Conjuntura, processo eleitoral e compromisso

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Por Leonardo Silva Andrada

Conjugando os sinais de distintas origens, o cenário atual parece apontar para a fragilização do ciclo bolsonarista, cuja exata definição ainda é alvo de debates. Se não existe acordo quanto à sua classificação como fascista (ou mesmo neofascista), é amplamente aceito que ele emula traços do fascismo, que o movimento que o apoia é abertamente fascista, e que o governo e o Estado não se tornaram fascistas em virtude da incompetência de seus articuladores. Esse último aspecto deve nos chamar a atenção para a fragilidade das forças de oposição, o que nos diz respeito. Durante o período, nós comunistas estivemos envolvidos em todas as articulações do movimento popular, sindical e estudantil, na resistência a essa tempestade neoliberal de coloração fascistóide que se formou após o pleito de 2018; mas isso não deve nos desobrigar da atenção a nossas dificuldades ao longo dessa jornada de lutas, que se aproxima de mudança de fase, mas não se encerra. Considerando a incapacidade dos operadores políticos do neofascismo, poderíamos ter avançado as posições da classe trabalhadora de forma mais sólida e consequente, mas permanecemos na defensiva, pois tivemos enormes dificuldades para impulsionar um movimento popular vigoroso, que sustentasse o contra ataque há muito necessário.

Temos indícios de que o verdadeiro poder, o capital monopolista e financeiro internacional e seus sócios minoritários internos,já não encontram em Bolsonaro o uso que ele teve em 2018. Àquela altura, o agitador fascista foi visto como último recurso para representar a recomposição do bloco político da autocracia burguesa e cumprir as tarefas que se colocavam para a retomada do controle exclusivo do Estado, sem precisar dividir espaços com uma conciliação que já não era proveitosa. O dispositivo formado por fascistóides, neopentecostais, comandantes de atividades criminosas e a lumpenburguesia de ramos variados demonstrou, ao longo desses três anos e meio, severas limitações para levar às últimas consequências um programa liberal, além de compor um bloco no poder que causou estorvo para os negócios externos e se apossou de fontes de recursos públicos loteados entre donatários históricos. Ciente da fragilidade de suas posições, o presidente e seu séquito jogam com o terrorismo de propaganda, requentando diuturnamente a ameaça golpista já devidamente desbaratada no 7 de setembro último, através de intervenção pontual de uma das articulações entre franjas burguesas e o sistema político.

O capital, através de seus funcionários destacados nas instituições, meios de comunicação e entidades da sociedade civil, dá mostras de indisposição com essas tentativas. Não podem ser declarações incisivas, pois dessa forma promoveriam ainda mais a instabilidade que abala os sensíveis mercados e atrapalha os negócios, além de abrir espaços para a intervenção das classes populares, e por isso utilizam a mensagem cifrada da ideologia para defender as instituições, a normalidade democrática, o processo eleitoral. Essa tibieza na rejeição ao golpismo, por sua vez, incita analistas de superfície a identificarem na “fragilidade das instituições”, o flanco aberto à realização de um golpe.

Configura visão superficial, à medida em que cria a expectativa de que um golpe de Estado pode resultar do mero gesto de vontade do presidente bufão, sem as forças sociais capazes de apoiar sua aventura, tanto quanto garantir o regime que pretende instaurar. A toda forma de Estado, corresponde uma sociedade civil, e mesmo nos casos em que ele consegue relativa autonomia, essa só se mantém na medida em que os interesses hegemônicos são preservados – seja o caso da Convenção, o de Vargas ou Bolsonaro. Não só o presidente passou todo seu mandato sem nenhuma declaração ou ação explícita de apoio por parte dos representantes do grande capital (uma diferença marcante em relação ao fascismo original), como foi capaz de provocar posicionamentos públicos inusitados. A Febraban, historicamente muito hábil em manter seu posicionamento político em meio às brumas de bastidores, se pronunciou publicamente em favor da “estabilidade democrática e a legitimidade do processo eleitoral”. Ao seu modo, outras entidades de classe dessa mesma cepa também se pronunciaram, em linguagem igualmente contida, e até mesmo os executivos locais do imperialismo seguiram por trilha semelhante. No campo institucional, é notória a posição contrária do topo do judiciário, sendo a figura mais destacada, o ministro Alexandre de Moraes, alçado à Corte pelas mãos de Michel Temer, um representante histórico de uma das facções do capital paulista. O mesmo Temer que articulou o desbaratamento da tentativa de golpe em setembro e que fez vir a público vídeo em que, reunido com os senhores de negócios, tripudiavam do presidente como um bobo da corte. O episódio aparece no horizonte como frivolidade em momento de descontração, mas se trata, em verdade, de escarnecimento da fragilidade do presidente diante dos grupos que efetivamente operam o poder, a demonstrar que o raio de ação do chefe do executivo depende de seus humores. A sua base de sustentação no Congresso é composta quase exclusivamente dos camelôs legislativos, cujo traço mais marcante é o posicionamento de ocasião, baseado no controle de recursos orçamentários, e com um apurado faro para identificar o lado em que o vento sopra e continuará soprando.

