Triunfalismo, imobilismo e trabalho ideológico
Foto: Letícia Menezes
Por Leonardo Silva Andrada
“Nossa principal tarefa era nos estabelecermos nos corações do povo.”
Tranh Dinh Minh, FNL Vietnam
Março de 2020. Mal completávamos o primeiro trimestre de assombro com a nova pandemia global e já vinham à luz as primeiras análises sobre seus efeitos para a ordem social que iria florescer de seus resultados. A inviabilidade de soluções particulares para um problema coletivo, a relevância dos centros públicos de pesquisa e o papel decisivo do sistema público de saúde seriam os fatores responsáveis por fazer emergir a constatação da falência dos valores individualistas que orientam a ordem neoliberal, forçando a inevitabilidade de uma nova configuração social de caráter coletivista, atenta às demandas das classes subalternas, à emergência ambiental e ao papel do Estado como agência redistributiva de recursos. Passado mais de um ano do início da maior crise sanitária em mais de um século, com profundos impactos econômicos, é possível uma apreciação mais cuidadosa dos seus reflexos nas relações sociais e comportamentos coletivos – e podemos dizer, infelizmente, que não temos indícios de que os apressados exercícios de futurologia do ano passado tenham acertado em seus diagnósticos.
Aqui pretende-se concentrar o foco apenas nos aspectos mais destacados dos comportamentos coletivos, como indicativos dos valores e relações sociais que expressam. A despeito de toda a expectativa gerada quanto à compreensão da imposição de soluções coletivas, com a adesão em massa de parâmetros para preservar a saúde de todos, as reações apontam para diversas manifestações de exacerbação do individualismo egoísta. O contágio se propaga a partir dos eventos inescapáveis da vida em sociedade: o ônibus, a fila do banco, o mercado, o refeitório. Situações que expõem a impossibilidade de que cada um escolha se quer ou não tomar os cuidados definidos por comitês sanitários, pois todos podem ser pólos de disseminação do vírus. Se a divisão social do trabalho torna imprescindível que algumas categorias permaneçam em atividade, a solução possível é reduzir a circulação de pessoas ao mínimo indispensável, buscando restringir os fatores de propagação. Contrariando as expectativas triunfais de predomínio do coletivismo, e as orientações científicas de respeito a regras universais para o controle do contágio, proliferam as reações de exacerbação do egoísmo. As aglomerações são verificadas nas praias de Recife e Santos, nos bares do Leblon e na Savassi, no Brás, no Ver o Peso, em sítios da Grande Belo Horizonte, em clubes de Florianópolis ou no camelódromo de Goiânia, em bailes no Alemão e na Zona Leste de São Paulo, nos cafés de qualquer centro urbano e nas festas clandestinas nos bairros de periferia ou áreas nobres de norte a sul do país.
Apesar de respostas semelhantes, que são diuturnamente apresentadas no noticiário como equivalentes, as razões para o comportamento de risco variam de acordo com a classe. O senso de superioridade e insubmissão às leis acompanha o comportamento das classes dominantes desde o período colonial, ao passo que na classe trabalhadora são experimentados sentimentos de abandono e urgência, somados à necessidade de se aglomerar em transportes urbanos, desde sempre precários, e enfrentar o risco nos locais de trabalho. Uma obrigação inescapável que obstrui a compreensão quanto à necessidade de se isolar, que nesse cenário se torna privilégio de que não dispõem. Os trabalhadores não tiveram o amparo necessário para manter o isolamento, são obrigados a enfrentar o risco e a morte diariamente para garantir o lucro do patrão que se protege, portanto, não têm qualquer base material para incorporar as preocupações orientadas por comitês científicos. Enquanto falta a instância de formulação ideológica que ofereça a explicação de por que são colocados nessas situações, que interesses impedem sua autopreservação e como pode se organizar para resistir e reverter esse quadro, outras fontes de referência fornecem justificativas para não aderir a tais medidas que comprometem sua renda, sua liberdade e sua vida, apresentadas como artimanhas de inimigos do regime político que defende sua família.
Em oposição a essas referências, é imprescindível opor uma outra elaboração ideológica, produto de uma instância organizativa que forja a leitura coletiva, ideológica da pandemia: as razões de classe para a dificuldade econômica, derivada da exploração do trabalho; a ausência de um auxílio emergencial robusto, graças à orientação neoliberal de um Estado que elimina políticas públicas, para direcionar recursos ao capital financeiro. Uma instância que seja capaz de mobilizar essa interpretação para sustentar um projeto político que supere historicamente a divisão de classes, através da construção coletiva do Poder Popular. Essa instância se constituiu historicamente, no movimento dos trabalhadores, como o partido revolucionário. É uma tarefa imediata que se coloca aos comunistas, nessa conjuntura, o esclarecimento ideológico nesses termos.
É nos espaços construídos coletivamente, ao longo dessa história da luta de classes, que as concepções a respeito das causas dos problemas e o caminho político de sua superação são elaboradas, emergindo do confronto de visões em cujo debate emerge a síntese. O horizonte para onde aponta essa síntese, se revolução ou negacionismo científico e busca individual de ganhos, dependerá das condições de sua própria formação. Em síntese, a orientação ideológica é um produto direto do espaço de sua formação, se o Partido da classe organizada ou o aplicativo de mensagens que reproduz o discurso do obscurantismo, sem revelar seus interesses. A referência ideológica que subsidia correntes de mensagens por telefone deriva em larga medida de uma religiosidade de corte fundamentalista, ancorada em leituras muito particulares da Bíblia, que orientam a um comportamento cristão sob medida para os requisitos do ultraliberalismo. A exaltação do indivíduo, o “empreendedorismo” e a glorificação do consumo emergem como atualização da ética que alimenta o comportamento adequado ao capitalismo; a resignação e a busca por adaptação facilitam a aceitação de condições precárias das relações de trabalho uberizadas.
