Terreiros como espaços de luta contra o racismo no DF

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Por Danilo Josaphat, via Revista O Ipê

A sistemática violência religiosa contra locais de cultos de matriz africana escancara a mentalidade higienista, fundada no racismo e no elitismo, que ainda impera no Brasil e no Distrito Federal.

Apesar da liberdade de culto religioso ser garantida constitucionalmente, o Estado elitista e racista brasileiro permite e, por vezes, promove a perseguição contra religiões de matriz africana. O comportamento intolerante às expressões da religiosidade candomblecista e umbandista está profundamente enraizado no projeto de nação burguês e branco, e a situação em Brasília, infelizmente, não é diferente. O Distrito Federal (DF) desponta, nos últimos anos, com inúmeros casos na mídia de ataques a terreiros, o que provoca uma reflexão sobre como tem se constituído esse quadro de perseguição sistemática.

A prática banalizada de perseguição aos povos de terreiro e invasão de seus espaços de culto pode ser evidenciada pela forma truculenta e agressiva com que a Polícia Militar entrou e depredou terreiros a partir de denúncias anônimas sobre o paradeiro do autor de uma chacina no entorno do DF, no mês de junho de 2021. O evento escancara a ampla difusão do preconceito religioso fundado no racismo e a rapidez com que o braço armado do Estado ratifica a pretensa conexão entre espaço de culto religioso de matriz africana e criminalidade.

É sabido que terreiros são, historicamente, locais onde ocorrem ações de repressão, muito pelo que eles representam, é fato. Esses espaços sagrados são congregações originárias do povo preto, que remontam ao período da escravização, de forte sentimento comunitário, com alta capacidade de mobilização social e que destoam do projeto individualista, mercadológico e embranquecedor da classe dominante brasileira, inclusive o contrapondo. Assim sendo, como toda expressão do poder popular, a existência dos povos de terreiro estabelece uma contradição direta com os aparatos de reprodução social do capitalismo.

As correntes da contradição

Esse conflito, uma contradição em deflagração há séculos no Brasil, entre sistemas e ideias contra-hegemônicos das camadas populares (principalmente negras) e a prática, a moral e os bons costumes da burguesia branca, ou embranquecida, é uma das forças históricas que moldaram e ainda moldam a formação deste país. Se antes a coerção contra subversões ao projeto de nação da classe dominante estava a cargo do clero com apoio juramentado do Estado, como ocorreu até o século XIX, passando posteriormente à ação de aparatos policiais e militares durante o século XX, neste século XXI a força que complementa e se destaca a serviço da repressão de espaços populares, como os terreiros, são os agrupamentos ultraconservadores das igrejas neopentecostais.

Foi a partir do típico discurso reacionário com base na teologia da prosperidade e através de um apelo à violência que, no último mês de março, na zona rural de Planaltina, um homem que se apresentou como pastor evangélico invadiu um terreiro e destruiu várias imagens de orixás. Infelizmente, fatos como esse têm ocorrido à margem da ação do Estado e sem sobressaltos ou qualquer indignação da sociedade civil, contrariando a proteção constitucional de liberdade de culto.

Na unidade da federação com maior concentração de renda do país, os interesses políticos estão afastados das camadas populares, especialmente dos setores marginalizados. Repise-se que a invasão de terreiros em áreas pobres e periféricas, de população majoritariamente preta, acontece sob o acinte de comunidades religiosas reacionárias, que são verdadeiros cabos eleitorais da direita e da extrema-direita. Em 2019, segundo dados da delegacia especializada na investigação de crimes de intolerância no DF, 59% dos crimes de intolerância tinham os grupos de religiões de matriz africana como alvos. Em verdade, a invasão, a coerção e o desmantelamento dos espaços de culto de matriz africana são configurados pelos interesses de uma classe dominante, que é comprometida com a realização do projeto de sociedade brasiliense higienista, baseado no racismo e no elitismo classista.

Quebrando as correntes

Portanto, faz-se fundamental compreender e reafirmar que a violência contra os povos de terreiro está articulada a condições estruturantes que conformam a sociedade profundamente injusta, em que grande parcela da população permanece oprimida. Prezar e defender os espaços de resistência como terreiros e as práticas de organização social como as religiões de matriz africana deve fazer parte das tarefas daqueles que são comprometidos com a transformação radical da sociedade. Nesse sentido, algumas mediações são necessárias, como bem lembrou a Iyalorixá Luciana de Oya, do Ilê Axé Obodó, em São Paulo, para quem “a intolerância religiosa (…) exige que o tempo todo a gente tenha instrumentos para poder se defender”. De acordo com a líder religiosa, é importante saber que “tem uma legislação que normatiza isso e as casas, na maioria das vezes, não sabem”.

É fato que denunciar o avanço de reacionarismos como a teologia da prosperidade, que se apresenta como promotor do projeto da classe dominante, bem como fomentar a consciência racial e de classe junto à classe trabalhadora é imprescindível. Dar voz e inspirar-se na capacidade de mobilização dos povos de terreiro é de suma importância para garantir a vitalidade dos povos de axé, os quais são testemunha histórica dos processos de luta popular no Brasil. No dizer de Mãe Marinalva, líder de um terreiro em Santa Maria/DF, “axé é uma palavra que quer dizer força, luta, vitória”. É preciso lançar mão de todas as práticas, com força e luta, que são capazes de frear a escalada de violência contra as religiões de matriz africana, com o fim de buscar objetivamente um projeto de sociedade digna, justa, antirracista e verdadeiramente liberta.

Os ataques a terreiros no Brasil são a manifestação do racismo que permeia a sociedade e o Estado. Tal situação também retrata o quadro de profundo arraigamento do higienismo como corolário da ação política e do interesse dominante no Brasil e no DF. Nessa toada, é imperioso reafirmar o forte compromisso dos constituintes comunistas de 1946, como Jorge Amado, Claudino José da Silva e Luiz Carlos Prestes, que apresentaram emenda que consagrou a liberdade de culto. Igualmente, Carlos Marighella defendeu em discurso, à época, “a posição do Partido Comunista em querer lutar, com todas as forças da democracia, (…) para garantir, no Brasil, a liberdade de consciência”. E arrematou confirmando o respeito a “todos os credos, fazendo que não se estabeleça privilégio de um credo sobre os demais, ou não se recorra a essa situação, no sentido de impedir a liberdade democrática e acorrentar mais ainda a nossa gente”.

Por fim, não é demais citar o livro Revolução africana – Uma antologia do pensamento marxista , segundo o qual o encontro entre história e tradição ancestral na luta do povo preto com o materialismo histórico dialético deve possibilitar o negativo total do capitalismo mundial e a efetiva e necessária quebra dessas correntes.

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