De Beirute a Gaza há coisas que nunca mudam

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Por José Goulão via ABRIL ABRIL

[Na foto: Palestinos inspecionam um edifício residencial atingido pela aviação israelense, em Rafah, no Sul da Faixa de Gaza, a 6 de agosto de 2022
Créditos / middleeasteye.net]

Gaza é hoje a Beirute Ocidental de 40 anos atrás, com a agravante de a sua população, calculada em dois milhões de pessoas num território ínfimo, ter sido privada de todos os meios de defesa e até de sobrevivência.

Passam agora exatamente 40 anos sobre os dias tórridos de 1982 em que, ao cabo de várias peripécias próprias da vida de um jornalista, consegui chegar a Beirute Ocidental, região cercada e impunemente bombardeada pelas forças armadas de Israel. A invasão israelense consolidara ainda mais a divisão sectária da capital libanesa em setores ocidental e oriental, separados por uma «linha verde».

Agora, quatro décadas depois, as mesmas forças armadas de Israel cometem mais um pico da agressão permanente que mantêm contra a Faixa de Gaza, território palestino transformado num campo de concentração a céu aberto, tal como Beirute Ocidental foi em 1982.

Há coisas que nunca mudam: regimes criminosos agindo tranquilamente à margem das leis internacionais, sustentados por cúmplices dizendo-se democratas, civilizados e juízes dos direitos humanos; e povos sujeitos a guerras de extermínio.

No caso dos palestinos, quando a situação se altera, é no sentido único do agravamento contínuo. Um povo submetido a um tratamento cruel e a uma limpeza étnica há sete décadas e meia, e que, ao contrário de outros «mais parecidos conosco», como se diz na linguagem própria da xenofobia colonial, não consegue suscitar grandes ondas de comoção internacional, acompanhadas pelo coro de berros transtornados de jornalistas e comentadores sem escrúpulos.

Os palestinos resistem quase sozinhos, com a sua coragem inigualável e os parcos meios de que dispõem para fazer frente a um inimigo sádico e selvagem, sem limites, beneficiado por um ilimitado poder militar e de lobby transnacional, além de uma impunidade internacional sem restrições.

De Beirute, em 1982, até Gaza, em 2022, há um fio histórico condutor com uma lógica e uma coerência tão fortes que lhe permitiram resistir às grandes convulsões ocorridas ao longo dos últimos 40 anos. Acabou uma guerra fria e começou outra, derrubou-se um muro em Berlim e construíram-se outros na Europa e em vários lugares através do mundo, mas o martírio palestino continua, afinal incólume aos terremotos políticos, militares e estratégicos através dos quais se faz, e também se desfaz, aquilo a que a tecnolíngua de consumo obrigatório decidiu chamar globalismo.

A arbitrariedade militarista e racista israelense passou por cima da imensa vaga de transformações em escala mundial, o que não é surpreendente graças às relações de forças que foram emergindo no fim da guerra fria; no entanto, de maneira insólita e mesmo inesperada (que não para os próprios), a resistência palestina não foi liquidada por essa mesma onda, entre pequenos e traiçoeiros avanços e devastadores mas não fatais recuos. Perdoe-se a ligeireza da analogia, mas a justiça e os direitos legítimos de uma aldeia de Asterix continuam sobrevivendo à força bruta e à crueldade expansionistas no coração do império – embora sem alcançarem o devido reconhecimento em forma de Estado nacional.

O exemplo de Beirute
É assim em Gaza, na Cisjordânia e em Jerusalém Leste como foi em Beirute no ano de 1982.

Para os que não eram nascidos ou não se recordam, Beirute era alvo de uma brutal ofensiva militar israelense, comandada pelo general Ariel Sharon, que depois chegou a primeiro-ministro mesmo tendo sido condenado internamente por crimes cometidos nessa operação. O objetivo declarado, como de costume, era o de «combater o terrorismo palestino», isto é, liquidar as estruturas embrionárias de um Estado árabe na Palestina, na altura instaladas no Líbano. E, se possível, assassinar o próprio dirigente máximo da resistência nacional palestina, então Yasser Arafat, o que foi tentado várias vezes, na altura sem êxito.

