Crítica à via eleitoral contra o bolsonarismo
Foto: PCB da Bahia
Por Rômulo Caires
“Derrotar nas ruas e vencer em 2022”: crítica da via eleitoral contra o bolsonarismo
No avançar da grave situação brasileira muitos tem feito ao menos duas perguntas: o que nos trouxe até aqui? E o que fazer diante disso? Na variedade das respostas podemos encontrar uma diversidade de lentes de análise e de posições em que se apoiar. Quando se trata de respostas políticas podemos questionar a validade da criação de modelos puros e imparciais, sobre os quais bastaria uma boa aplicação para termos os resultados desejados. Boa parte da economia (poderíamos também chamar de econometria) contemporânea tem se esforçado na construção de tais arcabouços. Basta ligarmos em algum telejornal para termos boas amostras de economistas supostamente acima do conflito “esquerda-direita” recomendando mudanças em algumas taxas para que enfim o mercado “aqueça” e o Brasil recupere a “confiança dos investidores”. O velho Marx chamava esse tipo humano de “economista vulgar” para diferenciar dos “economistas clássicos”, que por serem porta-vozes de uma burguesia ainda revolucionária eram capazes de descobertas e análises científicas da realidade. Sujeitos como Paulo Guedes seriam, pelo contrário, representantes de uma burguesia apenas preocupada na manutenção mais escancarada de suas taxas de exploração, nem um pouco interessada nos anseios populares por melhorias reais em suas condições de vida.
A crise na economia política clássica se desenvolve de forma desigual e diferenciada nas diversas nações em formação. Pois, ao refletir o próprio desenvolvimento do capitalismo em cada local específico, a economia política reproduziria teoricamente os anseios de cada burguesia no processo de consolidação de seu poder econômico e político. Uma questão que sempre se colocou na análise marxista da realidade de um país como o Brasil é se a rigor poderíamos falar em Revolução Burguesa ou ainda em burguesia nacional como uma classe que se demarcaria em relação a outras burguesias do capitalismo mundial. Em outras palavras, em que sentido seria possível falar em modernização, progresso e conquistas democráticas no Brasil? Como ficaria a “crítica da economia política” em um país de capitalismo subordinado, ou seja, um capitalismo que não se desenvolveu por uma via clássica, em que a burguesia em seu processo ascensional não se moveu junto às massas populares na realização das tarefas democráticas, mas pelo contrário se moveu contra as massas ou simplesmente indiferente às suas necessidades?
Há uma longa tradição brasileira de pensar criticamente a história de nosso país, apontando justamente como aqui a formação nacional se deu “pelo alto”, como as mínimas demandas populares foram sempre ofuscadas e as lutas das classes trabalhadoras foram muitas vezes esmagadas pelas classes dominantes. Não haveria aqui “tarefas democráticas” a serem concluídas e, se existiu alguma positividade no desenvolvimento capitalista brasileiro, certamente estamos hoje muito distantes dessa suposta positividade. Ao contrário, a nossa situação sempre funcionou como uma espécie de amostra de como o capitalismo mundial necessita justamente da barbárie na periferia para sustentar suas máscaras democráticas nos países centrais. Muito mais do que se comparar com nações-modelo as quais deveríamos alcançar a partir da importação de cartilhas de desenvolvimento, uma ampla gama de pensadores críticos e movimentos revolucionários ousaram apostar na dimensão criativa da classe proletária, na sua capacidade de tomar o futuro em suas mãos em direção ao processo de emancipação social. Este preâmbulo nos serve para situar brevemente alguns marcos de análise que possam dar inteligibilidade a um processo complexo e contraditório, que se não refletido na totalidade de suas determinações pode nos levar ao desespero ou, como tem sido muito comum, pode trazer um conjunto de falsas soluções ou soluções antigas e já experimentadas, que são apresentadas como se fossem grandes descobertas ou novidades. Dentre essas falsas soluções está a que estamos chamando de “via eleitoral para derrotar o bolsonarismo”, estratégia adotada por amplos setores da esquerda hegemônica como resposta à ascensão da extrema-direita ao governo e os diversos efeitos da chamada catástrofe brasileira.
Muito mais do que um evento aleatório e trágico na história brasileira, a ascensão do bolsonarismo reatualiza determinações já postas em nossa formação social, como o genocídio da população pobre e periférica, a violência estatal explícita contra os de baixo, a superexploração da força de trabalho, o racismo e a opressão contra as mulheres, a destruição ambiental, a tutela das forças militares etc. Porém, além de demonstrar a continuidade da barbárie na realidade brasileira, nação que surgiu a partir de longo e violento processo de colonização, faz-se fundamental situar o que há de novo em todo esse desenvolvimento. O processo histórico, como diria o filósofo húngaro Gyorgy Lukács, tem como traço constitutivo a irreversibilidade do tempo, ou seja, não é possível girar a roda da história para trás em busca de um retorno aos momentos “idílicos”.
Já seria bastante questionável considerar que houve momentos idílicos na história brasileira, porém é ainda mais notório o fato de que os momentos de florescimento democrático e participação ativa das massas populares no destino brasileiro são muito mais exceção do que regra. Os quase 30 anos que durou a “Nova República” no Brasil, tal qual os chamados “Trinta Anos Gloriosos” do pós-guerra europeu, devem ser creditados às diversas contingências que possibilitaram um desenvolvimento capitalista com alguma capacidade de inclusão do povo trabalhador. Se a glória da Europa era garantida a partir do sangue da exploração das colônias e nações subordinadas, o processo de redemocratização brasileiro, especialmente o período em que o Partido dos Trabalhadores chegou ao governo, foi favorecida por situações transitórias que permitiram o aumento da taxa de lucro da burguesia e ao mesmo tempo algum nível de transferência de renda para a população menos favorecida.
