CPI, impeachment e via prussiana à brasileira

imagemOs Limites da Dissidência Burguesa

Leonardo Silva Andrada

“É preciso que algo mude, para que tudo fique como está”

Giuseppe Tomasi di Lampedusa, Il Gattopardo

A CPI das vacinas escancara um motivo concreto para a fissura interna do bloco no poder, quando traz ao sol a disputa entre dois grupos no Ministério da Saúde. Deixa a descoberto a verdadeira razão para que tantas notícias de corrupção e desvio venham a conhecimento público. Não parece razoável acreditar em surtos republicanos vindos dos envolvidos, que numa manhã deste inverno frio tenham despertado incomodados com o mau trato do bem público; ou mesmo que se refira a uma oposição coerente ao projeto bolsonarista, capitaneada por figuras como o presidente e o relator da CPI, além de outros membros destacados no desgaste do governo, fustigando depoentes. Sejam os senadores membros da Comissão, sejam os deputados que apresentam denúncias ou empresários e outros personagens que forneçam relatos comprometedores, estamos diante de agentes que jamais tiveram qualquer simpatia pelo campo político popular, atuaram para que esse governo fosse eleito e serviram como base de apoio até muito recentemente.

O que esse teatro institucional desvela, uma vez mais, é a movimentação dos verdadeiros portadores do poder para recolocar os cachorros no canil, como foi necessário na segunda metade da ditadura civil-militar. É a história se repetindo de forma farsesca, como diz a frase já reconhecida até pelo gramado da Praça dos Três Poderes. Sempre que as margens de acumulação do capital dependem de políticas excessivamente antipopulares, a burguesia recorre a soluções truculentas para impor um programa econômico que atenda aos seus interesses. Em 1964 precisaram dos militares para dar um golpe de Estado, arrebentar as organizações autônomas da classe trabalhadora e impor uma política econômica recessiva, que incluía arrocho salarial e ilegalidade das greves, visando a incorporação do capitalismo brasileiro ao circuito monopolista e financeiro internacional. O sucesso da estratégia se revelou no “milagre” que promoveu ao mesmo tempo concentração, recordes de crescimento junto com rebaixamento acelerado da renda do trabalhador – mas ao mesmo tempo acionou mecanismos que levaram ao desmantelamento da ditadura.

Com o desenvolvimento acelerado (e dependente) do capitalismo brasileiro, houve adensamento e diferenciação das classes trabalhadoras urbanas, que, excluídas do processo político, impulsionaram a contestação, a oposição e o protesto. A decisão histórica pelo fechamento do regime em 1968, por um lado debelou (pela repressão violenta, a tortura, o assassinato) a oposição que se avolumava. Por outro, hipertrofiou o “Sistema”, os agentes da burocracia de origem militar que operavam o andamento do regime, o que acabou deslocando as lideranças do IPES que articularam o golpe e garantiam a representação dos interesses das frações burguesas.

Os setores ligados ao imperialismo tampouco viam com bons olhos esse processo, receando que um regime excessivamente militarizado, e que parecia escapar do controle burguês, pudesse adquirir feições nacionalizantes de fato, deixando de ser mera propaganda ideológica. Ao deslocar industriais, banqueiros e seus empregados dos postos chave para decisões que tocavam interesses gerais e específicos, representaram ameaça ao controle do Estado por seus efetivos donatários. Perderam espaço na definição da política econômica, o que atingia o interesse agregado da classe e nas decisões relacionadas a obras e programas estatais, o que impedia o saque aos recursos públicos que sempre contribuiu em larga medida para o financiamento do capitalismo nativo. O crescimento em volume e força do setor militar, no bloco no poder durante a ditadura civil-militar, foi seu canto do cisne como chefia do Executivo Federal. Ao deslocar os representantes do verdadeiro poder, estes se sentiram ameaçados e começaram a abandonar o barco da ditadura, ao mesmo tempo em que promoviam a articulação da distensão e da abertura, para controlar o processo de instauração de uma democracia tutelada.

