2007/2008: A CRISE QUE NÃO TERMINOU – Artigo 2
Por Carlos Arthur Newlands Junior
Introdução
Esse trabalho divide-se em dois artigos. No anterior, fizemos um resgate histórico-analítico da crise econômica mundial deflagrada em 2007/2008 e demonstramos que ela não foi solucionada até hoje. Neste, agora, estudamos a teoria marxista das crises – melhor dizendo, apresentamos alguns apontamentos para tal teoria – e verificamos como a teoria marxista com base na categoria do capital fictício compreendeu esta crise.
Após a eclosão da crise de 2007/2008 o interesse pela obra de Marx ressurgiu fortemente. Dentro do campo teórico marxista, vários economistas utilizaram-se da categoria do capital fictício como uma ferramenta fundamental para o entendimento daquela crise.
Antes de entrarmos propriamente numa explicação – extremamente sintética e simplificada – do que é a categoria marxiana do capital fictício, vale muito reproduzir esse trecho do Volume 3 de O Capital, capítulo 30:
“Num sistema de produção em que toda a rede de conexões do processo de reprodução se baseia no crédito, quando este cessa de repente e só se admitem pagamentos à vista, tem de se produzir evidentemente uma crise, uma demanda violenta de meios de pagamento. À primeira vista, a crise se apresenta como uma simples crise de crédito e crise monetária. E, com efeito, trata-se apenas da conversibilidade das letras de câmbio em dinheiro. Mas a maioria dessas letras representa compras e vendas reais, cuja extensão vai muito além das necessidades sociais e acaba servindo de base para toda a crise. Ao mesmo tempo, há uma massa enorme dessas letras que representa apenas negócios fraudulentos, que agora vêm à luz e estouram como bolhas de sabão; além disso, há especulações feitas com capital alheio, porém malogradas; e, por fim, capitais-mercadorias desvalorizados, ou até mesmo invendáveis, ou refluxos de capitais que jamais se realizam.” (MARX, 2017).
Substitua “letras de câmbio” por “títulos baseados em hipotecas subprime” e um leitor desavisado poderia achar que se tratava de algum economista analisando a crise de 2007/2008…
O capital fictício
Mas afinal, a que se refere a categoria teórica de capital fictício?
O capital fictício nasce do capital portador de juros, que é aquele capital que existe para ser emprestado. No capital portador de juros, o capitalista A cede ao capitalista B uma certa quantia em dinheiro X, para que B utilize esta quantia como capital e portanto B venha a auferir um lucro “x” com a aplicação do capital X. Entretanto, como X é propriedade de A e não de B, A deve devolver a B a importância X acrescido de parte do lucro x auferido. Essa parte do lucro que o capitalista funcionante deve pagar ao capitalista proprietário do capital chama-se juros.
Aqui temos uma diferença conceitual importantíssima entre o conceito marxista de juros e o conceito tradicional; este conceito tradicional é utilizado tanto pela economia neoclássica como também pelas vertentes keynesianas. ASTARITA explica:
Na teoria de Keynes – ou na dos pós keynesianos – a origem do juro remete ao “prêmio por separar-se da liquidez”, noção que recorda o “prêmio de espera” com que a economia tradicional explicou o lucro. E o capital é “uma coisa”, um meio de produção, e não uma relação social de produção objetivada, como acontece em Marx. (…) A teoria keynesiana do juro supõe que a situação “normal” do capitalista do sistema monetário é reter seu capital por meio da forma líquida; daí deriva de Keynes a necessidade de pagar um prêmio para que o possuidor do dinheiro consiga se livrar do mesmo. No sistema de Marx, pelo contrário, o impulso “normal” do capitalista do sistema monetário é lançar o dinheiro ao circuito de valorização, ou seja, fazê-lo funcionar como capital. (…) até certo ponto, está forçado a tentar incrementar um valor, e somente em conjunturas de crise terá preferência pela liquidez. Dessa forma, a taxa de juros não pode ser explicada a partir da preferência pela liquidez; o juro não constitui, pois, um prêmio por renunciar a liquidez, mas é uma parte da mais-valia que garante ao credor seu seguro, enquanto representa a propriedade privada dos meios de produção frente ao trabalho. Isso implica no fato de que não pode haver juros se não há capital e exploração do trabalho (…)
Resumindo: enquanto que para o keynesianismo os juros são um “prêmio por abrir mão da liquidez”, uma “remuneração pelo tempo de espera” do emprestador, para o marxismo os juros são parte do mais-valor gerado pelo capitalista funcionante no processo de produção, que esse capitalista funcionante paga ao capitalista prestamista (vulgarmente, o “banqueiro”).
