O dia seguinte

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Por Mauro Luis Iasi via Blog da Boitempo
[IMAGEM: BUDA MENDES/GETTY IMAGES]

Todos nós, eu inclusive, estávamos tão preocupados com um golpe, talvez por um viés racional, que podemos ter nos descuidado em analisar um dos desfechos possíveis desta aventura que as classes dominantes e aqueles que apostaram na conciliação de classes nos meteram. Era previsível que neste país nem a barbárie explodisse de forma organizada.

“Dona Morte, enrugada,
Passeia pelos salgueirais
Com seu absurdo cortejo
De ilusões remotas
[…]
A lua comprou
Pinturas de Morte.
Nesta noite turva
Está a lua louca!”

Federico García Lorca

Tudo indica que o miliciano que ocupa a cadeira presidencial vai perder as eleições. Pode ser no primeiro turno ou no segundo. Seu comprovado desprezo pelas regras da disputa nos marcos da institucionalidade do Estado burguês não se relativizarão em nenhum dos dois casos uma vez que o que está em jogo são as ações jurídicas a serem desfechadas contra a figura do mal e suas crias diante da possibilidade real de encarceramento. O que, então, ele pode fazer?

Se lembrarmos da dinâmica de seu desastroso mandato veremos que o miliciano tem um modus operandi, isto é, ele tensiona até o limite, recua para depois fustigar novamente, sempre em seu próprio interesse, muitas vezes rifando aliados e apoiadores. Temos analisado com insistência que, apesar da instabilidade que tal procedimento cria, a permanência da trágica figura ainda no governo, além de vivo na disputa eleitoral, deve-se a certos recursos de poder que não podem ser ignorados. O primeiro deles é a conivência de um setor militar que participou ativamente de seu governo e desenvolveu uma espécie de simbiose de interesses que une militares e o bolsonarismo. Os militares assumiram claramente o papel de avalistas do inominável e chancelaram acordos que garantiram a sobrevivência de seu governo.

O segundo é a chantagem da ruptura, a ameaça que várias vezes foi muito além da retórica colocando em marcha sua base social e aparatos armados (milícias, corporações policiais, etc.) contra as instituições da República. A isso se soma o apoio declarado das igrejas S/A, organizações de estelionatários disfarçadas de instituições religiosas que manipulam e controlam bases sociais significativas e recursos conhecidos.

O terceiro é o fato de que o bloco dominante, o grande capital monopolista, está dividido e uma parte empenha um apoio ao aspirante de fascista seja pelos serviços prestados na implementação da pauta do grande capital, seja pelo conhecido desprezo pelos trabalhadores e pobres, seja por uma convicção política anticomunista ou por qualquer forma remotamente assemelhada com uma justiça social.

O problema do inominável é que estes recursos, de certa forma, tendem a se esvair com a possibilidade real de derrota. Pastores do dinheiro alheio já preparam o desembarque e os militares já preparam a continuidade de sua tutela, negociando o secundário para garantir o essencial. O grande capital não tem amigos, tem interesses e joga claramente com várias alternativas. Hoje, preocupa-se muito mais em definir os limites de uma volta de Lula ao governo do que embarcar em aventuras de extrema-direita. Não por princípios, o capital abençoou a barbárie da ditadura e nem hesitaria em se aliar ao demônio se este garantir suas taxas de lucro e condições de reprodução. Como temos afirmado, o grande capital precisa de uma certa estabilidade política, um grau de legitimidade para garantir a exploração da classe trabalhadora e a continuidade da escravidão capitalista – e o fascista de plantão não consegue garantir isso.

As chamadas instituições da República, o poder judiciário e o Parlamento, farão o que lhes mandarem fazer. Da mesma forma que sancionaram vergonhosamente o golpe de 2016, assim como abençoaram antes a ditadura de 1964, não terão nenhum prurido em encontrar uma fórmula jurídica ou legislativa de justificar uma ruptura ou garantir a democracia de acordo com a vontade de seus patrões. Hoje são uma linha de defesa contra a instabilidade do ser abjeto que eles mesmos ajudaram a criar.

Tudo isso parece fechar o cerco e selar o destino do miliciano e sua quadrilha, mas devemos ser prudentes. Há um aspecto que explica a prudência da ordem burguesa em extirpar o tumor maligno de seu corpo doente. Mesmo com a potencial perda de poder e as alianças se desfazendo, persiste o receio de um descontrole das bases bolsonaristas alimentadas persistentemente com doses massivas de ódio, intransigência, preconceitos e irracionalismo.

O tipo de liderança negativa do fascista que nos coube tem que ser melhor compreendido. Não se trata de uma liderança orgânica que estruturou uma alternativa de extrema-direita como classicamente conhecemos. Não há um partido fascista, uma ideologia fascista, mediações institucionais através das quais o Estado burguês tenha assumido a forma de um Estado fascista. Da mesma forma, não há uma organicidade de classe, seja no ressentimento de setores médios, seja na captura de segmentos de massa e do interesse do grande capital monopolista e financeiro.

