NUNCA SAÍMOS DAS RUAS!

imagemH. Suricatto*

Uma manifestação de rua é uma demonstração de força, é consequência direta de todo um trabalho prévio de agitação e propaganda lastreado em sólidos trabalhos de base das organizações que o constroem, independentemente se ele foi planejado ou foi um levante espontâneo. Se ele consegue mobilizar massas de independentes e pessoas que mal frequentam manifestações em tempos normais, sobretudo em tempos de pandemia, significa que as palavras de ordem conseguiram acertar em cheio o espírito geral de inconformismo e a necessidade de se movimentar para derrubar este governo aqui e agora.

Se um governo te obriga a se manifestar no meio de uma pandemia significa que este governo é mais perigoso que o vírus. Essa excelente constatação popularizada nas manifestações da Colômbia e importada sem nenhum prejuízo para nosso contexto nacional é uma perfeita síntese do que ocorreu neste dia 29 de maio. Vamos observar algumas consequências.

Uma hipocrisia exposta

Não passou despercebida a ausência de uma cobertura de peso por parte da grande imprensa. Até mesmo colunistas da Folha, Estadão e O Globo notaram a ausência de manchetes a respeito de atos tão vigorosos. Os militantes mais experientes e os veteranos de luta já estão acostumados com essa ausência proposital de cobertura de grandes manifestações da esquerda. Cansamos de ver isso sobre greves e lutas espontâneas abafadas, com claro fim de esvaziar seu potencial de engajamento pela justeza de suas reivindicações e trabalhar a serviço do patronato com a omissão dos fatos, como na recente paralisação dos metroviários paulistanos na semana passada. Mas depois de estimularem abertamente a participação na rua em 2016, de terem colocado uma gritante capa em jornal impresso acerca daquelas manifestações em favor do impeachment de Dilma, no day after não tinha nada disso. Estavam jogando com uma suposta memória curta dos espectadores e dos leitores.

Mas rapaz! Não eram vocês os arautos da democracia e da liberdade contra a barbárie? Que estimularam seus leitores a usarem amarelo e lutar contra o autoritarismo? Agora, quando finalmente temos mobilizações massivas de rua, se valem da retórica da aglomeração em tempos de pandemia para alegar que “não é hora de se manifestar nas ruas”? Então estavam meramente contentes com atos simbólicos, os quais, embora necessários, por si só eram insuficientes para engajar a sociedade contra Bolsonaro. Se as classes mais pobres deste país já se aglomeram todos os dias em seus locais de trabalho e sobretudo no transporte público para manter a economia funcionando, por que estes mesmos trabalhadores também não podem por convicção ir às ruas para reivindicar no mínimo o fim dos ataques às suas condições de vida? Que venha logo a vacina para poder retornar a um mínimo de estabilidade? Testemunhamos muitos deles saindo de seus trabalhos e indo diretamente às passeatas.

Não é preciso ir muito longe para recordar que nossa republicana imprensa brasileira se entusiasmou toda na cobertura de um movimento combativo, quando os americanos saíram às ruas para se manifestar contra a o racismo e a consequente violência policial voltada contra os negros estadunidenses em plena pandemia, fundamental para desgastar e retirar Trump da reeleição no fim do ano passado. Mas, seguindo a cartilha ditada pelas grandes agências de notícias, tratou de dar explicações simplistas aos eventos e omitiu do grande público os verdadeiros fatores para que a morte de George Floyd ganhasse tamanha mobilização por parte dos estadunidenses e abalasse internamente os alicerces do império ao escancarar a grande sociedade racista que os “campeões do mundo livre” são. Aqui no Brasil não seria diferente.

A grande imprensa prova que a única mobilização popular que a interessa é aquela onde a esquerda classista não é protagonista, a que consegue patrocinar sem temer um desenvolvimento à esquerda, aquela cuja capacidade de cooptação por forças mais recuadas seja possível, tal como apostaram no meio de 2020. Isso explica aos novos lutadores, por exemplo, a ausência de cobertura efetiva acerca das jornadas de lutas feitas pelos trabalhadores e a juventude colombiana há mais de um mês. As críticas por essa proposital falta de cobertura à altura dos fatos tal como eles ocorreram foi tão pesada a ponto do principal telejornal brasileiro, o Jornal Nacional da TV Globo se dedicar a uma extensa matéria acerca destas manifestações na segunda, dia 31, bem diferente de sua cobertura no sábado, 29. Afinal, muitos foram aos atos, muitos viram quem estava indo aos atos, testemunharam pessoas próximas a elas que aderiram às manifestações e questionam o porquê de não terem falado deles.

