Artistas do sertanejo pop e a luta de classes

imagem“Não é possível que o homem supere em si mesmo os traços da decadência sem conhecer e compreender as mais profundas estruturas da vida, sem quebrar a casca superficial que, no capitalismo, recobre as ligações mais ocultas e a mais oculta unidade contraditória; aquela casca que a ideologia da decadência mumifica e vende como algo definitivo” – György Lukács [1]

Thiago Cervan

Há mais de um ano, um grupo de artistas da música sertaneja publicou uma carta aberta [2] ao presidente Bolsonaro. O texto inicia-se com um título que não deixa dúvidas: “Carta de apoio dos artistas do setor sertanejo ao governo do presidente Jair Bolsonaro” e afirma que os referidos artistas “reconhecem seus notáveis feitos no ano de 2019, nos diversos setores produtivos do país”. Chama-nos a atenção, nessa passagem em particular, a relação desenvolvida desses artistas ao demarcarem a questão dos setores produtivos.

A arte não nasce do talento individual, não brota espontaneamente da mente de seres iluminados. É antes produto de seu tempo, e só pode ser compreendida em seu contexto histórico determinado. Como afirmam Marx e Engels em A Ideologia Alemã [3]: “A concentração exclusiva do talento artístico em alguns indivíduos e, com isso, a sua permanente asfixia em meio às grandes massas é consequência da divisão do trabalho”. Enquanto uns sobrevivem cantando e recebendo milhões, outros constroem prédios com o suor de seu rosto. E outras pessoas não conseguem nem se vender enquanto força de trabalho, não fazem nem mais parte do exército industrial de reserva. Temos um processo de desindustrialização concomitante com as novas formas de explorar o trabalho que gerou um contingente de “inempregáveis”.

A arte, tal como hoje a conhecemos, só pode existir graças ao acúmulo de riqueza proporcionada pela massa de trabalhadores anônimos que vendem sua força de trabalho para conseguirem garantir minimamente sua reprodução. Essa divisão entre quem somente vive “pensando” e quem “executa” é o que proporciona a “concentração exclusiva de talento em alguns indivíduos” – a divisão trabalho.

Essa compreensão, a priori simples, é fundante para esmiuçar nossos gostos e preferências artísticas. Não gostamos ou desgostamos de determinada obra “porque sim”. Muito menos desenvolvemos esta ou aquela atividade laboral somente por uma questão de livre escolha. Porém somos educados para acreditar que nossas escolhas e gostos artísticos são ações de caráter estritamente individual, independente do tipo de relações sociais desenvolvidas.

Sob a sociedade capitalista, a arte transformou-se em mercadoria e, como tal, necessita ser produzida e reproduzida para ser aquilo que é: um produto criado e difundido por especialistas. E não qualquer produto, é necessário que seja um produto rentável. Deste modo, os artistas sertanejos sabem que para continuarem a ter cachês milionários [4] há que se ter uma base material que dê sustentação a sua produção e reprodução como artista. Não à toa grande parte dos shows desses artistas são financiados por órgãos públicos como secretarias de culturas municipais e estaduais e, para tal, faz-se necessário que exista um alinhamento ideológico entre esses artistas e os contratantes.

Se analisado o conteúdo artístico das obras dos referidos artistas que assinam a carta – o que não é nosso objetivo – percebe-se que o que Marx, e depois Lukács, analisou como a expressão da “decadência ideológica” da burguesia permeia toda a sua extensão. As canções são repletas de individualismo e expressões de sentimentos amorosos marcados pela relação de posse, típicos da sociabilidade que nos é relegada. Aqui não se trata de julgar esteticamente esta ou aquela obra, trata-se de entender os porquês de sua repercussão, ou seja, quais são os meios que permitem a propagação dessas ideias e porquê o seu ideário é permeável à grande massa dos trabalhadores.

Nesse sentido, a sentença de Fischer [5] é precisa: “Numa sociedade dividida em classes, as classes procuram recrutar a arte – a poderosa voz da coletividade – a serviço de seus propósitos particulares.” Deste modo, a pergunta que devemos fazer é: quais os propósitos particulares desses artistas?

O texto segue explicitando seu caráter apologético ao governo e afirma que o povo passava por “difícil situação econômica e social”. O uso do verbo “passar” no tempo passado traz implicitamente que agora o povo não passa mais pela situação descrita pois “a retomada do crescimento e da geração de empregos” foi sanada por uma “atuação forte, decidida, responsável, e sem interesses escusos por parte de seus governantes”.

