Petistas da caserna e comunistas do Pentágono?

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Por Ricardo Gancine *

A curiosa troca de acusações injustas entre PCB e PT

A História é curiosa. O PT na década de 1980, taticamente mais combativo que os PCs, era taxado injustamente pelos comunistas como invenção do Golbery de Couto e Silva para criar uma esquerda anticomunista. Hoje, tudo que está à esquerda do PT, como o PCB, cada vez mais vem sendo taxado por muitos petistas como invenção da CIA. A acusação de antipetismo passa a ser um espantalho contra todas as críticas à conciliação de classes. Na verdade, são poucos os que conseguem analisar o conteúdo histórico concreto destes partidos e seus papéis na História do Brasil, pois uma coisa é certa, não são só dois partidos políticos.

Esse movimento do campo democrático-popular é uma reação ao aumento da visibilidade que os e as comunistas estão tendo. O PCB foi pioneiro e protagonizou as marchas pelo Fora Bolsonaro em 2021 em todo canto do Brasil, constrangendo outros setores de esquerda, inseguros com as manifestações a aderir para não perderem seus públicos. Seguramente em 30 anos não se publicava e vendia tanto livro marxista, e uma diversidade cada vez maior de autores e autoras revolucionárias passam a ser conhecidos e estudados, muitos vistos pela primeira vez em português pelo esforço de editoras independentes como Lavra Palavra, Autonomia Literária e Cio da Terra, para ficarmos em apenas três exemplos.

É claro, o marxismo-leninismo e todo campo revolucionário está muito longe de conquistar uma nova hegemonia dentro do chamado campo popular, seria preciso algo de novo na conjuntura e acontecimentos políticos extraordinários para alçar a minoria a condição de maioria, como o que aconteceu na Rússia dos bolcheviques durante a I Guerra Mundial e seus desdobramentos depois da Revolução de Fevereiro ou como a explosão sindical brasileira do final dos anos de 1970 com o Novo Sindicalismo das Greves do ABC. Como dizia Lênin, há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem. O problema disso é que a minoria, no nosso caso revolucionária, precisa estar sólida, disciplinada e minimamente influente em determinados setores estratégicos durante esse processo para criar condições objetivas e subjetivas para liderar uma nova explosão social, por isso falta muito.

Voltamos ao Golbery, ao PT e a já clichê citação de Marx onde a história acontece pela primeira vez como tragédia, mas se repete como farsa. No caso da acusação aos comunistas, não existe lógica alguma em taxar o campo revolucionário como próximo da CIA, visto que é o PT que tem feito as alianças mais espúrias e nem precisaríamos desenvolver muito isso para comprovar. Criou-se uma imagem de que todos os problemas da nação são culpa de um só homem: Bolsonaro. Em outras palavras, a luta de classes teria dado uma trégua e a classe dominante não é vista como a grande responsável pelo aumento da exploração da classe trabalhadora. Alckmin só é a ponta do iceberg; mesmo que não seja confirmado como vice, a lógica será a mesma. Isso só pode ser explicado pela lógica do republicanismo ingênuo que enxerga o Estado como neutro. O fato é que, apesar destes espantalhos dirigidos aos comunistas, é o Partido dos Trabalhadores que abertamente defende alianças com os algozes do povo, querem ajuda dos mandantes dos massacres e genocídios para punir quem se orgulha de ter puxado o gatilho.

O Partidão, por sua vez, tem o anti-imperialismo no centro de suas lutas e não é linha auxiliar de Washington, como diversos setores que se dizem socialistas e estão de prontidão para apoiar as iniciativas da Casa Branca em matéria de política internacional. Estivemos firmes contra a vergonhosa invasão do Haiti pelo Governo Lula, contra a espionagem promovida pelo Obama, que chegou a grampear a própria Dilma, contra o Golpe de 2016 e contra a ingerência externa na Polícia Federal durante a Operação Lava Jato, que culminou na prisão do ex-presidente petista. Acusar os comunistas brasileiros de cúmplices é apenas agitação barata para confundir os mais desavisados que orbitam nas bolhas das redes sociais. Por outro lado, na década de 1980, alguns militantes comunistas caluniaram o PT, mas o contexto era outro. Eram os anos finais de uma ditadura que sempre viu os comunistas como seus principais inimigos e os difamou, os prendeu, os matou e os torturou.