Acerca do desenvolvimento e concentração do capital monetário, Marx assinala:
(…)Emprestar e tomar dinheiro emprestado converte -se num negócio específico desses negociantes, que atuam como intermediários entre o verdadeiro prestamista e o prestatário de capital monetário. Desse ponto de vista, o negócio bancário consiste, em termos gerais, em concentrar nas próprias mãos, em grandes massas, o capital monetário emprestável, de modo que, em vez do prestamista individual, é o banqueiro que aparece como representante de todos os prestamistas de dinheiro diante do capitalista industrial e comercial (MARX, 2017).
Além do desenvolvimento do capital emprestável a juros, o desenvolvimento do sistema financeiro promovido pelo crescimento do capital bancário possibilitou a criação da sociedade por ações, pois o sistema financeiro é que permite que as ações – pedaços do capital de uma empresa – possam ser negociados entre capitalistas investidores.
Por outro lado, a criação da sociedade por ações promove a separação entre a propriedade e a gestão do capital. Reforça-se aqui ainda mais a concepção do capital portador de juros, pois o acionista está fundamentalmente interessado nos rendimentos que sua participação acionária pode lhe auferir – como se fosse um prestamista a receber juros de um prestatário. Essa perspectiva ilusória se consolida com a lógica do capital fictício.
A partir do capital portador de juros, Marx faz a seguinte reflexão acerca da aparência do fenômeno dos juros na economia capitalista:
A forma de capital portador de juros é responsável pelo fato de que cada rendimento determinado e regular em dinheiro apareça como juros de algum capital, provenha ele de um capital ou não. O rendimento monetário é primeiro convertido em juros, e com os juros se encontra logo o capital do qual ele nasce. Do mesmo modo, o capital portador de juros faz com que toda soma de valor apareça como capital, desde que não seja desembolsada como renda; a saber, como montante principal (principal) em oposição aos juros possíveis ou reais que ele pode render. (MARX, 2017).
Segundo Marx (2017), “a formação de capital fictício tem o nome de capitalização”. Funciona assim: calcula-se determinada receita regular, a partir da taxa média de juros, como se fosse o rendimento que um capital iria auferir se fosse emprestado a esta taxa de juros; o valor desse capital ilusório pode então ser concretizado em um título que promete pagar aquela receita.
E Marx prossegue, dando um exemplo atualíssimo de título representativo de capital fictício: a dívida pública. Sobre a dívida pública, Marx aponta:
A cada ano, o Estado precisa pagar a seus credores determinada quantidade de juros pelo capital que lhe emprestam. (…) Porém, o capital, do qual o pagamento pelo Estado é considerado um fruto (juros), é, em todos esses casos, ilusório, fictício. A soma que foi emprestada ao Estado já não existe. Além disso, ela jamais se destinou a ser gasta, investida como capital, e apenas seu investimento como capital poderia tê-la convertido num valor que se conserva. (…) A possibilidade de vender ao Estado o título da dívida pública representa para A a possível recuperação do montante principal. Quanto a B, de seu ponto de vista particular, seu capital foi investido como capital portador de juros. (…) Não importa quantas vezes se possam repetir essas transações, o capital da dívida pública continua a ser puramente fictício, e a partir do momento em que os títulos da dívida deixam de ser vendáveis se desfaz a aparência ilusória desse capital. Apesar disso, esse capital fictício tem seu próprio movimento (…) (MARX, 2017, pág. 634)
Vimos acima que o “capital” que “rende juros” representado por títulos da dívida pública é inteiramente fictício. Entretanto, mesmo no caso de títulos que na sua origem têm alguma relação com o processo de produção – como é o caso das ações das companhias abertas – o valor-capital desse título é totalmente ilusório. Seu valor de mercado é determinado diferentemente de seu valor nominal, sem que haja qualquer alteração no valor do capital real: por exemplo, se uma companhia aberta “perde 20% em valor de mercado das suas ações”, isso nem de longe significa que essa companhia teve desvalorização de seus ativos ou perda de receita – e o oposto também acontece.