Nos últimos dias, a nova tentativa de alavancar uma “terceira via” que nunca vai muito além do traço, resultou em mais um passo rumo ao precipício do partido do neoliberalismo brasileiro nos anos 90. A articulação da cúpula do PSDB para neutralizar os anseios eleitorais de João Doria visam aliviar do partido a segunda experiência consecutiva de uma participação eleitoral ridícula, optando por se cacifar como força de apoio a uma outra candidatura que, se não tem grandes chances de ir adiante, permite negociar composição nos estados e no parlamento. Ciro Gomes, por seu turno, se esforça por ser reconhecido como a candidatura realmente à esquerda, alardeando-se como o legítimo herdeiro do trabalhismo histórico. Se o candidato é um verdadeiro camaleão que buscou se firmar em mais de meia dúzia de legendas, o programa apresenta, de fato, pelo menos uma característica da linhagem política inaugurada por Vargas, que é proposta de mudança controlada pelo alto, sem a participação das classes trabalhadoras. Uma considerável diferença, que se constitui obstáculo intransponível, é que não conta com o apoio de forças sociais capazes para operar a ruptura com o neoliberalismo que, discursivamente, ele diz ser o único que pode fazer.

A candidatura petista, em contrapartida, reedita a conciliação que caracterizou seu período no governo, tentando montar a frente amplíssima que se vende como a única forma de derrotar o neofascismo e fazer o Brasil feliz de novo. Da forma como se apresenta, os pilares dessa campanha apresentam dois graves problemas. A felicidade, o amor, toda essa emotividade melodramática, é mais uma camada da despolitização, acompanhada da desmobilização, que foram fatais para desarticular a defesa dos governos petistas diante do golpe; na versão atual, são acionadas para não criar mal estar com os aliados de jornada, muito ariscos a qualquer manifestação autônoma da classe trabalhadora. A insistência no sebastianismo lulista serve, também, para obscurecer o fato de que levar para dentro da aliança setores burgueses que compuseram o golpe e a construção do neofascismo, tem custos políticos e programáticos, que serão materializados em quem vai compor o governo e o que ele vai (mais relevante, o que não vai) fazer. São indicativos do caminho que se pode esperar de um eventual governo dessa composição, a declaração pública de que não se vai revogar a reforma trabalhista, ou o que se pode esperar quanto às privatizações, quando se dialoga com os responsáveis pelo “Pacote de Ajustes” dos anos 90, para elaborar um programa.

Por todo esse cenário analisado, refletimos sobre o papel dos comunistas no processo eleitoral. Gerenciar o capitalismo decadente, com um programa cada vez mais rebaixado e subserviente ao capital, não é função do operador político da classe trabalhadora. Não foi pra isso que surgiram e se forjaram nos embates os partidos operários, e para esse posto, já existem mais de trinta partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral. Nosso papel é organizar a classe para resistir aos ataques e recuperar seu protagonismo nas lutas. De posse de um programa que estabelece a estratégia e a tática da revolução brasileira, atuar nos locais de trabalho e moradia para construir as bases do poder popular. Essa é a proposta da pré-candidatura anunciada do PCB, que vem sendo apresentada com grande competência em todos os espaços que são abertos. Todos devemos ter claros os traços fundamentais do revolucionário, que são a disciplina e o compromisso, e direcionar nossos esforços para apoiar nossas candidaturas federais e estaduais. A tarefa eleitoral é de todo o conjunto da militância, ainda que a alguns entre nós, caiba o papel de candidatos. Diante dos recuos e vacilações das forças que capitulam sob a consigna de que “não há alternativa”, temos uma grande oportunidade de divulgar e defender uma linha política acertada, pautada na autonomia política da classe trabalhadora. Cumprindo nossa parte com a dedicação que a responsabilidade exige, o Partido Comunista Brasileiro certamente concluirá esse processo fortalecido. Avante, camaradas! Venceremos!

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