Despejo Zero! Pelo direito à moradia!

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Coordenação da Rede Modesto da Silveira – PCB

O direito à moradia está consagrado na Constituição da República como um direito social, é o que decorre da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000. Porém, antes mesmo da constitucionalização desse direito, o Brasil já se responsabilizara por atender às necessidades de moradia – e moradia adequada – de todas e todos que vivem em território nacional, isso por haver ratificado em 1992 o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU ( AG / ONU, 16/12/66 ), que estabelece : Artigo 11 §1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito….. ”.

Contudo, passados 30 anos da ratificação do Pacto prefalado e mais de 20 anos da introdução do direito à moradia como um direito social reconhecidamente constitucional, é público e notório o crônico – e recentemente agravado – déficit habitacional brasileiro, algo que não se circunscreve às cidades, mas também, com suas especificidades, ao campo. E quando se fala em direito à moradia, a um lar, na cidade ou no campo, é preciso que se diga que isso significa um espaço seguro, digno, com acesso aos equipamentos públicos necessários, algo que proporcione saúde e integridade física e mental para a pessoa, para a família.

Segundo a Fundação João Pinheiro – FJP, órgão de pesquisa vinculado ao governo de Minas Gerais, em 2019, últimos dados consolidados, alcançamos a cifra deficitária de quase 6 milhões de vivendas para nossa gente, que percentualmente se distribui e se faz presente pelo custo excessivo (forte comprometimento da renda da pessoa ou família) do aluguel, por volta de 52%; habitação precária, aproximadamente 25%; e, por fim, cerca de 23% em situação de coabitação (http://fjp.mg.gov.br/deficit-habitacional-no-brasil/). Em outras palavras, para que se cumpra o preceito socialmente fixado constitucionalmente, a normativa internacional interiorizada em nosso ordenamento legal quanto à efetividade do direito à moradia, ao lar, é imenso o fosso existente.

Somam-se a esses alarmantes dados da FJP, a extremada concentração fundiária que atravessa o país, cujos dados (2019) divulgados pela organização OXFAM Brasil apontam que 1% das propriedades rurais concentra 45% de toda a área rural existente no território nacional, em contrapartida, quase 80% dos estabelecimentos agropecuários detêm cerca 13% da área rurícola, destacando que quase 48% dos produtores rurais possuem área inferior a 10 hectares. Para esse mesmo ano de 2019, essa organização apontava mais de 100 mil famílias acampadas nas mais adversas condições de luta pela reforma agrária (https://www.oxfam.org.br/publicacao/menos-de-1-das-propriedades-agricolas-e-dona-de-quase-metade-da-area-rural-brasileira/ ).

É mais que sabido que o êxodo rural provocado pela brutal concentração de terras no Brasil e na América Latina é fator determinante para o inchaço de grandes e médias cidades, alimentando a espiral do déficit por moradias. A este elemento se somam os deslocamentos forçados decorrentes de megaprojetos do capital, como usinas hidrelétricas, parques eólicos, mineração, expansão do agronegócio etc.

Esse histórico brasileiro de crônica falta de moradia digna e necessária para nosso povo foi incrementado nesses recentes anos de aprofundamento da crise estrutural do capitalismo e de vigência do nefasto governo Bolsonaro, com destaque para a forma como este lidou e lida com a pandemia do Covid 19, o que fez avançar o quadro de miséria e desemprego, atingindo milhões e milhões de brasileiros, engrossando a olhos vistos a multidão de pessoas em situação de rua e as inúmeras filas da fome que se veem em praticamente todas as cidades médias e grandes do país. Certamente, e não é necessário ser estatístico para compilar esses dados, pois basta ter olhos de querer ver, que os milhares e milhares de sem teto que se espalham país afora só tornaram ainda mais grave, extremamente grave, a demanda por uma morada.

Nessa linha, ante a barbárie que assola a classe trabalhadora, as massas empobrecidas e miseráveis que campeiam pelo país, grande parte da população é obrigada a recorrer às mais variadas formas de articulação, organização e luta para se ter um teto sobre sua cabeça, ainda que precário, seja ele uma choupana coberta de palha ou lona, um prédio, terreno ou casa abandonada pelo poder público ou privado, pois já foi dito que “enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito”. Dizemos : mais que um direito, é uma necessidade da própria sobrevivência !

Como enunciado, o quadro de desemprego, miséria, fome, tudo isso majorado pela forma como o governo de plantão tratou e trata a pandemia, bem como todo e qualquer problema social, só fez e faz tornar ainda mais gritante o gravíssimo déficit habitacional, gerando, em contrapartida, inúmeras iniciativas, organizadas ou não, com maior ou menor nível de coletividade, de ocupação de espaços públicos e privados, no campo e na cidade, pelos mais variados matizes de sem-terra e sem-teto. Ante esse quadro de luta crescente e absolutamente necessária por um espaço para se viver e sobreviver, não tardou para que a burguesia urbana e rural buscasse, como sempre o fez, porém com mais intensidade e ímpeto, os balcões da justiça para a retomada desses espaços, contando com seus aliados de sempre, escastelados que estão nas esferas de governo e administração.

Para tentar fazer frente a esse quadro de absoluta falta de interesse em fazer valer a dignidade da pessoa humana, pois os capitalistas agem apenas em função de seus lucros e dividendos, entidades, organizações e instituições lançaram em meados de 2020 a Campanha Despejo Zero, cujo eixo norteador está assim lançado :

“Nos últimos meses, em plena pandemia do Covid-19, governos, judiciário e proprietários insistem em desabrigar famílias por todo o Brasil. São sem teto, sem-terra e locatários que são removidos de suas moradias, muitas vezes com força policial. O isolamento social e a higienização constante são as medidas comprovadamente mais eficazes contra o avanço da pandemia, mas estas medidas são negadas a boa parte da população, que não tem garantido o direito à moradia digna.