Isso ocorre porque o valor de mercado desses papéis é, em grande parte, especulativo, pois não depende somente dos ganhos efetivados, mas também dos ganhos esperados, calculados por antecipação; no caso dos ganhos esperados, o valor de mercado do título é sempre o rendimento capitalizado, isto é, calculado sobre um capital ilusório e seu fluxo de rendimentos descontado com base na taxa de juros vigente. CARNEIRO assinala:
Assim, o capital fictício possui uma dinâmica própria que nasce da capitalização e se alimenta dos mercados secundários. Expectativas de variações dos rendimentos dos títulos de propriedade (ações), ou das taxas de juros correntes, são sancionadas por compra ou venda nos mercados secundários, ampliando ou reduzindo o valor fictício do capital. Essa trajetória assume caráter ampliado com a introdução do crédito, direcionado para compra dos títulos representativos do capital. Ou seja, os ciclos de preços desses ativos, na sua fase ascendente – como demonstrado por Marx nos capítulos finais da seção V do Livro III (…) – exigem a ampliação do crédito direcionado para esses mercados para dar liquidez ao valor ampliado dos títulos. As fases descendentes dos ciclos de preços, por sua vez, além de não conduzirem à realização dos ganhos esperados geram um espectro de dívidas não pagas. (CARNEIRO, 2018, pág. 6)
O capital fictício leva ao paroxismo a ilusão de reprodução de capital desconectada do processo de produção. Aponta Marx (2017), que, desta forma, “apaga-se até o último rastro toda a conexão com o processo real de valorização do capital e se reforça a concepção do capital como um autômato que se valoriza por si mesmo”. Enquanto essa ilusão perdura, o capital fictício é funcional para a acumulação, pois se torna uma alternativa para capitais ociosos e acelera a rotação do capital global; no entanto, nas crises a realidade se impõe – e muitas vezes (como foi em 2007/2008) de forma avassaladora e violenta. Como apontam CARCANHOLO & PAINCEIRA:
Por um lado, a funcionalidade do capital fictício permite o prolongamento da fase ascendente do ciclo, possibilitando a redução do tempo de rotação do capital global e elevação da taxa de lucro. Por outro lado, quando sua lógica individual de apropriação se expande, a fase descendente (crise) do ciclo também é aprofundada. A “disfuncionalidade” do capital fictício amplia as potencialidades da crise. A dialética do capital fictício, com sua (dis)funcionalidade, complexifica/amplia a tendência cíclica do processo de acumulação de capital. (CARCANHOLO & PAINCEIRA, 2009, pág.6)
Antes, porém, de entrar especificamente na análise da crise de 2007/2008 utilizando a categoria marxista do capital fictício, é fundamental termos clareza acerca do que representam para Marx as crises no capitalismo. Neste sentido, constatamos ao percorrer os três livros de O Capital que Marx apresenta a crise nos Livros I e II ainda como uma possibilidade, em função de um nível maior de abstração.
No Livro I de O Capital, Marx já aponta que a mercadoria existe apenas enquanto unidade contraditória de valor e valor de uso. Essa contradição se expressa externamente na separação dos atos de compra e venda, de forma que o valor, expresso em dinheiro, adquire independência relativa com relação ao seu par dialético, a mercadoria.
A contradição entre compra e venda é exacerbada ainda mais quando o dinheiro assume a função de meio de pagamento. Nessa etapa, o dinheiro passa a ser temporariamente dispensado das trocas, que podem ser efetivadas com a promessa de pagamento futuro e a compensação de dívidas; assim, a circulação de mercadorias prescinde do pagamento imediato em dinheiro, de forma que a circulação de dinheiro passa a ocorrer de forma paralela. Em suma, podem circular mercadorias sem o dinheiro real, e a circulação monetária passa a ocorrer apartada no tempo em relação à circulação de mercadorias.
No Livro III de O Capital, com um nível menor de abstração e chegando a determinações mais concretas, Marx demonstra que a crise para o capitalismo é não apenas uma possibilidade, mas uma decorrência necessária da própria lógica da produção capitalista.
A produção capitalista tem como uma de suas características fundamentais a tendência a reproduzir-se de maneira ampliada e, portanto, a necessidade de realizar quantidade crescente de mais-valor.
