Para além do fetiche da legalidade

imagemCharge: Mauro Iasi

Antonio Soares *

Em tempo de crise estrutural do capital e ofensiva burguesa, agravadas pela pandemia da Covid-19, na qual presenciamos o genocídio da população brasileira pelo governo Bolsonaro, um espectro ainda ronda os setores progressistas no Brasil: o espectro da legalidade. Mesmo depois de golpe atrás de golpe, da eleição de Bolsonaro, ainda existe a esperança da volta de um idílico Estado de Direito, com o governo submetido à lei, aos direitos fundamentais, em suma, à ordem jurídica que vige no Brasil desde 1988. É o que se pode chamar de fetichização institucional.

Desde o avanço da ofensiva burguesa em 2015-2016, setores progressistas ainda defendem uma volta aos padrões legais anteriores, porém, sem entender que a dialética da própria legalidade, que media a reprodução da sociedade burguesa, proporcionou o período em que nós estamos vivendo. A recente anulação do processo arbitrário contra Lula reforçou a ideologia da esquerda institucional, como se a partir de agora os resquícios daquela época gloriosa se mostrassem novamente e abrissem o caminho para um novo pacto social-liberal. Ainda que Lula retorne com sua conciliação, como já deixou claro que irá fazer, a expectativa é que o social-liberalismo petista, no cenário de crise do capital, humanitária e de ofensiva burguesa, se torne cada vez mais rebaixado: menos social e mais liberalismo.

Ademais, a ilusão do passado idílico do Estado de Direito brasileiro é meramente uma miragem, pois nos mais de 30 anos de vigência da “Constituição Cidadã”, a exceção esteve presente na reprodução do racismo estrutural, do patriarcado, dos sem-terra, de todas e todos aqueles e aquelas que são explorados, oprimidos e que tentam resistir ao sistema capitalista. A própria ordem constitucional de 1988 não foi fundada por meio de ruptura radical, mas sim como continuidade reformada da ditadura burgo-militar, que para manter o essencial da ordem, restabelecendo aspectos de um Estado Burguês Democrático (MASCARO, 2017).

Dito isso, o que evidencia a especificidade do novo cenário da sociedade brasileira é que a nova etapa da crise estrutural, iniciada em 2008, impôs à classe dominante brasileira a necessidade de rasgar o véu ilusório do Estado de Direito, para restabelecer suas taxas de lucro no patamar desejado, através das suas contrarreformas que intensificam a superexploração e repressão da classe trabalhadora do país. Como já deixou bem claro o grande jurista russo Evgeni Pachukanis:

“Quanto mais a dominação burguesa for ameaçada […], mais rapidamente o Estado de Direito se converterá em sombra incorpórea, até que, por fim, o agravamento excepcional da luta de classes force a burguesia a deixar completamente a máscara do Estado de Direito e a revelar a essência do poder como a violência organizada de uma classe sobre as outras” (PACHUKANIS, 2017, p.151).

Ou seja, para todas e todos que desejam de fato transformar a realidade brasileira, é necessário superar as ilusões jurídicas da sociabilidade burguesa. No capitalismo, o domínio não está no cidadão (citoyen), mas sim no indivíduo burguês (bourgeois), que detém o poder econômico e subsume o Estado à sua vontade, para reproduzir a ordem de exploração e opressão que é o capitalismo. A legalidade se funda na ilegalidade, na correlação de forças entre as classes num determinado momento da luta, e se reproduz como unidade de legalidade e exceção que mantém o domínio de uma classe sobre a outra. O Direito e o Estado Burguês, no seu vínculo estrutural, são formas sociais que cumprem o papel da mediação na reprodução social capitalista e sempre, em última instância, impedem qualquer horizonte além do próprio capitalismo.

A real mudança revolucionária não está atrelada à forma estatal e jurídica burguesa, mas sim à sua superação, junto à superação das relações de produção capitalistas. Urge avançar para além do estreito horizonte burguês, para além da sociabilidade do capital. Somente o Poder Popular, na construção do Socialismo, pode colocar a classe trabalhadora brasileira a tomar as rédeas de sua própria emancipação. Enquanto as forças progressistas se mantiverem presas ao horizonte institucional burguês, substituindo a luta estratégica pelo socialismo, pela luta estratégica pela cidadania, a derrota será certa e não mais como tragédia, e sim como a farsa da farsa.

Bibliografia

MASCARO, Alysson. Crise e Golpe. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

PACHUKANIS, Evgeni. Teoria Geral do Direito e Marxismo. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

* Estudante de Direito e Militante da UJC-PI e PCB-PI.

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