O movimento de abandono do bolsonarismo por parte dos setores burgueses, que vem do começo da pandemia e se torna cada vez mais claro e audacioso, tem características muito semelhantes à dissolução controlada da ditadura civil-militar, e agora parece que temos à disposição os elementos concretos para identificar que as motivações igualmente não estão muito distantes. A comprovada incompetência de Paulo Guedes para cumprir seu papel de agente do sistema financeiro, como artífice das reformas encomendadas, representa a frustração com relação à orientação macroeconômica que atenderia à classe. Para completar a insatisfação com o governo, a arraia miúda do Congresso, que tem na drenagem do erário sua razão de ser, perdeu postos de controle de recursos para militares da cota do presidente, ávidos para se aproveitar da chance dourada. A cada depoimento convenientemente vazado para a imprensa, somos informados de disputas entre as gangues pelo controle de verbas e nomeações, que compõem a musculatura do corpo legislativo.

O ritmo lento, gradual e seguro associado à ausência de oposição aberta e decidida pela burguesia ao final da ditadura, nas condições atuais de democracia formal se reformulam na estratégia do sangramento com vistas à anulação eleitoral, sem contudo colocar o impeachment como resposta urgente, por seus efeitos de instabilidade e imprevisibilidade. Se, para a burguesia da segunda metade da ditadura, o regime era um mal menor, para a atual, tolerar Bolsonaro corresponde ao dique que impede a possibilidade de uma reação popular que escape ao controle. Da última vez que colocaram essas engrenagens para funcionar, ao invés do pretendido tucano, elegeram esse boquirroto com pouca inteligência – além de um destacado talento para criar confusão, o que chama indesejada atenção para negócios que dependem das sombras.

As alternâncias na intensidade das respostas às reiteradas provocações do agitador fascista são bons indicadores de como as forças responsáveis pela renovação da via prussiana à brasileira se esforçam para evitar a imprevisibilidade e a instabilidade de um processo de impeachment. As corporações de mídia, termômetro dos humores do capital, já apresentaram seus editoriais em favor do afastamento, mas sua campanha permanente de desidratação não se equipara ao serviço prestado em 1992 e 2016. Lideranças e figuras proeminentes do empresariado já assinaram mais de um manifesto com teor político opositor ao governo, mas não cruzam a linha da estabilidade; um funcionário do império, representante da agência de inteligência por trás dos golpes de Estado na América Latina, assegura que o Brasil é uma democracia robusta com instituições em pleno funcionamento. O Legislativo é mantido inerte a peso de ouro, com emendas e “orçamento paralelo” garantindo a manutenção dos mais de 150 pedidos de impedimento ausentes da ordem do dia, apesar do faroeste espaguete da CPI, cuja produção é mobilizada para a tática de desidratação lenta. O Judiciário, tornado alvo preferencial após o acerto com o lumpenlegislativo que garantiu o armistício com o Congresso, ensaia um rosnado, que vem a público como miado. Ainda que a intensificação dos ataques à Suprema Corte e a menção vulgar a dois ministros em particular tenha ensejado resposta conjunta (à exceção do nomeado pelo presidente), a reação se concretiza através de inquéritos que devem acompanhar o mesmo ritmo modorrento da sangria a conta gotas.

As expressões de poder da burguesia, suas figuras públicas, seus canais de comunicação e seus representantes institucionais, atuam de forma concertada, no lento compasso que sempre garantiu o controle dos processos pelo alto, garantindo a renovação da autocracia burguesa. Dos agentes tradicionalmente responsáveis pela mudança que mantém as coisas como sempre foram, não surpreende essa prevenção contra abalos à estabilidade. A nota trágica é que forças com peso no campo democrático popular atuam de forma semelhante, desmobilizando e se esforçando para frear a luta de classes, na cadência ditada pelo calendário eleitoral. Aparentemente o ator continua preferindo se submeter ao império dos fatos, ainda que as lições da história apontem para fatos que anulam e trituram esse mesmo ator.

O ocaso da ditadura resultou em uma transição inconclusa e uma democracia tutelada, que escorada na institucionalidade constitucional preservou a autocracia burguesa, como pretendiam os responsáveis pela condução do processo ao controlar suas etapas. A atualização da via prussiana à brasileira na regência do nosso processo histórico tem o peso da tradição e da consolidação em toda nossa construção como Nação, e só será possível escapar a essa repetição quase impositiva, contrapondo uma força social com a potência necessária para tal tarefa. Para que o desfecho do processo que vivenciamos em 2021 não reproduza de forma picaresca o que tivemos em 85 e 88, é preciso adicionar o elemento que faltou àquela quadra histórica: a intervenção decidida das classes trabalhadoras, articuladas em um projeto político autônomo e que corresponda a seus interesses. Façamos nós, por nossas mãos, tudo que a nós nos diz respeito.

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