Como somente o trabalho vivo produz valor (e, portanto, mais-valor), o aumento da capacidade produtiva resulta no aumento da quantidade de valores de uso produzidos; entretanto, cada mercadoria individualmente, por ter sido produzida num tempo menor, incorpora menos valor do que antes do aumento da produtividade.1 Desse modo, o mesmo processo que possibilita ao capitalista individual aumentar a produtividade do trabalho e baratear sua produção traz também a necessidade de realizar no mercado uma quantidade maior de mercadorias.
Entretanto, o capitalismo, apesar de apresentar tendência ao aumento da produção de mercadorias, aponta por outro lado para a incapacidade de realizar todo o valor produzido, pois a tendência do capital é que sua oferta supere a sua demanda. Lembremos que a taxa de lucro do capital é expressa pela equação l=m/(c+v) e está positivamente relacionada com a diferença entre oferta do e procura pelo capital;2 portanto, quanto maior for a oferta do capital em relação à sua procura, maior o mais-valor produzido.
Desta forma, percebe-se que a tendência de que o capital tenha sua oferta cada vez maior do que sua procura é racional no modo de produção capitalista, o que significa que o processo de acumulação de capital envolve uma tendência a restringir o consumo de meios de produção “c” e de força de trabalho “v”; ou seja, de restringir o consumo produtivo.
Neste ponto, a tentação é achar que tal tendência poderia ser compensada por um aumento do consumo improdutivo,3 tanto da classe trabalhadora quanto dos capitalistas – essa é na verdade a concepção pós keynesiana: tentar solucionar as crises cíclicas do capitalismo pelo incremento da demanda consumptiva. Marx demonstra ser ilusória tal concepção:
(…) capacidade de consumo da sociedade. Essa capacidade não é determinada pela força absoluta de produção nem pela capacidade absoluta de consumo, mas pela capacidade de consumo sobre a base de relações antagônicas de distribuição, que reduzem o consumo da grande massa da sociedade a um mínimo só suscetível de variação dentro de limites mais ou menos estreitos. Além disso, ela está limitada pelo impulso de acumulação, de aumento do capital e da produção de mais-valor em escala ampliada (MARX, 2017, pág. 344).
1 Lembrando que a magnitude do valor de uma mercadoria é o tempo socialmente necessário à produção desta mercadoria.
2 A procura pelo capital é c + v e a oferta do capital é c + v + m, onde “c” é o capital constante (simplificadamente: máquinas, equipamentos e matéria-prima), “v” o capital variável (força de trabalho) e “m” o mais-valor produzido; portanto, o mais-valor m é a medida da diferença entre a oferta do e a procura pelo capital.
3 Marx chama de “consumo improdutivo” o consumo pessoal, voltado para satisfação de necessidades e desejos humanos e que não “produz” mercadorias, portanto não “produz” mais-valor.
Assim, percebemos que a tendência predominante é a redução relativa do consumo, tanto do produtivo (pela necessidade de que a oferta do capital supere a sua demanda) como também do consumo improdutivo; este, tanto dos trabalhadores (pela tendência à queda da capacidade de consumo das grandes massas) quanto dos capitalistas (pela necessidade de utilizar parcelas crescentes do mais-valor para garantir a reprodução ampliada).
A redução do consumo, tanto o produtivo quanto o improdutivo, entra em clara colisão com as tendências já observadas ao aumento da oferta dessas mesmas mercadorias como outro resultado necessário desse processo, uma vez que esse aumento na oferta tende a não ser acompanhado por igual aumento na demanda.
Assim, as leis que regem o processo de acumulação capitalista têm como resultado a tendência a erigir barreiras ao consumo que são ao mesmo tempo barreiras ao próprio processo de acumulação, uma vez que este obrigatoriamente envolve a realização do mais-valor criado. Não poderia ser diferente em um sistema no qual o consumo e a produção (a qual é ao mesmo tempo consumo de meios de produção e força de trabalho) estão submetidas às vontades do capital e não às necessidades sociais.
Além disso, o próprio capital enquanto mercadoria tende a expandir-se de maneira ilimitada; especialmente com o desenvolvimento do setor financeiro, o incremento do sistema de crédito leva à expansão da mercadoria-capital, o que redunda na superprodução da mercadoria-capital, resultando na já citada incapacidade de valorização para todo o estoque de capital da sociedade, isto é, nas crises. Na verdade, a superprodução de capital está contida na superacumulação de capital, isto é, a multiplicação do estoque existente de capital social para além da possibilidade de valorização do mesmo. MOLLO assinala com precisão o papel do crédito como impulsionador da lógica do capital fictício:
É da lógica do capitalismo, para maximizar lucros, buscar crédito, razão pela qual o sistema de crédito se desenvolve tanto e sempre com a acumulação do capital. O crédito potencializa, de fato, a produção, aumentando o ritmo e a escala da acumulação de capital, uma vez que ele antecipa o processo de investimento, a partir de recursos de terceiros. Mas o sistema de crédito permite também o aparecimento e o desenvolvimento do chamado capital fictício, o capital que se valoriza de forma especulativa, sem relação com a produção real.