O que nos interessa, do ponto de vista do Partido que tem a tarefa histórica de organizar a classe trabalhadora para a luta, é identificar onde essa mesma classe está buscando suas referências para compreender a sua tragédia cotidiana; e mais, realizar o trabalho necessário para estarmos lá, cumprindo esse papel. É imperativo desenvolver a metodologia eficaz para traduzir nossas análises e nosso programa em uma referência palpável para os trabalhadores, tornando-se assim uma diretriz para a ação. Essa é a realização prática da palavra de ordem “aliar o otimismo da vontade ao pessimismo da razão”: a interpretação realista e bem fundamentada de uma situação que promove o sofrimento diário, apontando suas causas e responsáveis, deve ser complementada com a demonstração de que não se trata de uma fatalidade ou um destino imutável. Por isso devemos cumprir esse papel de referência, oferecendo uma explicação clara e compreensível da relação entre o sofrimento vivido na pandemia e suas causas diretamente vinculadas ao capitalismo, às relações de trabalho, à exploração e aos interesses dominantes que controlam o sistema político e determinam as escolhas dos agentes. É apenas assumindo esse papel que podemos empurrar a interpretação para o campo da superação de uma condição que não atende nem pode atender as necessidades da classe trabalhadora, pois é estruturada em sua exploração.
A opção ideológica e política por esse caminho não acontece por automatismo, como reflexo imediato do drama cotidiano, e contribuir para seu esclarecimento é uma tarefa essencial dos revolucionários nesse contexto de pandemia. Nesse sentido, é importante intensificar o trabalho ideológico, que já fazemos com debates de temas da conjuntura, mas é também fundamental aprofundar a discussão de como levar esse trabalho para outros espaços, indo ao encontro da classe onde ela mais precisa. Não é um trabalho simples nas condições em que se encontram os movimentos sociais e sindical nessa fase do capitalismo, e se tornou consideravelmente mais árduo no contexto da pandemia, pois muitas de nossas atividades tradicionais de militância sofrem severas restrições visando o respeito aos protocolos de distanciamento e preservação da vida. É contudo uma tarefa complexa, que deve ser encarada com a seriedade que a situação demanda; o trabalho dos comunistas nunca foi simples, mas nem por isso nos eximimos da luta.
É, portanto, incontornável que os comunistas promovam o trabalho ideológico de esclarecimento da ligação entre o governo e as centenas de milhares de mortes, o desemprego, a falta de vacinas, o aprofundamento da crise econômica. Mais do que isso, a demonstração objetiva de que os perigos e malefícios que o bolsonarismo representa vão além da pessoa física do presidente. Deve ficar claro que não basta afastá-lo, imaginando que qualquer coisa que o substitua irá solucionar essas questões. Costurar alianças para 2022, que signifiquem garantir que o próximo governo fará as reformas que Bolsonaro não consegue entregar, não resolve os problemas e atualiza a luta para a próxima gestão. Os comunistas devem e vão continuar no esforço permanente de demonstração de que, por trás da fachada de estupidez e barbárie desse atual governo, estão os interesses permanentes da burguesia brasileira. As frações dominantes, ágeis na identificação da incompetência desse atual governo para realização de suas reformas que aprofundam o esbulho da classe trabalhadora, já vem realizando seu descolamento desse bloco no poder, replicando o seu comportamento na ditadura civil militar a partir da distensão, que se inicia uma década após o golpe. E também, a exemplo do procedimento adotado no período, realiza essa dissociação e prepara a continuidade da autocracia em um processo “lento, gradual e seguro”, que se arrastou por mais uma década. A estratégia atende a um propósito político que nunca sai do horizonte, garantir o controle das alterações políticas pelo alto, mantendo excluídas do processo as classes trabalhadoras.
É manifestação eloquente da indisposição com os movimentos populares, o tratamento da grande mídia dispensado aos atos do último dia 29 de maio, indicando os limites da “oposição” que esses grupos, como porta-vozes da burguesia, estão dispostos a promover. No dia seguinte a manifestações de rua em mais de duzentas cidades, com uma participação popular que em tempos de pandemia só pode ser vista como gigante, jornais de circulação nacional optaram por estampar em suas capas amenidades e insinuações de recuperação econômica. Por mais que venham desgastando a imagem do governo há mais de um ano, não encontra abrigo nesse comportamento político a abertura a uma contestação que tenha origem e seja conduzida de forma autônoma pelas classes populares através de suas organizações. Este é apenas o mais evidente traço dos motivos para que os comunistas mantenham suas reservas em relação a uma frente amplíssima “contra o fascismo”, que inclui forças que contribuíram para sua entronização, e cujos interesses não podem ser contemplados sem que os da classe trabalhadora sejam comprometidos. A luta consequente contra o bolsonarismo e seus reais significados políticos para a classe trabalhadora depende da identificação dos interesses políticos que devem ser derrotados, as forças que os representam, e que coalizão atende, de fato, aos trabalhadores. Os atos de 29 de maio devem ser vistos como um marco da retomada das ruas pelas organizações populares, e não devemos ceder às forças que pretendem atuar como freios da luta de classes. Nosso esforço de aprofundamento do trabalho ideológico deve servir, enfim, para ampliar nossa atuação, da forma como demonstramos onde estivemos presentes: organizados, disciplinados e comprometidos com as pautas da classe trabalhadora. Emprego, comida no prato e vacina no braço!