No recuo perante as tropas invasoras israelenses, apoiadas por uma força aérea poderosíssima que agia sem qualquer oposição, a resistência conjunta palestina e libanesa concentrou-se na parte Oeste de Beirute, que ficou então completamente cercada.

Do lado da resistência aos invasores atuavam as estruturas paramilitares das forças políticas palestinas concentradas na Organização de Libertação da Palestina (OLP) e no Exército de Libertação da Palestina – embrião do exército nacional do futuro Estado; e também grupos paramilitares libaneses ligados a partidos e movimentos políticos, além de organizações de âmbito nacional ou das várias confissões religiosas: muçulmanas sunitas, xiitas, drusas e até cristãs maronitas.

As tropas agressoras sionistas eram ainda apoiadas pelas principais organizações fascistas cristãs maronitas libanesas, como o Partido da Falange, da poderosa família Gemayel, de índole feudal e «cultura» colonial francesa, e o chamado Exército do Sul do Líbano, de fato criado pelo regime de Tel Aviv.

Embora as peripécias vividas pelo jornalista para chegar à área cercada de Beirute não sejam para aqui chamadas, há uma que tem um aspecto relevante, sobretudo pela sua atualidade. No caminho por estrada entre a capital síria, Damasco, e Beirute Oriental fui submetido a vários controles de identificação pela miríade de grupos militares e paramilitares presentes no terreno, mas o último, e decisivo, aconteceu no quartel-general dos fascistas da Falange, fazendo o papel de filtro de admissão a pedido das forças israelenses.

Como viajava num grupo de jornalistas e operadores de câmara britânicos e norte-americanos, o processo decorreu sem grandes sobressaltos, mas fica a nota da colaboração das forças ditas civilizadas, ocidentais e democráticas, na ocasião briosamente representadas pelas tropas invasoras israelenses, com as organizações fascistas e terroristas libanesas. Coisa que se diria contranatura mas que, tendo em conta a presente colaboração da OTAN com os nazistas ucranianos na defesa de um regime ditatorial em Kiev, não passa de uma intimidade de longa data, natural, frequente, corrente e até coerente, pode-se dizer.

O estado de Beirute Ocidental era indescritível e cada minuto a mais de existência, dia e noite, sentia-se como um milagre de sobrevivência. A maior parte dos edifícios estava arrasada ou em ruínas, cadáveres insepultos, desfigurados, muitos já em decomposição, jaziam por todo o lado, principalmente nas imediações e no interior dos campos de refugiados palestinos – não existiam condições para os funerais escaparem ao fogo dos aviões israelenses; não havia água e apenas funcionavam alguns precários pontos de eletricidade dependentes de geradores, numa cidade quase desprovida de combustíveis; os recursos alimentares eram mínimos, os refugiados amontoavam-se em pequenas divisões no interior dos edifícios que restavam, situados principalmente na Rua Hamra, até então uma área comercial, financeira, jornalística e hoteleira da cidade. O uso de telex – o meio de comunicação escrita existente na altura – era possível apenas algumas horas por dia, de maneira intermitente e a preços proibitivos; o telefone para numerosos países, entre os quais Portugal, não funcionava.

De noite, os bombardeios israelenses com obuses eram cegos, não importava onde caíssem desde que fosse no perímetro urbano cercado, chegando a atingir o hotel onde se concentravam os representantes da imprensa e da TV norte-americanas – habitualmente alvo de precauções especiais por parte dos agressores. A partir dos primeiros sinais de dia começavam os bombardeios aéreos, em vagas sucessivas de F-15 – a geração mais avançada de caças-bombardeiros então em poder da Força Aérea israelense – e sem qualquer oposição. As consequências eram devastadoras, não havia refúgios, e no dia 10 de agosto, que ficou para a história como a «horrenda quinta-feira», a chacina foi impiedosa sobre multidões que corriam desencontradas e à deriva pelas ruas.

Uma visão do Apocalipse. Quem tenha vivido uma situação destas, como posteriormente me aconteceu várias vezes em Gaza, jamais poderá considerar como lícito, justificado, muito menos banal o recurso à guerra e o seu prolongamento como via para criar estabilidade, resolver conflitos, pacificar regiões. É exatamente o oposto da democracia e do respeito pelos direitos humanos. O predomínio do militarismo é uma porta franqueada ao terrorismo, é criminoso.