A separação entre produção e circulação de mercadorias proporcionada pelo crédito é o que permite o desenvolvimento do mercado financeiro, ou a negociação de papéis que, embora criados com base na produção real, têm seus valores evoluindo sem relação direta ou estreita com os valores reais que lhe deram origem. Trata-se de uma valorização puramente fictícia, especulativa. (…) As crises, neste sentido, não fazem mais do que mostrar os limites ao descolamento entre finanças e produção, sendo então inevitáveis em economias muito alavancadas (MOLLO, 2008).
Em resumo, como aponta MARX:
O verdadeiro obstáculo à produção capitalista é o próprio capital, isto é, o fato de que o capital e sua autovalorização aparecem como ponto de partida e ponto de chegada, como mola propulsora e escopo da produção; o fato de que a produção é produção apenas para o capital, em vez de, ao contrário, os meios de produção serem simples meios para um desenvolvimento cada vez mais amplo do processo vital, em benefício da sociedade dos produtores. (…) O meio – o desenvolvimento incondicional das forças produtivas sociais – entra em conflito constante com o objetivo limitado, que é a valorização do capital existente. (MARX, 2017, pág. 351).
E Marx (2017, pág. 350) faz questão de salientar que, para o capitalismo, a crise não é um “problema” e sim uma solução, afirmando de maneira categórica: “o conflito entre as forças antagônicas desemboca periodicamente em crises. Estas são sempre apenas violentas soluções momentâneas das contradições existentes, erupções violentas que restabelecem por um momento o equilíbrio perturbado” (grifos nossos).
Marx aponta claramente que a crise é um momento necessário para a própria continuidade reciclada do capitalismo, ao apontar como o sistema capitalista engendra a solução de suas crises cíclicas:
Como reequilibrar as partes em conflito e restabelecer as condições correspondentes ao movimento “saudável” da produção capitalista? A maneira de chegar a esse equilíbrio já está contida na simples enunciação do conflito que se trata de dirimir. Ela inclui uma inativação, até mesmo uma destruição parcial de capital, no montante de valor de todo o capital adicional ΔC ou de uma parcela dele (MARX, 2017, pág. 355).
Resumindo: se o conteúdo da crise é a superacumulação de capital, a superação da crise passa pela destruição de pelo menos parte do capital adicional, daquilo que Marx denomina de “pletora do capital”. Ou seja: se há capital em excesso – isso é a crise – a saída da crise é destruir o excesso de capital; e isso ocorre também por meio de uma feroz concorrência entre os capitais, para resolver quem pagará a maior parte da conta. Como diz Marx (2017): “As perdas são inevitáveis para a classe. Mas a parte que cabe a cada indivíduo nessas perdas, a participação de cada um no cômputo geral, torna-se uma questão de poder e astúcia, e aqui a concorrência converte-se numa luta entre irmãos inimigos”.
O capital fictício e a crise sem fim de 2008
Esta conceituação também ajuda a explicar porque a crise de 2007/2008 na verdade não terminou até hoje: como aponta CARCANHOLO (2011), “a responsável pela explosão das dívidas soberanas4 é a tal “monetização” do capital fictício garantida pelo Estado (…) esta segunda onda da mesma crise – iniciada lá em 2007/2008 – é consequência da natureza de sustentação da lógica do capital fictício” – ou seja, uma das “soluções” do capital para a crise de 2007/2008, ao invés de destruição do capital fictício superacumulado, foi a sua reciclagem: de dívida privada em dívida pública.
