Balanço das desigualdades na pandemia
Foto: ANF
Por Rafaela Fraga
JORNAL O MOMENTO – PCB DA BAHIA
Balanço das Desigualdades Sociais durante a Pandemia de COVID-19 no Brasil – Ao caminhar, cantar e seguir a canção, em 1979 Geraldo Vandré nos vozeou que somos todos iguais, de braços dados ou não. Mas… igualdade no Brasil? Essa ainda nos é desconhecida. Quanto aos braços dados, esses existiram: entre negros escravizados, povos indígenas enganados, mulheres abusadas; entre camponeses e classe trabalhadora urbana; entre os grupos historicamente e até hoje preteridos e excluídos; aí sim, houve braços dados e punhos altos em luta.
Para um país que se forjou sob uma sequência de violências a partir da invasão europeia às américas, engendrar uma nova cultura social e política seria um desafio e tanto. Infelizmente, nesse desafio nosso Brasil falhou – e quem paga o pato são os mesmos de 1500 e 1550. Isto, nem sou eu que digo; basta olhar os números. Vejamos alguns para iniciar:
Em 2018, segundo pesquisas do IBGE, o Nordeste era a segunda região com mais pessoas autodeclaradas pretas ou pardas – 74,5%, perdendo apenas para a região Norte, com 78,9%. Paradoxalmente, de acordo com outra pesquisa do mesmo ano, também do IBGE, a segunda região mais negra do Brasil era a líder nas taxas de desocupação e subutilização da força de trabalho, alcançando os absurdos 50% – destes, 14% referentes à primeira taxa e 36% à segunda.
Para não dizer que não falei das flores, farei um comparativo com a região mais branca do país, segundo as mesmas pesquisas apresentadas no parágrafo anterior: a região Sul, que tem sua população composta por 73,9% de autodeclarados brancos. A taxa de desocupação e subutilização entre os 3 estados meridionais era, em 2018, de 23% (7,8% referente à primeira e 15,2% à segunda). Mais uma vez: 23%.
Esses dados nos dizem que a região mais branca do país é 27% menos desempregada que a região mais negra do país. E isso, sem falar na informalidade, nos “freelancers” e nos “PJs”, que, depois da onda de terceirização, vêm substituindo avassaladoramente a carteira assinada. Mesmo deixando o trabalhador à deriva, essas modalidades ainda são consideradas ocupação, e é como tal que entram nas estatísticas.
Diante de tais fatos, podemos afirmar com veemência que não há, aqui, coincidência alguma. Quando a Lei Áurea foi, por conveniência da elite dominante, assinada em 1888 no Brasil, pretos e pardos não foram libertos; foram jogados à própria sorte, sem renda, sem moradia, sem emprego, sem direitos, relegados ao pior daquela sociedade.
As mulheres, com filhos dolorosamente frutos de abuso sexual por seus senhores – crias ainda por cima consideradas bastardas -, tinham que sustentá-los sozinhas, estando já na base da pirâmide; homens, por sua vez, eram tratados como mulas de trabalho; em ambos os casos, negros objetificados, com sua humanidade crucialmente arrancada desde seus ancestrais mais próximos.
Olha que meu artigo sequer estaria centrado sobre a ótica do racismo estrutural no Brasil, mas é impossível falar de desigualdade sem passar por aspectos mais centrais da formação da sociedade brasileira, que, no que lhe concerne, também é inconcebível sem tanger o assunto. Este país não superou, e está muito longe de superar a herança que o sistema escravocrata deixou para o capitalismo de acumulação primitiva, fordista e hoje, neoliberal, dar continuidade.
Como se não bastasse esse lastimável contexto, chegamos a 2021 como sobreviventes de um Brasil comandado por um protofascista neoliberal, que faz do Brasil um verdadeiro Titanic: salve-se quem puder. Além da Lei da Mordaça (“Escola sem Partido”), do Future-se, da Reforma Administrativa, da Reforma da Previdência, da EC-95, dentre outras leis e medidas antipovo, ainda sob a gestão deste crápula o Brasil foi atingido pela pandemia do mortal SARS-COV-2, o novo coronavírus.
O coronavírus foi providencial para Bolsonaro: acelerou a execução de um projeto político planejado para chegar no auge paulatinamente, e, recobrindo a inação do presidente e seus comparsas, o vírus ainda deu conta de tirar do povo as condições mais básicas de se manifestar nas ruas, essa que é a principal e veraz via de conquista de direitos, de se fazer ouvir. Tsunamis humanos que exigiam o que já deveria ser seu e garantido pelo Estado.
Voltemos aos dados: como está o Brasil com a gestão de Bolsonaro?
Segundo a PNAD Contínua do último abril, no primeiro trimestre de 2021 o Brasil alcançou a violenta taxa de 14,4% de desocupação em todo o país, taxa que cresceu 2,7% no período de apenas 1 ano. Essa estatística representa quase 20 milhões de pessoas! E, segundo o Jornal Valor Econômico, com base na mesma pesquisa supracitada, em janeiro de 2021 o Brasil acumulava mais de 34 milhões de trabalhadores na informalidade, taxa que marcou os 39,7%.
Esses dados por si só já nos desvelam como o brasileiro tem vivido até aqui; mas não é só isso. Ainda de acordo com o IBGE, a inflação acumulada bateu no alarmante nível de 6,76% em abril. Isso impacta diretamente no valor do dinheiro que recebemos, cada vez mais desvalorizado, significando que precisamos de mais e com ele compramos menos; impacta no gás de cozinha, que está quase 40% mais caro, chegando a custar R$100; impacta na cesta básica, que, segundo resultados de março do DIEESE, compromete 53,71% do salário mínimo líquido – isso, para quem chega a receber um salário mínimo.
Vale mencionar: o salário mínimo, por sua vez, não tem ganho real há pelo menos 5 anos. Mesmo a inflação tendo subido 3,81 pontos percentuais no período em questão, o montante básico pago ao trabalhador CLT aumentou o irrisório valor de R$163 de 2017 a 2021.
Agora, paremos para relacionar todos esses dados ao cenário brasileiro: pico de 2ª onda de transmissão da COVID-19, apontando para a 3ª; vacinação atrasada por negligência do Governo Federal; auxílio emergencial cortado; ônibus lotados; violência policial nas periferias sem descanso – basta olharmos para Salvador e Rio de Janeiro, que não param de revezar o noticiário com assassinatos de jovens negros sob a pecha de “troca de tiros em operação policial”; Brasil de volta ao mapa da fome; alta nos índices de pobreza extrema e miséria…
Resultado: quase 450.000 mortos no Brasil apenas em decorrência da COVID-19. “Apenas” porque nem estamos incluindo, nestes números, os “casos isolados” envolvendo mulheres, negros, LGBTs, indígenas, lutadores por moradia e terra. É uma carestia generalizada. Situação de calamidade pública. E um presidente que, rindo na nossa cara, passeia de moto, sem máscara, acenando para a morte e comemorando a vitória do seu projeto político, que significa a nossa derrocada.
Engana-se quem acredita haver qualquer correlação com transtorno mental ou índole: é, na verdade, a expressão mais crua de um sistema que tem como pressuposto básico a exploração social entre seres humanos, utilizando como critério o poder econômico – gerando, a partir dele, poder político e social. Em suma, os mandos e desmandos de como fica a vida das massas trabalhadoras.
Entretanto, o engano maior é o de quem pensa que tudo isso está dado e acabado. Não lembra? Brecht nos ensinou: Desconfiai do mais trivial, / Na aparência singelo. / E examinai, / Sobretudo, / O que parece habitual. / Suplicamos expressamente: / Não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, / Pois em tempo de desordem sangrenta, / De confusão organizada, / De arbitrariedade consciente, / De humanidade desumanizada, / Nada deve parecer natural, / Nada deve parecer impossível de mudar.
Os dados da Universidade Americana Johns Hopkins, atualizados em março de 2021, revelam: o Taiwan teve 10 mortes por COVID desde o início da pandemia, em março de 2020; Vietnã, 35; Austrália, 909; China, primeiro país a registrar morte pelo vírus – ainda em 2019 -, perdeu 4.841 vidas. Fazendo uma pesquisa rápida pela internet sobre nossos vizinhos mais próximos, encontramos: Venezuela somando um índice total, até o dia de hoje (24/05), de 2.513 mortes pelo coronavírus; Bolívia, com 13.965; Cuba, com 877. Como eu disse: no total, desde que foi deflagrada a pandemia.
Ora, mesmo levando em conta as proporções geográficas, por que países como Brasil, Estados Unidos e Índia chegaram a registrar mais de 4.000 mortes por dia?! O que têm esses países em comum, e o que torna a pandemia neles agravada a tal ponto? Certamente, não é nenhum tipo de predisposição genética ou psicológica de sua população; talvez, índices de desigualdade social elevados e características semelhantes de enfrentamento à pandemia, sobretudo, por acaso ou não, convergência em programa político.
Não é com leveza ou tranquilidade que escrevo este artigo. Lamentavelmente, não há a menor possibilidade de falar sobre o Brasil de 2021 com um tom diferente do utilizado aqui. Mas é necessário, pois, em tempos de desinformação e apassivamento sistemático, precisamos cuidar uns dos outros. E esse cuidado inclui o acalento, mas vai além; nosso cuidado exige informação, conscientização, solidariedade, um verdadeiro espírito de irmandade entre trabalhadores frente a essa conjuntura que tem tudo contra nós.
Esse cuidado significa união, fortalecimento mútuo na vida cotidiana e também nas ideias, pois é o avanço delas que pode balizar uma mudança social concreta e vice-versa. Mas não cai do céu, e muito menos do parlamento. Vem da nossa luta, da nossa ação.
Uma parcela pequeno-burguesa fala muito em aprendizado na pandemia; então, para a minha classe – essa que tem morrido de COVID e de fome -, eu desejo o aprendizado sobre não acreditar em heróis. Não temos salvadores. Somos nós a nossa salvação e, portanto, que nos agrupemos pela nossa libertação.
Vai passar / Nessa avenida um samba / Popular / Cada paralelepípedo / Da velha cidade / Essa noite vai / Se arrepiar / Ao lembrar / Que aqui passaram / Sambas imortais / Que aqui sangraram pelos / Nossos pés / Que aqui sambaram / Nossos ancestrais / Num tempo / Página infeliz da nossa / História / Passagem desbotada na / Memória / Das nossas novas / Gerações / Dormia / A nossa pátria mãe tão / Distraída / Sem perceber que era / Subtraída / Em tenebrosas / Transações / Seus filhos / Erravam cegos pelo / Continente / Levavam pedras feito / Penitentes / Erguendo estranhas / Catedrais / E um dia, afinal / Tinham direito a uma / Alegria fugaz / Uma ofegante epidemia / Que se chamava carnaval / O carnaval, o carnaval (Vai passar) / Palmas pra ala dos / Barões famintos / O bloco dos napoleões / Retintos / E os pigmeus do bulevar / Meu Deus, vem olhar / Vem ver de perto uma / Cidade a cantar / A evolução da liberdade / Até o dia clarear / Ai, que vida boa, olerê / Ai, que vida boa, olará / O estandarte do sanatório / Geral vai passar / Ai, que vida boa, olerê / Ai, que vida boa, olará / O estandarte do sanatório / Geral / Vai passar. (Chico Buarque, 1980)
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