A resistência armada libanesa-palestiniana, civil, paramilitar e militar, unida no interior de uma região que sempre fora desmilitarizada e deixara de o ser por força do avanço dos invasores, não se vergou nem rendeu durante 82 intermináveis dias, um feito pouco menos que inacreditável mesmo para quem viveu os combates. A todo o momento se esperava a entrada das tropas israelenses, mas o certo é que não se atreveram nem mesmo após o massacre de 10 de agosto. Os assaltantes sionistas fugiram a experimentar o combate urbano contra quem, em boa verdade, pouco tinha a perder além da vida.

Muitos cadáveres de soldados chegariam então ao território israelense se isso acontecesse, um preço que o regime de Tel Aviv não se sentiu em condições de pagar. E então negociou, sempre em vantagem porque, como viria a tornar-se um hábito, a «mediação» foi exercida pelos Estados Unidos. O acordo encontrado estabeleceu que as forças do Exército de Libertação da Palestina e os dirigentes da OLP poderiam sair em segurança de Beirute para a Tunísia e que tropas transnacionais, especialmente francesas, garantiriam a necessária interposição entre as partes em conflito, além de assegurarem a proteção dos campos de refugiados palestinos.

O mecanismo era precário mas funcionou durante algumas semanas. Em 17 de setembro, porém, os terroristas cristãos pró-Israel do Exército do Sul do Líbano, protegidos pelas tropas israelenses, o que foi muito fácil de testemunhar, entraram nos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila e chacinaram a sangue frio cerca de cinco mil pessoas entre homens, mulheres, crianças e idosos, sem discriminação. Ainda não se chamava assim, mas foi um concludente exemplo da «ordem internacional baseada em regras».

O massacre teve algum eco através do mundo, até porque violou um acordo «mediado» pelos Estados Unidos, e deu origem a sinais de má consciência entre membros reservistas do Exército israelense, de que dá conta o interessante filme Danças com Bachir. O comandante da operação, Ariel Sharon, foi condenado na sequência de um inquérito oficial, mas alguns anos depois chegou a primeiro-ministro e, no início deste século, esteve à frente do terror contra a chamada «Segunda Intifada» palestina.

Foi breve e quase inconsequente a consternação em relação à chacina de Sabra e Chatila. Massacres recentes não comprovados, certamente montados segundo roteiros falsos como o de Bucha, nos subúrbios de Kiev, fizeram correr bastante mais tinta e geraram uma ampla, descontrolada e mirabolante cacofonia de poluição sonora.

 

Jornalismo e jornalistas
Fui o único jornalista português a trabalhar em Beirute Ocidental durante o cerco israelense. Se anoto esta situação, é porque se trata de um facto relevante a que as circunstâncias conferem actualidade, apesar de terem passado 40 anos. Os jornalistas portugueses, como se constata, acorrem na sua esmagadora maioria para lugares de conflito armado onde a narrativa dos factos coincide com a posição das instituições públicas do país, convergindo na formação de uma opinião hoje ainda mais restritiva e única do que então; o «inimigo» não deve ter cobertura, não pode ter voz dada a conhecer aos cidadãos portugueses, está do lado errado do conflito e dos «nossos valores partilhados», o salmo dogmático de Bruxelas e Washington.

No Verão de 1982, jornalistas nacionais instalaram-se comodamente em Beirute Oriental de acordo com os critérios seguidos atualmente no Zelenskistão; os raríssimos profissionais que procuram testemunhar a realidade no Donbass, como acontece, por exemplo, com o valiosíssimo e profundo trabalho de Bruno Amaral de Carvalho, são considerados uma espécie de traidores da Pátria, até por membros do governo; chegam a ser convocados por colegas para dar entrevistas, como se necessitassem justificar um comportamento autoritariamente interpretado como aberrante.

Também neste aspecto a situação não mudou; agravou-se mesmo em termos de desrespeito pelo pluralismo de opiniões e pelo direito de acesso a todos os ângulos de informação. É uma outra guerra produzida pela própria guerra e pelo avanço galopante da ideologia militarista.

