Guerra às drogas e genocídio do povo negro

imagemGuerra às drogas, capitalismo dependente e genocídio da população negra: por um antiproibicionismo necessariamente radical

UJC Niterói – São Gonçalo, escrito em out. 2021

Introdução

O Maio Verde, na agenda do movimento antiproibicionista, é o mês no qual se realizam diversas ações, mobilizações e debates com vista a pensar uma nova política para a questão das drogas. No Brasil, a ação mais conhecida é a Marcha da Maconha, que ocorre em diversas cidades do país.

Para os comunistas, uma efetiva política de drogas exige uma abordagem que não criminalize os usuários, pautando a legalização da maconha a curto prazo e outras drogas a médio e longo prazo. A política do proibicionismo é historicamente um grande fracasso, sendo responsável, por exemplo, pela criação de gigantes do crime como Al Capone durante a proibição do álcool nos EUA[1] e pela “profissionalização” dos encarcerados ao superlotar as prisões brasileiras e transformá-las em verdadeiras “universidades do crime”[2]. Além de falhar nos objetivos a que se propõe, a guerra às drogas serve como instrumento de expansão de facções criminosas, como atualmente se observa no Rio de Janeiro. Das 569 operações policiais realizadas na cidade em 2019, somente 6,5% ocorreram em áreas de milícia, enquanto 48% foram feitas em áreas controladas pelo tráfico, e 45,5% em regiões sob disputa[3].

Em junho de 2021 foi aprovado na Câmara (17 votos favoráveis e 17 contrários, com desempate do relator) o PL 399/2015[4], projeto de lei que altera a Lei 11.343/06 do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas viabilizando a comercialização de medicamentos com substâncias provenientes da Cannabis. Apesar do avanço, tal proposta se encontra bem longe de uma legalização plena. O projeto de lei restringe a comercialização à indústria farmacêutica, mercantilizando uma planta capaz de auxiliar no tratamento de doenças graves – e até mesmo salvar vidas – e tornando-a fonte de lucros para determinado setor da burguesia. Defendemos a legalização de todas as drogas e, no caso da maconha, que as brasileiras e os brasileiros tenham direito garantido e regulamentado de plantar e dela fazer o uso que se queira: seja medicinal, seja para lazer.

Exploraremos a relação endógena da militarização dos territórios, do encarceramento em massa e do genocídio da juventude negra com o capitalismo dependente brasileiro, encontrando o caminho que possibilita o fim da guerra às drogas e afirmando que estas não são uma questão de segurança, e sim de saúde pública. Legaliza!

Militarização dos territórios
A crescente militarização das cidades, sobretudo nos bairros periféricos, acompanha o aumento do número de homicídios[5], ceifando a vida dos usuários, dos pequenos traficantes, dos agentes policiais e dos moradores das periferias. A noção de que vivemos em um “estado de guerra” é vital para a legitimação da extrema violência das forças do estado, voltando seu aparato ideológico e repressivo à classe que ameaça a manutenção do capitalismo dependente brasileiro [6]. O potencial explosivo da classe trabalhadora periférica, abandonada à própria sorte na mortal pandemia da Covid-19 e submetida a intensa exploração e precarização das condições de vida, é contido através do mais alto grau de repressão e da institucionalização do medo.

No Brasil todo, e no Rio de Janeiro em particular, observamos o avanço da militarização dos territórios e o crescimento das milícias em todo o Estado, chegando à dominação de cerca de 60% do território da capital fluminense[7]. Com uma prática violenta e ostensiva de controle territorial e político, as milícias têm encontrado terreno fértil para se expandir pelo município do Rio de Janeiro. Nos territórios sob o tráfico, as operações policiais se concentram quase exclusivamente naqueles dominados pelo Comando Vermelho, e o exemplo mais recente da voracidade das forças do estado pelos territórios da facção se deu em 6 de maio no Jacarezinho, Zona Norte carioca.