As demarcações de posição

Embora todo o espectro definido pela noção clássica de esquerda estivesse apoiando os atos, a convocação, adesão e participação foram diferentes. O campo classista e combativo foi no Brasil inteiro protagonista das mobilizações. Era bem visível aos olhos dos mais politizados a ampla participação do PCB e de outros partidos de nosso campo, que estavam muito expressivos em organização e em tamanho, jogando contra a corda as forças do campo democrático popular, sobretudo o PT, com o silêncio de Lula. Mas houve uma visível adesão de organizações petistas e simpatizantes ao ato, apesar de suas lideranças.

Ciro Gomes do PDT também ficou em silêncio, mas este está em declínio e nem vale a pena se aprofundar a seu respeito. Foi até bom que tais silêncios ocorressem, pois evidenciam a retórica de ver o governo Bolsonaro sangrar e aguardar as eleições de 2022, em contradição com a manifestação da realidade, da exigência do proletariado de cessar o agravamento da pandemia e da crise econômica. Dos muitos independentes ali nestes atos, a simpatia com o PT com sua linha e programa e admiração a Lula era bem notável, mas a ausência de posição própria de seu grande líder pode frustrar esses independentes. A realidade da natureza política dos petistas é ensinada na melhor escola em que um jovem ou trabalhador confuso possa ter, a da prática. Sim, dirigentes do PT estavam nestes atos, entretanto, eles também não lhes deram peso. Mas são parcialmente reféns de suas bases de apoio, são reféns da própria retórica que adotaram em parte e tais contradições ficarão mais e mais visíveis à medida em que essas mesmas bases e dos trabalhadores ainda influenciados pelo petismo.

As maiores centrais sindicais fazem muito pouco para construir nos locais de trabalho, onde são formalmente a direção dos trabalhadores, e erguer a partir destes locais uma mobilização com objetivo claro de derrubar Bolsonaro e se valer do poderoso instrumento da Greve Geral, da paralisação, para se somar às forças combativas e abdicar de sua mesquinha agenda burocrática. Essas pessoas que tiveram contato conosco devem aprender que a melhor maneira de anular os oportunistas é direcionar as mobilizações atuais para a derrubada imediata de Bolsonaro e Mourão. Somente com uma percepção clara do objetivo e trabalhando em cima dele iremos derrotar nosso inimigo número 1 e, ao mesmo tempo, demonstrar a centenas de milhares de lutadores e a milhões de trabalhadores quem de fato leva as palavras de ordem à risca. Os comunistas não trabalham com lógica de calendário, não trabalham com a perspectiva eleitoral, não reivindicamos salvadores da pátria para solucionar a atual crise em que vivemos. Nossa força está apenas lastreada na independência de classe através de nossos instrumentos de luta e a imposição de nossos interesses.

O efeito prático nos participantes

O efeito psicológico destas manifestações junto aos presentes é muito produtivo, a moral é elevada, o entusiasmo ao participar de tamanha demonstração de força é visível. Devemos sinalizar todo esse entusiasmo em trabalhos políticos de base, em agitação, em propaganda. O testemunho positivo desses atos por quem estava presente ou o acompanhou por fora é uma poderosa ferramenta de propaganda. Foi esse “boca a boca” que desmontou a farsa da imprensa, a fomentar uma adesão para além dos organizados. Muitos manifestantes, incluindo nossos militantes, puderam ver que não estavam sozinhos, que não eram inexpressivos. Foi uma injeção de um otimismo real, aquele com enorme potencial criativo. O engajamento coletivo de forma permanente cria esse espírito de corpo. Dessa percepção para ir se organizar, podemos dizer de forma popular que são dois pulos.

