadores sofreram diversas derrotas – a maior delas, certamente, foi a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética, abrindo um flanco enorme para a hegemonização do discurso liberal na própria esquerda. Particularmente no Brasil (como expressão de um contexto mundial) vivemos uma regressividade nos direitos e nos valores sociais, na medida em que, paulatinamente, o capital opera mecanismos tanto de desconstrução e construção ídeo-política entre a classe trabalhadora (inclusive nos seus setores mais organizados como sindicatos, conselhos, partidos, etc.) quanto de destruição de direitos.
O chamado “apassivamento da classe trabalhadora” é um claro exemplo de desconstrução entre os setores organizados da classe trabalhadora, operado com maestria ao longo dos governos PT. Concomitantemente, a direita conservadora e reacionária construiu um forte sentimento anticomunista impulsionado em maior ou menor medida pelos aparelhos privados de hegemonia da classe burguesa, fundamentado pela falsa ideia de que todo petista seria comunista e todo comunista seria petista, associando a política social-liberal de conciliação de classes com uma proposta revolucionária, bolivariana, do “marxismo cultural”, dentre outras alucinações fomentadas por ideólogos burgueses. Opera-se, assim, a legitimação do ideário conservador, de cunho moralizador e individualista, além de um expressivo crescimento do reacionarismo (com perspectivas de cariz fascistizante), que atentam contra os direitos humanos, à liberdade, à igualdade e à própria vida pela intolerância à orientação e afirmação sexual e contra matrizes religiosas de origem africana.viii
É essa realidade, junto a seu intrínseco processo de apartamento de si mesmo que limita as possibilidades de movimentação da classe trabalhadora e facilita, pela mesma via, o mecanismo de psicologização das relações sociais. Individualiza-se o problema, moraliza-se o outro, tratando-o como culpado e, automaticamente, responsável pela proliferação do Covid-19, não apontando para a raiz da questão, a sociedade capitalista e as formas com as quais o Estado que lhe serve lida com as crises.
A cada dia o mundo nos dilacera mais. Somos empilhados, retorcidos, envergados, esticados e golpeados como ferro, até rompermos, até a força que mantinha a liga se esvair e sobrar apenas pedaços. E assim somos fragmentados diariamente; a vida sob a égide do capital faz tudo para aprofundar dores, dizimar esperanças, sacudir seguranças, ferir corpo e alma. E no meio disso tudo, no turbilhão esfacelador, é cada vez mais difícil olhar para o lado, além do agora, do já que se mostra, de nós mesmos.
A resposta do mundo, da ordem, é apenas: “seja resiliente”, “seja empreendedor”, “se esforce que vencerá”, “se a farinha é pouca, meu pirão vem primeiro”, etc.. Junto com a ordem empresarial vem a ordem religiosa: “Deus escreve certo por linhas tortas”, “deixa nas mãos de Deus”, “apenas tenha fé”, “seja caridoso e ganhe seu lugar no céu”, “aceite sua provação e tenha a felicidade real no além”, e assim por diante.
Aqui, aparenta-se um paradoxo, que na verdade guarda uma grande coerência. Num mundo de fragmentação quase completa, de individualismo elevado ao máximo, de aparente falta de sentido no mundo, de aprofundamento de uma barbárie injustificável, apela-se com ainda mais força ao misticismo em suas várias matizes, ao transcendental como única escapatória diante de uma realidade onde nos implodimos, e as saídas se tornam quase sempre individuais. Drogas (lícitas e ilícitas), crenças, muito esforço, afirmação do Eu sobre os outros que lascam a existência desse Eu, outras crenças, e assim se segue a espiral que evolui no presentismo, no escapismo, na busca de redenção e na autodestruição.
Desconsidera-se, portanto, o princípio materialista de que “não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.” (MARX, 2008, p. 47), que a explicação para o fato de tantas pessoas que poderiam se isolar não o fazem está em existir uma realidade material alienante, que a vida – de si e do outro – não importa; que tantos já morrem diariamente por diversos motivos em tese evitáveis que pouca diferença faz o acréscimo de uma nova variável. Isso não significa retirar a importância das necessárias medidas adotadas individualmente (isolamento social, uso de máscaras, álcool, etc), mas ter o cuidado para não incorporar a mesma lógica com a qual o próprio Estado lida com as expressões do sociometabolismo capitalista, a lógica que individualiza, moraliza, fragmenta e culpabiliza: a psicologização das relações sociais.
De fato o cenário é tenebroso, e nele tantos se vão, se perdem e se aniquilam. Parece ser o fim; parece não ter escapatória; parece que é isso mesmo; e exatamente por parecer ser o que é, que o que é, não é o que parece ser. Ou seja, “a aparência esconde a essência”, o que vivemos no agora, no difícil cotidiano, esconde a grandiosidade do todo, principalmente de suas grandes possibilidades.
Mas há um quadro trágico, e diante deste, a saída só pode existir numa verdadeira coletividade que dê sentido para além do eu, junto com os outros. Para isso precisamos entender quem é o eu que sofre e quem são os outros com quem precisamos nos unir. Isso é entender que aquilo que esmaga o indivíduo – vários indivíduos que são destruídos pela condição em que se encontram nesse mundo – só pode ser vencido na unidade desses tantos indivíduos, que não serão mais só indivíduos, mas uma classe que se reconhece como tal, com tantas diferenças quantas forem, mas que se une por sentir e saber que o mundo é um só, que a luta é contra outra classe, que essa classe fundamental a qual pertence é uma só, e as distinções ali dentro, que o mundo insiste em aprofundar em desigualdades, preconceitos, opressões, em prol de uma crescente e destrutiva exploração, serão esvaziadas de conteúdo negativo e poderão florescer plenamente enquanto seres humanos.