Muitos analistas apontam que o período de redemocratização foi marcado por um “reformismo fraco” e no plano político garantiu uma transição que não se preocupou em enfrentar as chagas do período da ditadura militar brasileira. A aposta em um “capitalismo democrático” ou de face humana não enfrentou sequer os crimes bárbaros cometidos no período anterior e muito do arcabouço jurídico-político do período ditatorial foi mantido, sem ao menos a punição dos principais responsáveis por um dos períodos mais trágicos de nossa história. A questão militar foi posta em escanteio pela esquerda e se hoje vemos o governo com a maior presença de militares na história do país, não se pode esquecer do quanto as chamadas “forças democráticas” se submeteram a alianças espúrias com esses setores, sem de nenhuma forma incidir sobre a formação ideológica dos militares (marcada pelo anticomunismo e pelo entreguismo nacional), ao contrário favorecendo acúmulo de ganhos salariais e demais benefícios e não se preocupando que as Forças Armadas continuassem a sua saga de combate ao “inimigo interno”.
No plano econômico, o período de redemocratização se inicia em um momento de grandes transformações no capitalismo em nível mundial. O fim da URSS e do chamado bloco socialista deu margem para um avanço brutal da exploração capitalista, com reordenamento dos pactos internacionais e incentivo cada vez maior aos governos, especialmente dos países periféricos, em seguir as cartilhas propagadas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional. No Brasil já não fazia mais qualquer sentido falar em “incompletude” no capitalismo, já levado a termo pelas forças militares no período ditatorial. Mesmo tendo completado a formação do mais importante parque industrial da América Latina, não houve por aqui a tentativa de enfrentar radicalmente a dominação burguesa e a subordinação ao imperialismo e continuamos a reproduzir os mecanismos de dependência. Se o boom das commodities permitiu que no período lulista tivéssemos algum nível de redistribuição de renda, não se avançou nas tarefas de garantir a soberania nacional, desenvolvimento tecnológico e incremento da produtividade do trabalho, deixando o país refém das flutuações dos preços dos produtos primários no mercado mundial.
O bolsonarismo, que tem sua gênese a partir da impossibilidade de manutenção do antigo pacto conciliatório, veio para radicalizar o processo de subordinação brasileira ao imperialismo, com ataques massivos à soberania nacional e aos direitos do povo trabalhador. Não pode ser simplesmente analisado a partir da aplicação de modelos a priori, especialmente retirados de realidades alheias à particularidade brasileira. Apontar simplesmente que se trata de uma “regressão fascista” ou “regressão antidemocrática” serve na maioria das vezes para ocultar a grande violência da dominação burguesa no Brasil e seus traços de longa duração, como também mascarar a continuidade de políticas econômicas que não tocaram no cerne dos problemas mais candentes da realidade brasileira. Os pactos policlassistas e as tentativas de conciliação com a barbárie são marcas indeléveis do capitalismo brasileiro. O bolsonarismo não se resume assim à figura de Bolsonaro e, muito mais do que uma regressão, demonstra a progressão da incapacidade do capitalismo, especialmente na periferia, de resolver as suas próprias contradições. A esquerda hegemônica, representada principalmente pelo Partido dos Trabalhadores, pouco se interessou em tensionar os pactos sociais do capitalismo periférico e muito menos apontar os horizontes reais de sua superação.
Nesse sentido, em um momento de retomada das manifestações populares e da ocupação das ruas pelas massas indignadas com a atual situação do país, devemos desmascarar as falsas promessas de saída da crise brasileira. Esperar uma progressiva diminuição do apoio popular de Bolsonaro e apostar todas as fichas no processo eleitoral de 2022 é no mínimo ignorar que até lá milhares de vidas serão perdidas para a pandemia de covid-19, que a tradição golpista da história brasileira não irá desaparecer, que o capitalismo brasileiro não tem qualquer espaço para humanização e desenvolvimento progressista e que as novas condições do pacto conciliatório não serão as mesmas que a de décadas atrás.
Sem ignorar a necessidade da participação nos processos eleitorais, uma esquerda realmente combativa não deve se furtar em criticar radicalmente a situação dada, denunciando as forças que continuam se iludindo com a existência de setores progressistas na burguesia brasileira e apontando as continuidades do bolsonarismo com a tradição de dominação burguesa em nosso país. Não é possível imaginar que a vitória eleitoral de uma esquerda que demonstra diariamente sua vontade em continuar conciliando com os setores mais regressivos da burguesia será capaz de deter as forças de extrema-direita que invadiram o governo federal e o Planalto. É preciso lembrar que o fascismo histórico foi derrotado em uma guerra heróica, que custou a vida de milhões de trabalhadores. Gritar que vivemos um genocídio, que vivemos a ameaça do fascismo e continuar apostando nas mesmas receitas gastas, na mesma conciliação e na mesma aposta no jogo eleitoral somente turvará o que consideramos a única saída possível para a catástrofe brasileira: a construção do Poder Popular rumo ao socialismo.