O fracasso da ONU
Depois de Beirute, estive em Gaza cinco anos, dez anos, 15 anos, 20 anos depois e testemunhei a gradual transformação do pequeno território palestino numa versão ainda mais aterradora da que existiu há 40 anos na parte ocidental da capital libanesa.

O governo terrorista de Israel, com o apoio permanente dos Estados Unidos e também de vários outros países da OTAN, sobretudo a França e o Reino Unido, tentou por várias vezes voltar a conquistar uma presença militar no Líbano de modo a domesticar este país e transformá-lo num satélite inofensivo para as suas ambições de controle regional – principalmente sobre a Síria.

Mas a emergência dos nacionalistas xiitas do Hezbollah, em parte incentivada pela chacina de Sabra e Chatila, travou todas as tentativas de invasão, principalmente em 1996 e 2006. O grupo de índole religiosa, que ganhou respeito e apoios em outros setores religiosos e até não religiosos, transformou-se num adversário de respeito que obriga a tropa sionista a ponderar as suas ações na região, evitando o confronto militar direto. Recorre covardemente, como sempre, aos ataques permitidos pela sua superioridade aérea, mas o à-vontade já não é o mesmo desde que existem o Hezbollah e sistemas mais avançados de defesa antiaérea instalados pela Rússia na Síria, a partir de 2015.

Mas em Gaza isso não acontece. Gaza é hoje a Beirute Ocidental de 40 anos atrás, com a agravante de a sua população, calculada em dois milhões de pessoas num território ínfimo de 360 quilômetros quadrados (área aproximada do concelho de Montijo, por exemplo), ter sido privada de todos os meios de defesa e até de sobrevivência.

A Faixa de Gaza, governada pelo movimento radical islâmico Hamas depois de uma divisão catastrófica da resistência palestina na sequência dos acordos de «paz» conduzidos pelos Estados Unidos, novamente como «mediadores», e por Israel, está fisicamente envolvida por cercas, muros e meios navais de guerra no Mediterrâneo, impedida de se abastecer de todos os bens essenciais à vida, desde alimentos a medicamentos. A água é escassíssima e cada vez mais salgada, não existe energia elétrica durante grande parte do dia, os bombardeios permanentes de Israel, com picos de grande violência como agora mais uma vez se registrou, destruíram grande parte das estruturas sociais, como escolas e hospitais, e devastaram o parque habitacional.

Gaza é um monte de ruínas, uma sociedade de famílias destroçadas e um universo de carências como Beirute Ocidental há 40 anos. Centenas de milhares de palestinos eram, e são, refugiados no Líbano e o são também na sua própria terra, em Gaza, na Cisjordânia, em Jerusalém Leste.

Ninguém, nenhum país e organização com capacidade de intervenção no mundo se move em favor dos direitos deste povo. O comportamento da ONU é deplorável e as atitudes dos secretários-gerais tornam-se cada vez mais irrelevantes à medida que se sucedem os ocupantes do cargo: quando isso parecia impossível, António Guterres supera em alheamento e ineficácia o desastre que foi a gestão do sul-coreano Ban Ki-moon.

Tão célere a tomar posição, por sinal enviesada, parcial e desinformada (no mínimo) na questão ucraniana, o engenheiro Guterres contempla imobilizado a agonia e as periódicas chacinas de Gaza; e, quando age, os resultados chegam a ser patéticos. A ONU tem em seu poder todos os instrumentos para fazer justiça, finalmente, ao povo palestino. Existem, contudo, povos de primeira, segunda e terceira, e o da Palestina não cabe sequer em qualquer destes níveis discriminatórios. É um pária do qual os senhores do mundo, uma elite parasita que representa pouco e ainda manda muito, observam tranquilamente o extermínio gradual. No entanto, esse povo resiste, como há 40, há 75 anos. E onde estão as sanções contra Israel pela Nakba (a catástrofe terrorista, genocídio, limpeza étnica) em prática há sete décadas e meia?

A situação do povo palestino diz muito, quase tudo, sobre a qualidade humana, o conceito de justiça, a consideração pelo direito internacional, o respeito pelos direitos humanos por parte da casta colonial e imperial que ainda controla o mundo em coligação com o poder sionista transnacional, não apenas centrado em Israel.

 

Exclusivo AbrilAbril

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