Assim, somente enquanto trabalhadores, enquanto classe – reconhecendo-se como tal e, consequentemente, reconhecendo na burguesia seu inimigo inextricável -, poderemos lutar e vencer o que mata a inúmeros destruídos por fome, guerras, miséria e pandemias; melhor dizendo, trucidados pelo capitalismo. Somente assim poderemos dar o passo fundamental que tanto precisamos rumo à construção de um mundo livre da barbárie capitalista, com seres humanos substancialmente livres, em que se inicie a real história da humanidade, abandonando a pré-história em que vivemos.
i “O imperialismo é o capitalismo na fase de desenvolvimento em que ganhou corpo a dominação dos monopólios e do capital financeiro, adquiriu marcada importância a exportação de capitais, começou a partilha do mundo pelos trusts internacionais e terminou a partilha de toda a terra entre os países capitalistas mais importantes”. (LENIN, 2010, p. 88)
ii Cf. Lessa (2013).
iii Tal processo ocorre amparado sobre “duas grandes linhas: a inteira moralização das teorias sociais abrangentes e a individualização das refrações da ‘questão social’. A primeira aparece conclusa em Parsons […]; na segunda, comparecem as incidências dos estudos que insulam a ‘personalidade’ da rede concreta das relações sociais […] e as elaborações funcionalistas sobre as sociopatias da ‘sociedade industrial’.” (NETTO, 2011, p. 50)
iv “Tudo indica que parece correto afirmar que se verifica uma visível dominância da perspectiva ‘pública’ quando se trata de refrações da “questão social” tornadas flagrantemente massivas e especialmente em conjunturas nas quais se constata uma curva ascendente do desenvolvimento econômico; a proeminência da perspectiva “privada” parece dar-se sobretudo em momentos imediatamente anteriores e posteriores à emergência de conjunturas críticas (NETTO, 2011, p. 37).
v Marx e Engels já apontavam sobre essa necessidade de apresentar seus próprios interesses como de todos: “Realmente, toda nova classe que toma o lugar de outra que dominava anteriormente é obrigada, para atingir seus fins, a apresentar seu interesse como o interesse comum de todos os membros da sociedade, quer dizer, expresso de forma ideal: é obrigada a dar às suas ideias a forma da universalidade, a apresentá-las como as únicas racionais, universalmente válidas.” (MARX e ENGELS, 2007, p. 48)
vi “Estamos lidando com uma operação de produção de consentimento ou unidade orgânica entre pensamento e ação que não se desenvolve de modo perene, sem resistências e lutas cotidianas. Enfim, o processo de ‘captura’ da subjetividade do trabalho vivo é um processo intrinsecamente contraditório e densamente complexo, que articula mecanismos de coerção/consentimento e de manipulação não apenas no local de trabalho, por meio da administração pelo olhar, mas nas instâncias sociorreprodutivas, com a pletora de valores-fetiche e emulação pelo medo que mobiliza as instâncias da pré-consciência/inconsciência do psiquismo humano.” (ALVES, 2011, p. 114)
vii Mesmo antes da pandemia já se apresentava um cenário bastante devastador nesse sentido, em que a grande maioria das iniciativas envolvendo negócios próprios tiveram suas portas fechadas. A notícia a seguir, ainda que apresente os dados de fechamentos de empresas de um modo geral, permite observar que, das que fecharam, havia uma maior taxa das que não tinham empregados, “apenas sócios e proprietários”, geralmente microempreendimentos. Outro ponto importante a se observar é que boa parte dessas fecharam no mesmo ano em que abriram, o que aponta para uma curta duração desses negócios principalmente diante de um cenário com baixa no poder de consumo.
https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/economia/2019/10/707950-brasil-perdeu-316-680-empresas-em-quatro-anos-de-saldos-negativos-diz-ibge.html#:~:text=10%20%C3%A0s%2016h59min-,Brasil%20fechou%20mais%20de%20316%20mil%20empresas%20em%20quatro%20anos,fechando%20as%20portas%20no%20Pa%C3%ADs. – acessado em 10 de Julho de 2020
viii “Essa é a consciência da imediaticidade, da ultrageneralização, do preconceito, da perda de capacidade de vislumbrar, ainda que potencialmente, a totalidade. Presos a essa forma de consciência, os trabalhadores não agem como uma classe nos limites da ordem do capital em luta contra suas manifestações mais aparentes; é pior, eles a naturalizam e se comportam como agentes de sua reprodução e perpetuação dessa ordem. O senso comum reflete esse movimento e é no cotidiano que ele se manifesta. Se podíamos falar de um senso comum progressista, ou tendencialmente de esquerda, no contexto de intensificação da luta de classes na crise da autocracia burguesa e no processo de democratização, hoje, no quadro de uma democracia de cooptação consolidada, temos um senso comum que tende a ser conservador e, por vezes, reacionário.” (IASI, 2017, pp. 344 e 345)
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