Nosso camarada Edmilson COSTA, Secretário-Geral do PCB, em artigo escrito “no olho do furacão da crise” (publicado originalmente em fevereiro de 2009) aponta a superacumulação de capital fictício como origem da crise de 2007/2008, desde seus antecedentes nos anos 80 e 90:
(…) o grande capital norte-americano realizou na década de 80 e 90 uma espécie de fuga para frente, buscando estruturar uma economia de serviços, baseada na criação da riqueza mediante o extraordinário desenvolvimento do capital fictício. O objetivo era desenvolver um sistema financeiro sofisticado e hierarquizado a partir das instituições norte-americanas, capaz de capturar parte da mais valia mundial, e estruturar as relações socioeconômicas mundiais a partir dos interesses dos Estados Unidos. Inovações financeiras e finanças estruturadas, endividamento generalizado das famílias e expansão da dívida pública, além de aumento dos gastos na área do complexo industrial militar, de forma a permitir o desenvolvimento da política guerreira norte-americana, especialmente após a queda da União Soviética, foram a tônica da estratégia nos Estados Unidos (COSTA, 2013).
Em artigo para a revista “Dimensões da crise brasileira – dependência, trabalho e fundo público”, editada em 2018 pela Universidade Estadual do Ceará, CARCANHOLO relaciona o capital fictício com a reestruturação capitalista pós-crise dos anos 70:
Para reconstruir suas bases para um novo processo de acumulação, o capital deve encontrar espaços de valorização para esse capital acumulado em excesso. O capitalismo contemporâneo foi historicamente constituído precisamente em função da resposta que o modo de produção capitalista encontrou para sua crise estrutural dos anos 1960/1970. Essa resposta incluiu: (…)v. mudança da lógica de apropriação/acumulação do capital, segundo as determinações dadas pelo que Marx denominou de capital fictício. (…) No âmbito dessa lógica é que a liberalização (desregulamentação e abertura) dos mercados financeiros se constitui. Todas as inovações financeiras (criação e expansão de instrumentos financeiros que, em sua maioria, nada mais significam do que títulos de crédito que garantem ao proprietário a apropriação de um valor que ainda não foi produzido), incluindo aqui o famoso mercado de derivativos, se desenvolve desde os anos de 1970, e se acelera desde então, como uma maneira do capitalismo criar/encontrar/aprofundar espaços de valorização para uma massa de capital que estava, naquele momento, superacumulada.
(…). A nova crise estrutural do capitalismo, nesta passagem do século XXI, se explica justamente pelo predomínio da disfuncionalidade da lógica do capital fictício para a acumulação do capital total; ou seja, as raízes da atual crise do capitalismo são encontradas nas contradições próprias do capitalismo, aprofundadas pela sua dinâmica de acumulação na contemporaneidade (CARCANHOLO, 2018).
Na mesma brochura citada acima, COSTA apresenta em artigo escrito de 2011 a seguinte reflexão acerca de porque a crise não se solucionava:
Por que a crise não está acabando e a economia mundial não está se recuperando? Porque no macroagregado esta não é uma crise imobiliária, não é uma crise das dívidas soberanas dos países europeus ou uma crise financeira. Trata-se de uma crise do sistema como um todo, cujos fundamentos mais profundos se encontram na contradição entre a superacumulação de capitais e a impossibilidade de valorizá-los na esfera produtiva, o que leva os capitalistas a realizarem uma espécie de fuga para a frente buscando manter seus excedentes na esfera da circulação e elegendo o capital fictício como lócus privilegiado para seus negócios. Em um primeiro momento, esse movimento parece driblar a realidade, e o capital imagina que está livre de sua contradição original. Mas a crise volta a colocar o problema e a lei do valor se restabelece com maior clareza. (COSTA, 2013).
E quais os possíveis desdobramentos desta “crise que não acaba”? COSTA, no texto escrito em novembro de 2008, já apontava a possibilidade de um acirramento da exploração dos trabalhadores como desdobramento da crise:
A burguesia vai utilizar todas as suas ferramentas para sair vitoriosa da crise. Vai fazer todo o possível para manter os seus interesses de classe, seus objetivos estratégicos – econômicos, sociais e políticos -, de forma a recuperar as taxas de lucro e a disciplina social perdida durante os momentos da turbulência. Vai tentar implantar a ferro e fogo o seu projeto e, nesse sentido, não vacilará um minuto, como a história tem nos ensinado, mesmo que para tanto tenha que provocar guerras e destruições em massa. Vai tentar sair da crise rebaixando salários, direitos e garantias dos trabalhadores, concentrando a renda, realizando a mercantilização da vida, incentivando o complexo industrial-militar, destruindo ainda mais o meio ambiente, ampliando a miséria e a violência contra a população (COSTA, 2013).