Com 27 moradores e 1 policial assassinados em poucas horas, a operação deflagrada pela polícia civil se transformou na maior chacina da história da cidade e não foi a única operação no sangrento governo de Cláudio Castro (ex-vice do fascista Wilson Witzel). Registraram-se outras 29 chacinas de janeiro a maio de 2021, desrespeitando abertamente a suspensão, por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), de operações policiais durante a pandemia[8]. Tais dados revelam o papel ilusório, propagado pelos aparelhos ideológicos da classe dominante [9], da justiça burguesa no combate ao tráfico de drogas e à violência urbana. As instituições burguesas operam em íntima sintonia à dinâmica de poder dos grupos armados, de modo a garantir sua sobrevivência e expansão e ocultar os reais determinantes do terror urbano que assola a população periférica brasileira.

Encarceramento em massa
O encarceramento em massa, outro efeito da política violenta de guerra às drogas, é um verdadeiro desastre humanitário que transforma as prisões em depósitos de “indesejáveis”, onde os detentos são sujeitos a agressões físicas e condições sanitárias que remetem ao período da escravidão[10] e, segundo levantamento do último ano, 220 mil presos (31% do total) não haviam passado por julgamento[11]. O cenário se agrava diante do flagrante desejo de privatização dos presídios, expresso em público pelo ultraliberal Ministro da Economia Paulo Guedes [12]. Percebe-se daí o potencial lucrativo da guerra às drogas e a incompatibilidade, dentro da lógica capitalista, de um projeto de reabilitação e reinserção dos usuários e pequenos traficantes à sociedade.

Genocídio da população negra
O genocídio da população negra pelas forças do estado brasileiro escancara as relações sociais herdadas do passado colonial, e cumpre papel fundamental na roda sanguinária da guerra às drogas no capitalismo dependente: a violência policial descarta o excesso de força de trabalho ociosa e sufoca qualquer tentativa de revolta, ao mesmo tempo em que alimenta a indústria da guerra [13] e permite aos reais chefes do tráfico usufruir bem longe do fogo cruzado [14].

O falso pretexto de combate às drogas legitima a execução de milhares de negras e negros periféricos todos os anos, e o Atlas da Violência [15] comprova o que se vê no dia a dia: a taxa de letalidade contra a população negra, principalmente jovem e masculina, é muito mais alta que a da não negra, representando a primeira 77% dos assassinados. Entretanto, negros representam apenas 54,7% da população brasileira (8,8% pretos e 45,9% pardos segundo a classificação do IBGE)[16]. Nessa guerra, longe de ser contra as drogas, morrem pessoas negras de todos os lados, inclusive do fardado: 53% da corporação é branca, e 67% dos policiais mortos no Brasil são negros [17].

A história da criação da polícia militar (PM) mostra que não apenas seu brasão permanece o mesmo desde o período colonial[18], mas também seu papel dentro da ordem: em 1808, quando a PM chegou à capital imperial do Rio de Janeiro, pairava sobre as classes dominantes o medo da “haitinização” do Brasil [19]. Diante do sucesso dos negros livres e ex-escravos na Revolução Haitiana, liderada por Toussant L’Ouverture, Jean-Jacques Dessalines e demais jacobinos negros[20], seria necessário uma instituição de Estado para conter pela força qualquer possibilidade de revolta dos escravizados em terras brasileiras.

As raízes históricas e estruturais da repressão à população negra mostram que só o fim da PM não nos basta; é preciso uma nova concepção de segurança pública, que rompa radicalmente com o racismo estrutural e com a estrutura que sobre ele se sustenta. Defendemos o fim da polícia militarizada, dado que o real combate ao narcotráfico exige trabalho investigativo, e não ostensivo, para cortar sua cabeça e não seus dedos. Guerras não se fazem contra substâncias, guerras se fazem contra pessoas. E na guerra travada hoje as pessoas que morrem têm cor, classe e endereço: negros, pobres e favelados.

Experiências de legalização e descriminalização
No Uruguai, o projeto de lei de regulação do mercado da marijuana envolve direitos humanos, preocupações com a saúde pública e melhoria da segurança. Com uma política de drogas inovadora no cenário internacional, o Uruguai se destacou pela preocupação com os usuários, tratando o assunto na esfera das políticas públicas de saúde e tirando o foco de agentes policiais no combate às drogas [21]. Por exemplo, no artigo 10º da Lei nº 19.172, sancionada em 2014 no governo de José Alberto Mujica, atribui-se ao Sistema Nacional de Educação Pública do país a promoção de políticas educacionais para a redução de riscos e prevenção de danos do uso de substâncias psicoativas.