A adesão espontânea de manifestantes aos nossos blocos demonstra um amadurecimento na consciência geral dos lutadores mais consequentes, a necessidade de se organizar coletivamente. Há de se confessar, ainda está aquém de nossas tarefas históricas, mas deve canalizar toda essa energia empregada nas manifestações e utilizar no avanço de nossos trabalhos de base, no cotidiano das mais variadas lutas, todas norteadas por objetivos em comum: a superação da sociedade capitalista.

Mas lembrem-se! Nunca devemos esquecer do trabalho prévio que nos levou a um ato tão massivo. Colocar isso apenas nas costas da conjuntura em si, embora seja fundamental não explica como um todo como foi possível, seria uma apologia barata ao espontaneísmo. Recordai-vos dos atos anteriores, daqueles necessários para se contrapor a escalada golpista, aos atos antirracistas e antifascistas. Dos atos simbólicos de defesa do SUS, de todo um trabalho de propaganda realizado em condições precárias em frente e dentro dos locais de trabalho e de moradia, em cada brigada de solidariedade, em cada panfletagem e em cada cartaz ou faixa colocado nas ruas. Se muitos puderam se isolar ou evitaram ao máximo se expor para proteger seus familiares mais vulneráveis, estavam na retaguarda realizando propaganda nas redes sociais e não perdiam tempo com falsas polêmicas que as redes forçam a difundir para desviar o foco. Contra essa mesquinharia, tinha sempre alguns comunistas nas ruas realizando esses trabalhos práticos, camaradas que nunca saíram das ruas, colaborando para fomentar e fundamentar na nossa classe a necessidade de organizar sua indignação e colocá-la em luta.

O necessário e velado trabalho de base, exercido nas mais várias esferas de atuação, as lutas empregadas em socorro da nossa classe não podem render muitas vezes boas fotos ou de imediato despertar entusiasmo, mas é o trabalho mais fundamental, o fundamento de qualquer movimento que pretende ser vitorioso. É a velha toupeira trabalhando no subterrâneo, para fazer a terra sobre os pés de nossos inimigos ceder e dela surgir com sagacidade. Quem vai às ruas pela primeira vez ou apenas comparece às manifestações, mas sente a necessidade de se organizar deve tomar conhecimento desse exército de militantes anônimos que por trás tornaram esses atos possíveis. Atos de rua são muito importantes, mas, repetindo, são apenas consequências de trabalhos prévios, sua força está diretamente atrelada à sua capacidade de mobilização e não apenas à legitimidade de suas reivindicações.

Para finalizar, demos neste último sábado uma forte voz ao luto; o luto coletivo de quase 500 mil famílias brasileiras encontrou respaldo nas ruas e, podem ter certeza, irá prosseguir, deve prosseguir, até a derrubada de Bolsonaro. Eles nunca vão esquecer quem fez do luto deles luta e nós não devemos deixar que oportunistas os façam esquecer. Essa é a nossa tarefa, esse é nosso compromisso com a nossa classe.

*É Membro da CEUJC/SP e Militante do PCB/SP

São Paulo, 31 de Maio de 2021

Adendo

Enquanto escrevia estas linhas, tomei conhecimento da possível realização da Copa América no Brasil depois de ser cancelada na Colômbia (por conta da luta hercúlea protagonizada pelos trabalhadores) e na Argentina (aumento das contaminações). É cedo demais para afirmar se o evento de fato será realizado em nosso país, mas, depois de ser constatada a demora de meses para responder a um e-mail acerca da compra de milhões de doses da vacina contra Covid em contraponto à resposta rápida para realizar um evento esportivo, isto só reforça ainda mais os argumentos e a legitimidade que nós temos perante toda a sociedade para prosseguir com as mobilizações pela derrubada imediata de Bolsonaro/Mourão. Os comunistas têm a obrigação de ser os protagonistas desta contestação. Oito anos depois das mobilizações de Junho de 2013, tendo como pano de fundo outra competição futebolística (Copa das Confederações) a arapuca contra Bolsonaro se arma pelas mãos do próprio Bolsonaro, e não haverá milícia, centrão, olavistas, negacionistas, fascistas e nenhum outro capitalista ou oportunista que o salve, apenas a nossa inércia de não ousar vencer.