Em defesa da luta antimanicomial!
Para avançar na organização popular e estabelecer outras bases de sociabilidade
Fração Nacional de Saúde do PCB e Rede Modesto da Silveira
O 18 de Maio é um dia definido pelos movimentos sociais de usuários, familiares, trabalhadores, e outros atores sociais para reafirmar a importância da luta antimanicomial e enquanto militantes comunistas devemos compreender/aprofundar esse processo histórico de denúncia e luta pelas transformações da relação entre sociedade e loucura. Convocamos todos os nossos militantes – nas diversas regiões do país – a compor a construção dos atos públicos e reafirmar esta bandeira de luta.
Como apresentado no documento intitulado Manifesto de Bauru – publicado em 1987 pelo Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental – a exclusão e a discriminação, as violências institucionalizadas e o manicômio expressam uma outra faceta dos mecanismos de exploração e de produção capitalista que produzem sofrimento psíquico, excluem da sociedade as consequências desse modo de produção e por sua vez lucram com a chamada mercantilização da loucura, mais atualmente na chamada guerra às drogas.
As formas de cuidado asilar – que antes se constituíam através dos manicômios mas hoje também se apresentam com outras configurações como as Comunidades Terapêuticas – são expressão das estruturas sociais e apenas através da constituição do movimento popular e da classe trabalhadora organizada que conseguiremos efetivamente fazer frente a esta forma de opressão.
Percebemos que uma parte do movimento de saúde e de saúde mental, que assumiu a gestão das políticas públicas ao longo dos anos, foi se tornando cada vez mais setorizado e restrito à luta institucional, como se somente a instituição da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e a aprovação da Lei 10.216/2000 fossem suficientes para garantir a transformação concreta das relações sociais que produzem o sofrimento mental e da condições de vida e de cuidado das pessoas com sofrimento psíquico.
Defendemos a RAPS e o cuidado territorial e em liberdade, é claro! Estes foram avanços importantes durante o processo histórico de lutas, ameaçados no último período! No entanto, alertamos que a defesa exclusiva e de certa maneira abstrata da RAPS, como um fim em si mesma, não será suficiente!
Temos que avançar na crítica social mais ampla e entender como esta forma de cuidado está relacionada diretamente com a maneira que a sociedade burguesa funciona. Portanto, reafirmamos a urgência de avançar na leitura do cuidado em saúde mental considerando uma perspectiva classista e da totalidade dos processos sociais!
Nestes primeiros meses de governo Lula tem sido anunciada a manutenção de uma política de austeridade e continuidade do modelo neoliberal de gestão burguesa do Estado. Referente aos cuidados de saúde mental, enquanto a sucateada RAPS permanece sendo subfinanciada, cogita-se uma expansão ainda maior das comunidades terapêuticas do que já havia sido empregado pelo governo de Jair Bolsonaro.
Consideramos que as Comunidades Terapêuticas são a expressão final da deterioração da reforma psiquiátrica, constituindo a privatização com base na alienação, na laborterapia, e em ações de cunho moral e ideológicas vinculadas à bancada religiosa, se contrapõem ao cuidado integrado, à redução de danos, ao trabalho multidisciplinar no setor saúde e ao cuidado em liberdade.
As contradições do governo petista de conciliação de classe não são de agora, e podem ser exemplificadas desde 2010 com a Mudança na Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e Drogas do Ministério da Saúde no advento do primeiro do Governo Dilma Rousseff, em contexto de articulação política com segmentos neopentecostais e forte pressão por adoção de políticas higienistas de criminalização do consumo de drogas. A primeira menção às Comunidades Terapêuticas na RAPS se deu através da Portaria Nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011 e desde então, ainda sob os governos petistas e sob o ministério de Padilha, as comunidades terapêuticas foram progressivamente incorporadas nas políticas públicas da saúde mental.
Em 2015, em contexto de crise política do Governo Dilma, visando a própria sustentação, nomeia-se para titular do Ministério da Saúde Marcelo Castro, que designa Valencius Wurch Duarte Filho para Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e Drogas, representando a interrupção de sucessão de quadros da Reforma Psiquiátrica nesta função. Segundo levantamento do Conselho Federal de Psicologia de 2018 ainda há um enorme número de instituições manicomiais com práticas que podem ser consideradas como tortura, maus tratos e inúmeras outras formas de violência.
A partir de 2016 há intensificação da contraofensiva dos setores que se opõem à Reforma Psiquiátrica, em contexto de avanço da extrema direita! Temos que fortalecer a crítica e o combate a estes retrocessos ao mesmo tempo em que temos que avançar na leitura de que este processo já estava em curso anteriormente. É tarefa neste momento reafirmar que apenas com mudanças estruturais que efetivamente conseguiremos estabelecer uma forma de cuidado em liberdade.
É preciso levantarmos nossos horizontes também para além de uma reformulação dos serviços de saúde e de uma reforma setorial. Não adianta discutirmos sobre as políticas de álcool e drogas no âmbito da saúde mental sem avançarmos na luta contra a política de “guerra às drogas” levada a cabo no Brasil nas últimas décadas. Não dá para desconsiderar que, enquanto vivíamos o processo de desinstitucionalização dos manicômios, vivíamos simultaneamente um aumento significativo da população carcerária e da violência policial ceifando a vida de milhares de pobres e negros.
As políticas higienistas mantiveram-se presentes e se expandiram nas últimas décadas para além dos serviços de saúde e do cuidado asilar, e mesmo os manicômios se modernizaram neste último período. É necessário fazermos uma análise da totalidade dos processos sociais, pois de certa maneira podemos dizer que os “indesejados” que antes eram aprisionados nos manicômios mantiveram-se aprisionados ou assassinados em penitenciárias (num nível nunca antes visto), nas comunidades terapêuticas, nas políticas higienistas e na violência policial.
A saúde é determinada socialmente e nossa perspectiva de enfrentamento a essa pauta passa necessariamente por colocar em xeque a sociedade do capital. Compreendemos que o objetivo das políticas de saúde mental seria o de reintegrar os indivíduos à sociedade simplesmente, mas temos que ir para além disto, temos que discutir qual o tipo de sociedade que queremos. A sociedade não mudou para reintegrá-los, ao contrário, continua sendo uma sociedade excludente e perversamente desigual. Logo, não é à toa que muitos dos que eram aprisionados nos manicômios sejam hoje aprisionados nas situações de miséria, de pauperismo, de situação de rua.
O manicômio é a expressão de uma estrutura presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. Retomamos aqui um trecho do Manifesto de Bauru que afirma: “Lutar pelos direitos dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida”. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres, como caracteriza o documento, faz parte deste modo de reprodução social.
A forma de integração e de avaliação da funcionalidade e efetividade das políticas públicas é medida pelo trabalho e pela integração ao processo produtivo, ao processo de produção capitalista. Logo, não acreditamos que seja suficiente discutir e reformular políticas de saúde (não só no âmbito da saúde mental, mas da produção de saúde como um todo) se o objetivo for continuar sendo jogar mais gente no imenso moedor de carne que é o capital. Que neste dia da Luta Antimanicomial possamos nos posicionar contra esta política genocida e de encarceramento, reafirmando a luta por uma sociedade socialista.
Saúde não se vende, loucura não se prende!
Em defesa do SUS 100% estatal e pelo cuidado em liberdade!
Por uma sociedade sem manicômios!