A lei também prevê três vias de acesso legal à Cannabis: através do cultivo caseiro, da compra em farmácias (sendo essa a mais aderida pelos usuários) e pelos chamados Clubes de Membresía. Um dos benefícios relatados pelos usuários foi a diminuição do consumo da erva desde a regulamentação. Tendo acesso às flores, onde se encontram os maiores índices de THC (tetrahidrocanabinol, principal componente psicoativo da planta) há um menor consumo comparado à maconha vendida no mercado ilícito, chamada no Brasil de prensado. No primeiro caso, os níveis de THC chegam a 30%, enquanto no último são próximos de 3% [22].

De forma mais ampla, mesmo que menos profunda, um outro país chama a atenção pela descriminalização de todas as drogas, incluindo a Cannabis, a cocaína e a heroína [23]. Portugal optou pela política de descriminalização em 2000, após um estudo da Comissão para a Estratégia Nacional de Combate à Droga considerar a medida como a mais viável, haja visto que a legalização contraria tratados internacionais de que o país é signatário. O uso e a posse de drogas continuaram proibidos, mas o aprisionamento de usuários foi abandonado. Enxergando-os de forma humana, como pessoas em necessidade de cuidados, e incluindo o tratamento da dependência no sistema de saúde pública, as contaminações por HIV entre os consumidores caíram pela metade e a população carcerária por motivos relacionados às drogas caiu de 75% para 45% [24].

Comparando as experiências de Uruguai e Portugal com a brasileira, percebe-se o fracasso humanitário da criminalização e repressão dos usuários de drogas e da população negra e periférica em geral. Não se trata, no entanto, de incompetência ou simples atraso civilizacional. O passado colonial brutal, a necessidade de contenção social e a superexploração da força de trabalho intrínsecas a países de capitalismo dependente como o Brasil tornam necessário um altíssimo grau de violência cotidiana, um permanente estado de exceção legitimado pela bandeira sangrenta da guerra às drogas. Além de garantir a “ordem” dentro dos países periféricos e a transferência de valor para fora, reproduzindo relações econômicas de centro-periferia, essa lógica permite o exercício de uma violenta política externa de dominação pela força das armas. Ao responsabilizar os países produtores de substâncias narcóticas e psicotrópicas pelos problemas sociais associados a elas, as potências imperialistas, sobretudo a estadunidense, legitimam invasões militares e regimes de tutela, a exemplo do que volta a viver hoje a Colômbia sob as cinzas cancerígenas da relação Duque-Biden [25].

Conclusão
Defendemos a legalização de todas as drogas, começando pela maconha e paulatinamente seguindo às demais, com políticas públicas de redução de danos e tratamento médico para aqueles que buscam cessar o uso de substâncias, tanto as que hoje são consideradas ilegais quanto as legais (álcool, tabaco e outras). Tratando os usuários de forma humana e as drogas como uma questão de saúde pública, experiências reais de países como Uruguai e Portugal mostram que a médio e longo prazo os problemas sociais e individuais que hoje são associados às drogas podem ser reduzidos drasticamente, melhorando as condições de vida dos consumidores e da população em geral.

No entanto, compreendemos que a guerra às drogas e toda a tragédia que a acompanha – a militarização dos territórios, o encarceramento em massa, o genocídio da população negra – são nada mais que expressões de um confronto maior, fruto da contradição capital-trabalho e assentado no seio da sociedade em que vivemos: a luta de classes entre a burguesia e a classe trabalhadora; entre exploradores e oprimidos. Sendo expressão dessa guerra fundamental, seu fim só se vislumbra sob um horizonte revolucionário, radicalmente apoiado na defesa da vida e do poder popular, construindo coletivamente uma alternativa à lógica genocida que extrai seu lucro do derramamento de sangue nas periferias.

CONTRA A GUERRA ÀS DROGAS E A VIOLÊNCIA POLICIAL!

PELA DESCRIMINALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO E USO DE TODAS AS DROGAS!

CONTRA O GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO NEGRA E PERIFÉRICA!

NA CONSTRUÇÃO DO PODER POPULAR, RUMO AO SOCIALISMO!

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