A crise do capitalismo produziu, desta vez, um sentimento difuso de ressentimento, insatisfação e irracionalismo que se funde na relação com a figura de seu líder. Um mecanismo conhecido na psicanálise de projeção do ideal do ego em uma identificação vertical que produz uma identidade horizontal naqueles que nele se projetam, tal como analisado por Freud em Psicologia das massas e análise do eu (1921). Isto nos esclarece a razão pela qual certas atitudes vistas como descabidas e absurdas podem responder a uma outra racionalidade não visível, como por exemplo, o autoelogio da virilidade, a agressividade contra as instituições que estão ali para garantir a ordem que ele se empenha em defender, a insistência vomitiva em afirmar preconceitos contra homossexuais, negros, mulheres, comunistas, petistas, padres verdadeiramente cristãos e outros.

Não são atos que diretamente visam dividendos eleitorais. Por exemplo, quando Lula cai de amores pelo ladrão de merendas do Alckmin, busca o apoio deste para neutralizar a resistência do grande capital que o preferiu como alternativa em 2018; ou quando acena para a comunidade evangélica para deslocar um segmento importante do eleitorado da órbita de seu adversário. Mas, quando o imbrochável representante das forças do mal se expressa, ele está sendo honesto consigo mesmo e sua alma ressequida pelo ódio e pelo ressentimento, sua doentia sexualidade e sua fragilidade de uma masculinidade tóxica e ameaçada por seus instintos inconfessáveis. Está vomitando o que comeu durante os anos de guerra ideológica na qual os interesses do capital precisaram se disfarçar como uma missão militar de salvação de uma pátria ameaçada pelo monstro do comunismo que iria devorar a nação, a propriedade, a livre iniciativa, a fé religiosa, a família e a masculinidade de machos alfas libertando fêmeas ameaçadoras que devorariam seus testículos e pintariam com o sangue de suas menstruações uma bandeira vermelha de uma sociedade mundial governada por veados e padres casados.

O problema é que não foi só ele quem comeu deste tenebroso jantar. Os valores que aqui se reúnem não são fruto simplesmente da manipulação, mas sim a expressão ideal de uma sociedade capitalista em crise que, não podendo projetar em si mesma a catástrofe que gerou, precisa deslocar para algo fora dela, ainda que seja um inimigo imaginário.

O ressentimento de cada um que não encontra lugar em um sistema que só funciona para pouquíssimos seres privilegiados é apenas o ressentimento de cada um, mas em certas condições ele pode produzir, pela identificação com o líder ressentido, uma força coletiva que vai muito além da soma dos ressentimentos. Muitas vezes na história essa força foi capturada por interesses das classes dominantes e posta a seu serviço, como no nazifascismo, colocando em risco a própria humanidade. O monstro, uma vez liberto, colocou em risco os interesses de longo prazo da ordem capitalista que, por isso, passou a combater o monstro que ajudou a criar.

No nosso caso, diante do interesse claro de um segmento hegemônico do grande capital monopolista e da dinâmica eleitoral e política em curso, devemos estar preparados para o que virá da dissolução do ponto no qual este enorme e irracional ressentimento encontrou para se unificar.

Não se trata do que acontecerá com a tosca besta fascista e sua familícia, uma vez que, ao que parece, ele já começa a ensaiar o movimento de recuo, talvez negociando uma espécie de anistia ou compromisso que possa evitar sua prisão, linha que pode fazer parte do amplo pacto ao qual a candidatura de Lula já demonstrou estar comprometida em nome da pacificação do país.

O que nos perguntamos é como reagirá a massa de extrema direita privada de seu líder. É neste ponto que o caráter singular da liderança negativa do atual presidente se manifesta. Por não ser um movimento político orgânico, não nos parece que o fascista se “recolha” como afirmou para dirigir uma oposição de extrema-direita ao governo de conciliação de classes. Se, enquanto governou, o inominável não agiu na ordem institucional, o que dirá passando à oposição?

Ele não logrou unificar a horda que o segue por afirmar um interesse coletivo, mas por explicitamente buscar seu próprio interesse pessoal, como esta ficção da sociedade burguesa que é o indivíduo. Por isso, a forma geral em que esta ideologia se manifestou só podia ser uma coleção de abstrações como Pátria, Deus, Família e outras quimeras de forma que seus adeptos ficam liberados na existência real de seus seres individuais para serem entreguistas, amorais e perversos sexuais.

Na ausência do líder, porque foi preso ou negociou sua sobrevivência, abandonando seu rebanho de fiéis, o caráter não orgânico da base social pode vir a explodir em ações desesperadas de indivíduos. Já estamos vendo o germe deste cenário: o assassinato de um petista em sua festa de aniversário, um agricultor bolsonarista assassinando seu colega de trabalho e tentando decapitá-lo, um produtor rural lançando sua caminhonete 4×4 (expressão de sua masculinidade problemática) na traseira do carro de uma vereadora, talvez não como uma ação propriamente coletiva, nem sequer orquestrada, mas um tsunami de atos individuais que encontram forma coletiva na barbárie sob os olhos impotentes de instituições falidas e meios de comunicação lamentando a polarização entre assassinos e assassinados, enquanto se costura um pacto que devolva ao capital as condições de continuar explorando o corpo de uma sociedade fraturada.

Todos nós, eu inclusive, estávamos tão preocupados com um golpe, talvez por um viés racional, que podemos ter nos descuidado em analisar um dos desfechos possíveis desta aventura que as classes dominantes e aqueles que apostaram na conciliação de classes nos meteram. Era previsível que neste país nem a barbárie explodisse de forma organizada.

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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.

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