Precisamos encontrar soluções que garantam o direitos à moradia das comunidades ameaçadas, das pessoas em situação de rua, e também se faz necessário avançar na demarcação e respeito aos territórios indígenas e quilombolas. E é nesse contexto que lançamos, no dia 23 de julho, a CAMPANHA DESPEJO ZERO. A campanha é uma ação nacional, com apoio internacional, que visa a suspensão dos despejos ou remoções, sejam elas fruto da iniciativa privada ou pública, respaldada em decisão judicial ou administrativa, que tenha como finalidade desabrigar famílias e comunidades, urbanas ou rurais.”

No contexto dessa Campanha, alguns avanços foram obtidos, como aprovação pelo Congresso, após intensa pressão de organizações e entidades populares e/ou parceiras, da lei nº 14.216, de outubro de 2021, cuja vigência só se tornou possível após a derrubada do veto de Bolsonaro à íntegra da lei. Mesmo tendo esta norma efeito limitado a dezembro do mesmo ano e ter sua abrangência circunscrita às áreas urbanas, é fato também que criou algumas condicionantes para que se pudesse decretar judicial ou administrativamente desocupações ou remoções forçadas de pessoas ou famílias, ou seja, foi um pequeno suspiro para aquelas e aqueles que estavam ameaçados de perderem um teto, ainda que precário, repita-se, da noite para o dia. Contudo, considerando, em resumo, os limites da lei que tramitava – e assim restou aprovada – no Congresso, entidades populares e partidos políticos, ajuizaram no Supremo Tribunal Federal uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, tomando esta o n. 828, na qual pleiteavam, em síntese apertada, que despejos, remoções forçadas e reintegrações de posse de natureza coletiva ou privada – caso de pessoas em situação de vulnerabilidade vivendo sob aluguel – não se concretizassem enquanto em curso a pandemia do Covid 19, uma vez que o que estava (e está) em jogo são preceitos essenciais à vida humana, como o direito social à moradia, relacionado que está com a própria saúde e bem – estar da população e da pessoa, uma vez que o isolamento social era instrumento fundamental à contenção da expansão da contaminação pelo coronavírus.

Deferida decisão judicial cautelar (provisória) suspendendo ações judiciais e medidas administrativas que visassem, não sem algumas exceções, atos de desocupação forçada no campo e na cidade, foi, a princípio, fixado o prazo de até dezembro de 2021 como marco suspensivo. Porém, subsequentemente, a partir de outras solicitações feitas no bojo da mesma ação pelas entidades patrocinadoras da mesma, com a interveniência, a esse turno, de outras organizações sociais que pouco a pouco foram se somando e ingressando no processo, agregando outros argumentos de sustentação à tese de defesa dos direitos sociais e humanos, o prazo resta estendido, até o momento, à data de 30 de junho próximo. Mas o que ocorrerá caso não haja uma nova prorrogação desse prazo para o desalojamento coletivo no campo e na cidade de pessoas que se encontram sob a proteção dessa ordem judicial ?

Segundo informações reunidas pela Campanha Despejo Zero, existem hoje mais de 130.000 famílias em todo o país sob o risco iminente de sofrerem todo o tipo de remoção forçada, o que representa aproximadamente quase 600.000 pessoas…. Há informações consistentes de que em centenas de processos judiciais as decisões já estão prontas, aguardando apenas a expiração do prazo fixado pelo Supremo Tribunal Federal para serem assinadas por juízas e juízes, e, consequentemente, cumpridas, com ou sem auxílio de forças policiais para sua efetivação. Dentre essas seiscentas mil pessoas há milhares de crianças e idosos, milhares…

Nessa alinhada, urge que os partidos os políticos de esquerda, do campo progressista, entidades e movimentos populares do campo e da cidade, organizações da sociedade civil que têm compromisso com os direitos humanos e a dignidade da pessoa humana, se somem em uma grande e consistente articulação nacional para pressionar os poderes constituídos no âmbito federal e nos estados para que soluções urgentes e emergenciais sejam encontradas para evitar essa verdadeira catástrofe humana que se aproxima, caso o STF resolva por não prorrogar mais o prazo de suspensão das ações e decisões de desalojamento forçado, pois muito, muito em breve poderemos ter mais e mais pessoas, dentre as quais milhares de crianças e idosos, a viver em situação de rua em centenas e centenas de cidades brasileiras, ou seja, jogadas à própria sorte da sobrevivência.

A outro turno, se é fato que não se pode esperar, ante o baixo acúmulo de forças das organizações de esquerda e do campo popular, uma viragem significativa na política urbana e rural, focada que deve estar na desapropriação por interesse social de vastas áreas citadinas reservadas à especulação imobiliária, na destinação de milhares de prédios públicos fechados à moradia popular com as adequações necessárias para tanto, na imposição progressiva de impostos na cidade e no campo quando não houver o uso social da propriedade, em uma reforma agrária que de fato atenda às e aos milhares de camponeses sem terra, na demarcação e titulação das terras indígenas, territórios quilombolas e das populações tradicionais e outras iniciativas de cunho popular e sob controle das e dos trabalhadores do campo e da cidade, não menos fato se tratar a Campanha Despejo Zero de um importante marco de luta e questionador, ainda que indiretamente, do sistema de concentração da propriedade e da forma como esta é usada ao reverso dos direitos e interesses das grandes massas oprimidas e espoliadas de nosso país.

Portanto, somar e agregar os esforços da aguerrida militância do PCB nessa Campanha e nessa luta, fomentando mais e mais articulação, organização e questionando fundamente esse modelo concentrador de riqueza e altamente excludente, é tarefa que se põe como mais um passo para a construção do socialismo.