Na cabeça dos militantes comunistas da época, o partido dos trabalhadores já existia e era o Partidão, por isso e não apenas por diferenças estratégicas e táticas, PT e PCB eram e são ontologicamente antagônicos em seu papel histórico, ou seja, do próprio ser destes dois partidos: a existência de um é a negação do outro e foi percebida por todos os grupos de pensamento que orbitavam dentro destes partidos, das esquerdas e das direitas partidárias. Como pode o proletariado ter dois Partidos? Ora, se o esforço monumental para superar sua mera existência de classe em si, como uma posição de diversos indivíduos nas relações sociais de produção, para se tornar classe consciente de si, ou melhor, para si, culmina justamente na formação de um partido de trabalhadores. Nem precisamos ir a Lênin: para os marxistas que leram o Manifesto do Partido Comunista, o processo de formação da classe trabalhadora enquanto classe só vai se consolidando com a construção e fortalecimento de um Partido Comunista de vanguarda.

O objetivo mais próximo dos comunistas é o mesmo do que o de todos os restantes partidos proletários: formação [Heranbildung] do proletariado em classe, derrubamento da dominação da burguesia, conquista do poder político pelo proletariado. As proposições teóricas dos comunistas não repousam de modo nenhum em ideias, em princípios, que foram inventados ou descobertos por este ou por aquele melhorador do mundo. São apenas expressões gerais de relações efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se processa diante dos nossos olhos. (MARX;ENGELS, 1982, p. 118).

Era muito difícil compreender a história e o papel histórico de cada um no calor do momento, ainda que possível, e por isso a acusação contra o PT era infundada apesar de compreensível. Enquanto o PCB era brutalmente reprimido, o PT era tolerado em muitos aspectos. 1982 é um ano emblemático, a Polícia havia fechado o 7º Congresso do PCB, enquanto petistas desfilavam com suas bandeiras e lançavam candidatos nas eleições daquele ano. Vale lembrar que o PCB só conseguiu ser legalizado em 1985, enquanto o PT foi fundado em 1980. Neste contexto, Lula e o Novo Sindicalismo eram comparados respectivamente aos poloneses Lech Wałęsa e Solidariedade (Solidarność), precursores e protagonistas do desmonte do socialismo no leste europeu. Era comum petistas andarem com camisetas do Solidariedade em suas assembleias e isso distanciava-os dos comunistas, que cada vez mais os viam com desconfiança.

Infelizmente, a repressão, a crise do socialismo e a estratégia equivocada colocaram o PCB numa tática horrível de manutenção da Frente Ampla neste período, priorizando o MDB até o último momento. As condições favoráveis para ser superado politicamente foram ampliadas pelos próprios comunistas. Deveriam ter rompido com esta tática e passado a defender uma frente de esquerda anticapitalista e anti-imperialista, na época com o PT, mas fora do PT, se é que havendo essa ruptura no PCB o PT teria surgido com a força que surgiu, talvez sim, talvez não, não há História do “e se”. O fato é que o Partido dos Trabalhadores é produto fundamentalmente de uma consciência espontânea e economicista, não de uma vanguarda, em um contexto onde o partido dos trabalhadores existente, o PCB, se afundava no etapismo e defendia interesses imediatos de outras classes, estranhos ao proletariado que estava ansioso para ser protagonista de sua História.