Do início ao fim o texto é um amontoado de mentiras. Sabemos que o povo vai mal, porque nós também somos o povo. Sofremos cotidianamente com as precarizações das relações de trabalho, com as privatizações, com o aumento da violência em todos os níveis, porém há uma grande parcela da população que, embora seja atingida diretamente por um conjunto de medidas antipopulares, continua a consumir as obras musicais destes artistas. Por quê?

Quando os sertanejos citam na carta o aspecto produtivo do país devemos ter claro que somente com o amplo domínio dos meios de produção e reprodução intelectual – internet, rádios, tvs, jornais, revistas, gráficas, etc – é que a arte pode ter o alcance midiático que tem hoje.

No caso do sertanejo contemporâneo há uma ligação entre o gênero musical e o desenvolvimento do agronegócio no país, que vale a ressalva: não começou na gestão Bolsonaro/Mourão. A rainha da motosserra Kátia Abreu, à época no PMDB, hoje no PP, foi ministra durante o segundo governo de Dilma Rousseff (PT). Isso para ficarmos em apenas um exemplo emblemático e esclarecedor do tipo de desenvolvimento do setor agropecuário que ocorreu no Brasil durante a gestão PT/PMDB.

O estudo de Ana Chã [6] traz dados sobre essa relação de forma abundante e amplia o debate não só para a música sertaneja.

A observação das relações entre o Agronegócio e a Indústria Cultural na realidade brasileira vem desnudar a continuidade do projeto neoliberal, operando as relações entre Estado e corporações transnacionais, priorizando a extração de mais-valia pelo capital privado, à execução das políticas públicas que gerem o bem-estar da população. O discurso publicitário opera como verniz modernizador sobre o chão neoliberal, num contexto de crescimento econômico restrito acerta conjuntura determinada por fatores que não perduraram no tempo, como o alto preço de commodities agrícolas e minerais no mercado internacional, que começa a dar sinais de crise. Essa dinâmica foi chamada de neodesenvolvimentismo, e muitos pesquisadores atestaram que seria o rompimento com o neoliberalismo. A pesquisa constata a vigência de padrões neoliberais na gestão do recurso público voltado à cultura, sendo operado com muita eficácia pelo setor agrícola para legitimar o modelo do agronegócio perante a sociedade (CHÃ, 2015, p.136,137).

Também no auge dos governos PT/PMDB não tocou-se, sequer timidamente, na questão da soberania popular da comunicação. O fechamento da Rádio Muda [7], em 2014, elucida o trato dado à comunicação popular pelo projeto democrático popular petista, representado no momento pela chapa Dilma/Temer.

Os principais – justamente por serem de maior alcance – veículos de comunicação do país continuam a pertencer a políticos profissionais e oligarquias familiares, como a Rede Globo e Record, e tem sido cada vez mais frequente a entrada de grupos transnacionais, como é o caso da CNN.

Para elucidar ainda mais, a campanha publicitária “Agro é Pop” [8] traz à tona a vinculação entre os interesses dos setores hegemônicos da comunicação com o agronegócio. O esforço em naturalizar o agronegócio – como única forma de agricultura possível e responsável por colocar alimentos na mesa dos brasileiros – é tão grande que é comum vermos na programação da Rede Globo cantores sertanejos não apenas como atrações, mas também como apresentadores.

Por isso se faz urgente para nós, comunicadores e artistas, interessados na construção de um projeto soberano na área da comunicação colocarmos em xeque a propriedade privada dos meios de produção e reprodução intelectual [9].

Em outras palavras, se as redes comunicacionais são concessões públicas e não estão a serviço do povo brasileiro, é preciso que o povo, através de suas lutas e organizações, construa sua soberania comunicacional [10]. Em todos os momentos agudos da luta de classes em nossa terra – a comunicação foi o fiel da balança na disputa pelo poder.

Dos discursos jesuítas para a catequização dos povos originários, passando pela rebeldia dos malês – que discursavam nas praças de Salvador, clamando um levante negro com destaque para a figura de Pacífico Licutan – até os jornais diários (sim, no plural) do Partido Comunista Brasileiro [11] que congregavam desde análises de conjuntura nacional e internacional, passando por conclamação a greves e atos políticos, chegando a poemas e charges de militantes da organização, o processo de disputa dos “corações e mentes” sempre esteve na ordem do dia.

Sabemos que um processo de expropriação e regulação da mídia sob controle popular é mais que necessário, mas as experiências históricas da nossa classe também nos ensinam que, por ser central para a perpetuação da miséria que vivemos, realizar uma democratização radical da mídia não será fácil.

Passado mais de um ano dessa carta, a situação social – e, por isso, econômica – tem se agravado no contexto de crise capitalista agravada pela pandemia de covid- 19 que soma, oficialmente, mais de 415 mil mortos. Nosso povo morre por falta de ar, por falta de saneamento básico, por falta de comida de qualidade e, também, por falta de uma comunicação de qualidade. Vide o que tem sido chamado popularmente de fake news, que nada mais é do que a mentira como forma de comunicação, prática corriqueira das classes dominantes desde a prensa móvel de Gutenberg.

Posto este cenário, há diversos exemplos que podem – e devem – servir como pontos de partida para realizarmos nossa autonomia comunicacional. Pensamos ser representativo o que ocorreu na Venezuela Bolivariana que, por meio de um projeto popular, enfrentou as oligarquias e estabeleceu limites muito claros para a atuação de grupos midiáticos no país, sobretudo após o golpe de 2002 [12] articulado pelo imperialismo estadunidense.

A burguesia é violenta e sanguinária, então não devemos ter ilusões que um processo de regulação popular da mídia – que também abrangerá a totalidade da vida social e só será colocado em marcha concomitantemente com o controle de todas as outras áreas da vida – acontecerá sem derramamento de sangue, tal como hoje ocorre com os lutadores e lutadoras dos movimentos populares de ocupações urbanas e do campo que colocam em xeque a propriedade privada.

Mas não devemos nos esconder. Devemos dizer claramente os nossos objetivos, tal como os cantores sertanejos fizeram e fazem quando advogam seus objetivos particulares. Para nós, comunicadores e artistas interessados numa sociedade para “além do capital”, nada é mais importante do que expropriar os meios e veículos de comunicação de massa.

Não nos deve interessar discutirmos sobre uma possível abertura midiática para a participação das chamadas “minorias” em programas como o BBB. Antes, esse tipo de atração pode servir para exemplificar, em nosso trabalho de base, a necessidade da reorganização da comunicação através de um programa socialista e, por isso, revolucionário. Um programa que sirva, de fato, aos interesses da maioria dos trabalhadores explorados.

Thiago Cervan é educador popular e militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira. Publicou, entre outros, “Não existem rotas conciliatórias de fuga” (Ed. Urutau, 2016).

REFERÊNCIAS

[1] LUKÁCS, G. Marx e o problema da decadência ideológica. In: LUKÁCS, G. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

[2] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/01/sertanejos-encontram-bolsonaro-e-chamam-meia-entrada-de-injustica-historica.shtml

[3] ENGELS, F; MARX. K. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.p. 381 Disponível em: http://abdet.com.br/site/wp-content/uploads/2014/12/A-Ideologia-Alem%C3%A3.pdf

[4] https://observatoriodemusica.bol.uol.com.br/noticia/2019/08/confira-os-caches-mais-caros-no-mundo-do-sertanejo-valor-chega-a-r600-mil-por-show-

[5] FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Rio de Janeiro. Editora Guanabara, 9ª edição. p.50

[6] CHÃ, Ana Manuela de Jesus. Agronegócio e Indústria Cultural: estratégias das empresas para a construção da hegemonia. São Paulo: 2016. Disponível em https://repositorio.unesp.br/handle/11449/144217

[7] https://intervozes.org.br/fechamento-da-radio-muda-e-mais-um-atentado-contra-a-liberdade-de-expressao-no-brasil/

[8] http://www.startagro.agr.br/por-que-o-agronegocio-precisa-de-uma-comunicacao-moderna/

[9] Sobre a regulação da mídia no Brasil ver “Levante sua Voz”. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=hlgvEuysACI&t=9s

[10] Para melhor compreensão do papel do Estado brasileiro no setor comunicacional ver: MARTINS, Helena. Comunicações em tempos de crise : economia e política. São Paulo: Expressão Popular, 2020. Disponível em: https://www.expressaopopular.com.br/loja/wp-content/uploads/2020/01/comunicacoes_tempos_crise.pdf

[11] GAWRYSZEWSKI, Alberto. Arte visual comunista: imprensa comunista brasileira, 1945- 1958. Londrina: Universidade Estadual de Londrina/LEDI, 2010.

[12] Para compreender o papel da mídia venezuelana no golpe sofrido pelo governo de Hugo Chávez em 2002 ver “ A revolução não será televisionada”. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FppdfwqmImE&t=913s

Categoria
Tag