Covid-19 nas prisões: tragédia anunciada
Detento da penitenciária de Guareí (SP), em março deste ano | Foto: Daniel Arroyo/Ponte
Com prevenção ineficiente, agentes morrem e espalham coronavírus nas prisões
por Caê Vasconcelos
Ponte
Segundo CNJ, 65 servidores morreram de Covid-19 em todo o país e entre os presos, são mais de 11 mil infectados e 74 mortos; para especialista, desencarcerar é solução
Dos 110 mil agentes penitenciários do sistema prisional brasileiro, 5.854 estão infectados pelo coronavírus e 65 morreram em decorrência da doença. É o que aponta o boletim semanal do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), divulgado nesta quarta-feira (29/7). Os dados divulgados são de 27 de julho.
Já entre as pessoas presas, dos 812 mil que formam a população carcerária brasileira, 11.269 estão infectadas pelo coronavírus e 74 morreram. Os dados do CNJ divergem dos dados do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), órgão subordinado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Atualizados na última quarta-feira (29/7), os números do Depen apontam para 11.386 infectados, 73 óbitos, 7.045 recuperados, 3.027 casos suspeitos e 32.514 testes nas prisões brasileiras.
No sistema socioeducativo brasileiro, 1.793 confirmados servidores estão infectados e 16 morreram. Entre os adolescentes, 627 casos foram confirmados.
O Sudeste lidera o número de mortes nacionais, com 51,4% dos 74 óbitos. O estado com mais mortes é São Paulo, com 19 detentos mortos, segundo dados do Depen, além dos 2.512 infectados, 128 com suspeita e 1.203 recuperados.
A apuração do Sifuspesp (Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional do Estado de São Paulo) aponta que SP registrou 26 mortes de agentes penitenciários até a manhã desta quinta-feira (30/7), além de 387 servidores infectados e 97 com suspeita da doença.
Neste boletim, o CNJ começou a lançar os dados de São Paulo com informações da SAP-SP (Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo), que separa o número dos infectados por tipo de testagem.
Entre as pessoas presas infectadas são 459 confirmados com exame RT-PCR (feito de forma nasal com haste flexível para colher pelas narinas e garganta o material genético do paciente) e 1.258 testes rápidos (feito a partir da coleta de sangue) com resultados positivos, além de 18 óbitos. Entre os servidores, 493 foram confirmados com RT-PCR e 371 testes rápidos com resultados positivos, além de 21 óbitos.
O DF é o local que concentra mais casos de contaminação no país, com 1.464 pessoas presas infectadas. Segundo o Depen, são 3 óbitos e 1.356 recuperados, sem nenhum caso suspeito.
Entre os servidores, o Nordeste concentra mais casos confirmados, com 39,5% dos casos, e o Norte aparece em segundo lugar, com 25,1%. No número de mortes, o Sudeste lidera, com 43,1% casos, seguido pela região Nordeste, com 29,2% dos casos nacionais. Depois de SP, o Pará é o estado onde há mais servidores infectados, com 601 casos, seguido do Maranhão com 474, Ceará com 455 e Bahia com 428.
‘Teste rápido não serve para nada’
Para o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, que também é professor do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, os testes rápidos não servem para nada.
“O único teste que funciona é o RT-PCR. Para você saber que é um transmissor da doença tem que começar a ter algum sintoma. Mas, quando você sentir algo já deve estar no terceiro ou quarto dia com o vírus”, explica.
“Então, você se infecta, o vírus começa a se multiplicar, pré-sintomático você já dissemina o vírus. Por isso, no momento que você começa a ter sintoma, tem que já ser afastado imediatamente. Isso em qualquer tipo de gripe: afasta e faz o RT-PCR”, continua Gonzalo.
Quando o RT-PCR dá positivo, detalha o médico sanitarista, além dos 14 dias de afastamento e isolamento social, é preciso refazer o teste, pois novos indícios apontam que o vírus continua transmitindo mesmo quando os sintomas foram embora.
Com a visitas ao sistema prisional suspensa no território nacional, avalia Gonzalo, foram os agentes penitenciários que levaram o vírus para dentro das prisões. “O vírus não chega para o preso sem ser pelas pessoas que trabalham lá. Todos deviam usar máscaras e identificar o mais rapidamente possível qualquer sintoma de gripe nos trabalhadores do sistema prisional”.
A testagem em massa, apesar de ser uma das bandeiras dos sindicatos de servidores do sistema prisional, aponta o médico, pode não ser a solução para conter o vírus nas prisões. “Você pode fazer o teste hoje, mas amanhã pegar o vírus”, explica.
“Como profissional de saúde, e não uma pessoa da área do direito ou da segurança pública, avalio que o melhor caminho seria colocar para fora da cadeia as pessoas que fazem parte do grupo de risco ou tem comorbidades, porque o Estado não vai cuidar delas”, pondera.
Medidas para proteger o servidor demoraram para serem tomadas, diz sindicato
Para Fábio Jabá, presidente do Sifuspesp, a testagem é o caminho para proteger os servidores. “É preciso fazer testagem em massa. O Estado vai acabar optando pelo PCR, porque o teste rápido dá muito falso negativo, não é seguro”, afirma.
Só com a testagem, aponta Jabá, já que não é possível fazer isolamento dentro das prisões, será possível controlar o coronavírus no sistema prisional. “O que a gente tem feito é pedir para a SAP aumentar a demanda da testagem em massa e os EPIs [equipamentos de proteção individual]. Luva e máscara não estão faltando, o que falta é o EPI quando o policial penal tem que ir para o hospital, porque muito preso faz tratamento de hemodiálise, por exemplo”.
Esse também o entendimento de Fernando Anunciação, presidente da Fenaspen (Federação Nacional Sindical dos Servidores Penitenciários). “Se tivéssemos uma testagem em massa, o número triplicaria”, lamenta. “O funcionário acaba levando e trazendo o vírus. Muitas das testagens que estão sendo feitas são particulares, porque o Estado não tem condições”.
Anunciação afirma que os afastamentos estão acontecendo, mas de forma burocrática. “Muitas vezes o funcionário faz o afastamento por conta própria. No DF temos um hotel para isolar os servidores, para não levar o vírus para a família. Nos demais locais, eles voltam para casa e o que fazemos é orientar a higienização constante das roupas e das mãos”.
Abandono institucional deixa os agentes mais vulneráveis
O NEB (Núcleo de Estudos da Burocracia) da FGV (Fundação Getúlio Vargas) fez um levantamento no começo de junho de 2020 que aponta que apenas 9,3% dos 301 agentes afirmaram terem recebido treinamento específico para enfrentar a pandemia: oito em cada dez reconheceram que não se sentem habilitados para atuar durante o cenário atual.
“O que a gente viu com a pesquisa é que, embora os policiais penais materializem as violações com os presos, é um público que também é muito fragilizado”, aponta Giordano Magri, pesquisador do NEB.
“Eles têm os menores salários, estão mais expostos aos efeitos da pandemia e não tiveram suporte institucional para atuar nesse momento. Indiretamente, isso acaba trazendo consequências para toda a população carcerária”.
O abandono institucional, aponta o pesquisador, deixa os servidores mais vulneráveis. “Falta de treinamento, falta de distribuição de EPIs e falta de suporte da chefia nas atuações. Alguns agentes apontaram que tiveram redução dos salários”.
“O abandono, no geral, gera consequências que não são só imediatas, mas trazem impactos que fazem com que eles sejam mais infectados e se tornem vetores da contaminação dentro das unidades”, finaliza.
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