Para os leninistas a fundação do PT é quase como uma anomalia, mas que pode ser explicada pela influência do marxismo nos anos iniciais do PT. Isso é muito curioso; apesar de adversários, de certa forma os comunistas, ao menos na teoria e na cultura política da época, ajudaram o novo sindicalismo a superar a antipolítica e as lutas meramente corporativistas incentivando a criação de um Partido – quem conhece a biografia de Lula nota a mudança de postura sobre a questão partidária. Com surgimento muito diferente da social-democracia clássica, apesar da heresia ao marxismo-leninismo e no seu sentido histórico cumprir um papel de combate ao comunismo, o PT não foi criado em laboratório pelo Golbery, foi um produto legítimo da classe trabalhadora.

Na década de 1980 os comunistas entraram nas greves como a maior minoria (pois o monopólio da esquerda já havia sido perdido há praticamente duas décadas), e seu partido terminou quase liquidado. Felizmente, avançando na História, aguerridos militantes enfrentaram os liquidacionistas do PCB e realizaram a Reconstrução Revolucionária, criando as condições para uma nova hegemonia dentro da esquerda, desta vez da Estratégia Socialista para superar a Democrática-Popular em um acerto de contas com o passado, quando a Estratégia Democrática-Popular superou a Democrática-Nacional (que aliás em muitos aspectos foi um retrocesso, como na descaracterização do Estado como burguês e a concepção abstrata de socialismo).

Por isso, nós da esquerda revolucionária cumprimos um papel de vanguarda fundamental hoje em dia que certamente irá ser reconhecido no futuro. Precisamos mais do que nunca não cair em provocações e focar no trabalho político junto às massas trabalhadoras. Isso passa inevitavelmente por adversidades com Lula e o PT, o que torna o campo da esquerda muito desfavorável para nós, seja pela grande popularidade de Lula, que aumenta mesmo entre a juventude, seja pela esperança que os brasileiros estão depositando na saída eleitoral. É provável um freio no crescimento orgânico e rápido que nós comunistas estamos tendo. É preciso deixar nítida a fuga da caricatura usada contra os que demarcam posição. Demarcar posição em uma guerra de classes onde a principal candidatura simbolicamente de esquerda tem profundas limitações é fundamental. Para chegarmos ao socialismo é preciso falar de socialismo e para falar de socialismo é preciso fazer a denúncia do menos pior para promover a independência de classe. Isso não significa ser comentarista da luta de classes, queremos a hegemonia e realizamos um trabalho político entre as massas para alcançá-la. Como nos ensinou Carlos Marighella:

O segredo da invencibilidade do Partido está no contato estreito e permanente com as grandes massas. Assim, uma das características do PCB é que ele não age nunca isolado das massas.

Carlos Marighella, Tribuna Popular nº 61, 31 de julho de 1945.

A ideia de escrever este texto partiu de um tweet feito pelo Miguel Pinho, onde ele critica três posições que supostamente idiotizam a esquerda: “O cirista que acha o Ciro inventou o desenvolvimentismo, petista que acha qualquer coisa à esquerda do PT é invenção da CIA/FBI e uma militância esquerdista que quer marcar posição mesmo flertando com o abismo”. Tem outra esquerda, que o criador do post esqueceu de mencionar: a que acha que tudo à esquerda do reformismo sem reformas é esquerdista. Isso é inaceitável, mentiroso e despolitizante. É verdade que existe o esquerdismo, mas, como todo esquerdismo, está isolado e em crise quase terminal. Porém, como a tarefa imediata da conjuntura é derrotar institucionalmente o Bolsonaro, muita gente “esquece” de articular essa luta com a derrota do legado bolsonarista e com os responsáveis pelo bolsonarismo.