CARCANHOLO aponta com precisão os desdobramentos da crise, especialmente após o “segundo mergulho” de 2011 com a crise das dívidas soberanas dos países da Europa:
(…) como se trata de uma superacumulação de uma massa de capital que se especializa apenas na apropriação de uma mais-valia que ele não produz, uma primeira exigência para a retomada da acumulação, sem a desvalorização necessária, é a expansão da massa de mais-valia produzida, de forma que esta consiga, de alguma forma, se adequar ao montante de títulos de apropriação super produzidos no período. Isso implica aumentar sobremaneira a taxa de mais-valia, isto é, a taxa de exploração do trabalho, de todas as formas possíveis: (i) arrocho salarial puro e simples; (ii) maior destituição de direitos da classe trabalhadora como forma de reduzir o valor da força de trabalho; (iii) prolongamento da jornada e/ou da intensidade do trabalho, sem a correspondente elevação salarial; (iv) avanço na reestruturação produtiva, com implicações sobre a rotação do capital e jornada/intensidade do trabalho. Em resumo, volta-se a carga de maior aprofundamento das reformas neoliberais nos mercados de trabalho, com o discurso mistificador de que isso reduziria o custo de contratação da mão-de-obra e elevaria o emprego. Na verdade, trata-se de impor o “ajuste” da crise à classe trabalhadora.
Em segundo lugar, a massa de capital superacumulado, como sempre, necessita de (novos) espaços de valorização. Tampouco é ocasional que, neste momento, retorne o discurso por uma maior reforma do Estado, com maiores privatizações, reduções dos gastos públicos em rubricas de cunho social, e aprofundamento das reformas previdenciárias. Trata-se de criar/expandir mercados para a atuação desses capitais sobrantes. (…) Os impactos dessa nova onda da crise para a classe trabalhadora são claros. A saída do capitalismo para mais esta crise estrutural passa pelo aumento do desemprego e da taxa de exploração do trabalho, com resultados óbvios para os trabalhadores, pela destinação crescente de recursos públicos para tentar estabilizar os preços dos ativos “podres”, o que significa a redução da parcela de gastos estatais com políticas sociais, e por uma forte pressão por ajuste fiscal e reforma tributária. (CARCANHOLO, 2011).
4Aqui CARCANHOLO se refere ao segundo momento da crise de 2008, o “segundo mergulho” das economias da Europa em 2011 em função da grave crise fiscal que assolou aqueles países.
Conclusão
A interpretação marxista da crise de 2007/2008 com base na categoria do capital fictício é absolutamente objetiva: as crises cíclicas do capitalismo resultam da contradição entre a produção social da riqueza e a apropriação privada da riqueza produzida; o conteúdo da crise cíclica do capitalismo é a superacumulação de capital; a crise de 2007/2008 tem como especificidade a superacumulação de capital fictício.
Como para o marxismo o Estado não é um demiurgo acima das contradições da sociedade, e sim “o comitê gestor dos negócios da burguesia” (MARX, 2013), a visão marxista consegue compreender perfeitamente por que o Estado no caso presente da crise de 2007/2008 não desempenhou o papel previsto pelos pós keynesianos de reverter a crise: como o capital fictício superacumulado no fundamental não foi destruído, o conteúdo da crise – e portanto a própria crise – se mantém.
Encerramos citando mais uma vez o camarada Edmilson COSTA, Secretário-Geral do PCB, reproduzindo o último parágrafo de seu texto de 2009:
Nesse momento especial da luta de classe os trabalhadores devem se preparar da melhor maneira possível para emergir na luta com um projeto emancipador e revolucionário. Não existe empate na luta de classe: na situação em que estamos vivendo, ou a burguesia sai vitoriosa e retoma o capitalismo num patamar superior; ou o proletariado derrota a burguesia e inicia a construção da nova sociedade com seus aliados fundamentais. Apesar da crise estar abalando todo o sistema, os trabalhadores não devem ficar de braços cruzados esperando o capitalismo cair de maduro. O capitalismo só cairá se for derrubado e esta é a tarefa do proletariado neste momento da história. Portanto, mãos à obra camaradas!
Carlos Arthur Newlands Junior é economista, dirigente nacional da Unidade Classista e membro do Comitê Central do PCB (Partido Comunista Brasileiro)
Fonte: