A exploração do servidor público terceirizado

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No segundo artigo da série “A Terceirização no Serviço Público”, a Revista O Ipê analisa o sentido da terceirização no serviço público a partir de uma ótica marxista

Por Raul Floriano via Revista O Ipê

O Estado como empresa

A Revista O Ipê deu-nos a difícil tarefa de desvendar a lógica econômica da terceirização no serviço público. Difícil, pois a terceirização é absurda. Mais difícil ainda, pois os absurdos do sistema capitalista têm uma maneira toda especial de ir se aconchegando em nossas ideias, de ir tomando liberdades que não demos e, no fim, de nos fazer cegos ao óbvio, escondendo-se em boas aparências, estirado no sofá da sala de nossas convicções. Por isso, vamos aqui aceitar e observar as aparências do Estado e da terceirização, mas apenas de modo a desmascará-las a cada passo suspeito.

A aparência ideológica do Estado

Comecemos pelo Estado. Em sua aparência, a burocracia do Estado é um conjunto de funcionários que trabalha para defender os interesses universais de toda a sociedade [1]. Estão ali para assegurar os serviços públicos de que todos nós precisamos, e recebem um pagamento por isso. Aceitemos essa fantasia.

Logo de saída, teríamos de nos perguntar: seria justo que, para promover a defesa nacional, a segurança pública, a saúde, a educação e todo o resto, o Estado escravizasse e explorasse alguns em função do bem geral? Faria sentido o próprio Estado retirar diretamente de alguns “escolhidos” os bens que ele próprio jurou resguardar? Seria razoável que as pessoas que trabalhassem para os interesses universais da sociedade recebessem em troca a miséria? Não, não seria. Pois é exatamente o que acontece com uma massa de trabalhadoras e trabalhadores chamados de terceirizados: são exércitos de operários, petroleiros, bancários, copeiras, arrumadeiras, técnicos de T.I., vigilantes, arquitetos, juazeiros e seguranças que recebem bem abaixo do salário necessário para sustentar minimamente suas famílias [2].

Sejamos dignos, porém: com a palavra, primeiro, os que fabricaram esse estado de coisas no Brasil, os defensores da terceirização no Estado. Segundo Bresser-Pereira, o homem da última reforma administrativa, a terceirização das atividades de apoio faria parte de uma “história de sucesso”, pois traria maior eficiência ao serviço público, aproximando-o da experiência de uma empresa. Mas se são as empresas que buscam explorar ao máximo seus funcionários para extrair deles lucro, é esse modelo que o Estado, promotor do bem geral, deve seguir? Já começa bem errado, mas, enfim: é pra frente que se anda.

Ainda segundo Bresser, as funções do Estado poderiam ser basicamente divididas entre: i) produção de bens e serviços para o mercado; ii) atividades que (supostamente) não pertenceriam ao Estado (escolas, universidades, hospitais, centros de pesquisa científica e tecnológica, entre outros); e iii) atividades do núcleo estratégico, realizadas pelos políticos e altos funcionários. Analisemos o sentido da exploração do servidor terceirizado em cada um desses casos, girando finalmente aquela porta escondida da repartição em que se lê: ENTRADA RESTRITA A FUNCIONÁRIOS.

O Estado-empresa

Nos casos da produção de bens e serviços para o mercado, o Estado funciona como uma empresa [3], buscando lucro em atividades pouco rentáveis ou estratégicas demais para se deixar na mão do setor privado. Mas como lucra uma empresa?

Peguemos a Petrobrás como exemplo. A empresa possui, de um lado, os seus gigantescos maquinários, meios de produção de preços exorbitantes. De outro, cerca de 46 mil funcionários e funcionárias concursadas e por volta de 100 mil trabalhadores e trabalhadoras terceirizadas. Sem esses trabalhadores, todas as máquinas e equipamentos são apenas uma coleção de ferro morto. É a força de trabalho que faz as máquinas girarem, dá valor à produção e permite fabricar a gasolina, o óleo, o petróleo bruto e todas as outras mercadorias que ela pretende vender.

Façamos agora a seguinte pergunta: quanto custa essa força de trabalho? Quanto se paga a um funcionário que produz para a empresa a mercadoria que ela precisa vender?