O Brasil é terra arrasada, nossa gente voltou a morrer de fome em larga escala, e os meios para mudar isso vêm sendo atacados todos os dias. Nesse contexto temos uma classe dominante que aumenta seus lucros e que não quer mais conciliar. Se Lula for eleito e se eleito assumir, para fazer qualquer política compensatória semelhante ao reformismo sem reformas de seus governos (e olha que ele diz que quer fazer mais do que já fez), mesmo sem ambições com reformas estruturais, terá que revogar a política de preços da Petrobras, a autonomia do Banco Central e o Teto de Gastos. Isso, nos moldes em que a luta de classes está se desenvolvendo, concretamente é enfrentar diretamente a burguesia e o imperialismo, ou seja, é luta anticapitalista. Aí mora a grande limitação histórica de Lula e do PT: não enxergam na reorganização da classe trabalhadora o agente político que fará essa luta, sempre fazem questão de afirmar que só é possível reverter as contrarreformas ou fazer reformas com maioria parlamentar, que a esquerda nunca teve e nunca terá! “Esquecem” que todas as conquistas não vieram com maioria parlamentar.

Colocando de outro modo, a única via capaz de melhorar minimamente a vida dos brasileiros é a via repudiada pelo PT, por isso não há como ter ilusões no discurso de pressionar Lula pela esquerda ou frases como “Lula sim, Alckmin não”. Ao vender ilusões, estão colocando o povo brasileiro diante de situação muito perigosa. A campanha de ataques da direita ao governo, independente de sua política interna, combinada com a manutenção da terra arrasada, pode produzir uma queda absurda de popularidade e podemos estar diante de uma nova República de Weimer: quando as forças progressistas alemãs, após a derrota do país na I Guerra Mundial, apostaram na democracia burguesa da austeridade para enfrentar os reacionários e na verdade acabaram os fortalecendo, vistos que venderam esperanças e não cumpriram. Podem ter certeza que Bolsonaro e o bolsonarismo estão atentos a isso.

Nossas tarefas não são poucas e nem fáceis, camaradas. A maioria dos revolucionários de hoje começou a militância na época de ouro dos governos petistas ou diante dos governos puro sangue do capital. Temos que assimilar esse novo ciclo político e ser firmes na defesa da revolução brasileira e socialista. Queremos acabar com a fome, melhorar nossas universidades e hospitais, garantir o pleno emprego e, como pressuposto, precisamos da reorganização da classe trabalhadora fortalecendo sindicatos, entidades estudantis, associações de bairro e movimentos de combate às opressões, articulando as lutas específicas com a luta de classes. Nesta trama é preciso enfrentar os ataques da direita e da esquerda liberal e mostrar para nossa classe que os comunistas falam a mesma língua. Emancipar a humanidade, esse é nosso papel histórico e precisamos honrá-lo. No meio desse percurso, os desafios para se manter na linha correta são imensos: o isolamento sectário e distante das massas que a persuasão esquerdista promove, bem como seu irmão oportunista que é o reformismo, sempre abandonando os rumos revolucionários com a ideia do mais fácil no imediato e impondo derrotas duras no médio prazo. É difícil, podemos não vencer amanhã às 8h30, mas se seguirmos firmes e convictos aprofundando nosso trabalho com o povo pobre, venceremos!

Referências

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. In. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. Vol. 1 Lisboa: Avante, Moscou: Progresso, 1982.

MARIGHELLA, Carlos. O que é o nosso Partido?. In. Tribuna Popular nº 61. 1945. Disponível em: https://traduagindo.com/2020/10/13/carlos-marighella-o-que-e-o-nosso-partido/

Tweet de Miguel Pinho. Disponível em:

*Ricardo Gancine é provável formando do curso de Licenciatura em História da UFSM, onde estuda História do movimento operário e comunista do Brasil. Militou nos últimos 5 anos no movimento estudantil e de massas do coração do Rio Grande do Sul e atualmente é militante da Unidade Classista e Secretário Político da Célula Santa Maria do Partido Comunista Brasileiro (PCB), onde também é membro do Comitê Regional RS na tarefa de Secretário Regional de Agitação e Propaganda.

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