O valor pago pela força de trabalho é determinado como o valor de todas as outras mercadorias: corresponde ao custo para produzi-la. O salário é, então, o valor considerado necessário para o petroleiro existir: o preço para ele comer, vestir, ter estudado, ir ao médico, ao dentista, aposentar-se dignamente e criar seus filhos e filhas, que serão também força de trabalho.

Assim, temos que o trabalhador tem um custo para o dono da empresa ao mesmo tempo em que ele produz a mercadoria e seu valor para ele. Uma mão lava a outra. Mas, como quanto mais o trabalhador produz, mais valor é gerado, é apenas lógico que, em um dia de trabalho, chegue uma hora – digamos, duas da tarde – em que ele produziu para a empresa o mesmo valor que lhe é pago por sua jornada de trabalho. Mas nada impede seu patrão de obrigar que ele continue trabalhando depois desse ponto, gerando um valor além daquele que ele recebe de volta. A esse valor produzido além do trabalho necessário para o trabalhador “se pagar” chama-se, de maneira pouco criativa, de mais-valor. Esse trabalho a mais prestado, que ultrapassa o valor pelo qual o trabalhador vendeu a própria força de trabalho para o patrão, recebe o nome, igualmente inovador, de mais-trabalho. Assim, desse jeito aparentemente simples, gira a roda facínora do capitalismo.

E é nesse ponto que opera o milagre da terceirização. O “valor considerado necessário” para o trabalhador existir varia de acordo com os lugares no mundo e de acordo com o tempo na história. Se há uma classe de trabalhadores organizada, difícil de substituir, com sindicato forte, com poder de greve, esse valor é mais alto. Caso contrário, o valor diminui, “liberando” o funcionário para trabalhar mais horas dedicadas só ao lucro do patrão.

A terceirização – como veremos em detalhe no texto 4 – diminui justamente os direitos trabalhistas mínimos, reduzindo a possibilidade de associação e luta dos trabalhadores e facilitando a demissão. Reduz, mais diretamente, o salário – no exemplo da indústria de petróleo, em até 5x. E serve exatamente para isso. Inclusive, o STF, órgão máximo do Estado responsável por dar a palavra final acerca das leis e de nossa Constituição, quando perguntado sobre o tema, disse que os terceirizados não podem ter os mesmos direitos e os mesmos salários que outros funcionários, mesmo que façam exatamente a mesma coisa na empresa.

Há ainda alguns detalhes. É verdade que muitos não participam diretamente na produção das mercadorias e, portanto, na criação do mais-valor. Mas com a nova lei da terceirização, que permite que as atividades diretamente relacionadas com a produção possam ser terceirizadas também, isso vai mudando de figura.

E ainda assim, mesmo os trabalhadores que não operam as máquinas, contribuem para a geração de mais-valor, pois fazem parte dessa grande atividade combinada, são parte do trabalhador coletivo [4] que a empresa ou o Estado-empresa exploram. Ou por acaso há indústrias sem o chão limpo, sem controle de entrada, sem sistema de informática, sem banheiros e luz, sem paredes ou sem água nos bebedouros?

Em todas essas situações, o Estado é empresário. Luta pelo barateamento do preço da força de trabalho por meio da terceirização para explorar mais, em nada lembrando aquela fantasia proposta de que existiria para assegurar o bem de todos. Nesta ação empresarial do Estado, quando ele passa a defender a diminuição de direitos e salários dos trabalhadores, fica constrangedoramente óbvio que ele está servindo apenas para proteger imaginariamente os interesses de todos: ajoelha-se para servir somente às minorias endinheiradas do nosso país – verga-se diante da burguesia.

Falta analisar, portanto, se a situação é diferente quando a terceirização atinge o Estado na prestação de serviços públicos realmente universais: se quando, por meio de sua burocracia, ele diz servir ao público, o Estado serve à maioria da população ou às classes que o dominam. Mas isso é assunto para o próximo texto.

Referências
[1] MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 65.

[2] Basta comparar os salários normativos das categorias no DF com o salário mínimo necessário no Brasil.

[3] MARX, Karl. O Capital – Livro II, São Paulo: Boitempo, 2014, p. 195.

[4] MARX, Karl. O Capital – Livro I: Capítulo VI – Inédito, São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, pp. 71-72.

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