Ògún na luta de classes do Brasil
Por Guilherme Romão – militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira
“Eu o saúdo
Que eu não depare com sua ira
Eu saúdo Ògún
Eu o saúdo, aquele que tem água em casa, mas prefere banho de sangue
Que o sangue caia no chão para que haja paz e tranqüilidade”
(Trecho de um Oriki – poema de louvor – de Ògún)
No século XVIII, com a chegada dos primeiros iorubás, na condição de escravizados, advindos do território que hoje é Benin e Nigéria, na África, chegou também Ògún. Num tumbeiro o Orixá agricultor, ferreiro e guerreiro – que segundo a tradição é irmão de Exú e de Oxóssi – foi o responsável por abrir a estrada para os demais Orixás do Orum (mundo espiritual) ao Aiyê (mundo físico) e a ensinar à humanidade o domínio do fogo e do ferro, como material primordial na forja de ferramentas para o desenvolvimento tecnológico de seu trabalho.
Ògún teve lentamente sua característica de guerreiro elevada em detrimento das demais, devido às necessidades materiais imediatas de seus fiéis. Pelos itans (parábolas tradicionais) Ògún é o orixá que, quando tomado pela ira, se torna o mais brutal e implacável guerreiro, aquele que tem o título de Ologun (senhor da guerra), e que mesmo tendo água em casa prefere se banhar com o sangue dos inimigos. Tal exaltação hoje, por muitas vezes, ignora que a motivação não é a de resiliência perante a exploração. Ògún é a personificação da guerra como última e mais radical forma de defesa do seu território perante a dominação estrangeira. É a guerra de resistência a fim de preservar seus recursos e a autonomia para desenvolver suas forças produtivas através da tecnologia.
Frantz Fanon certa vez disse que o colonialismo não é um corpo dotado de razão e sim a violência em seu estado puro e que só se submete perante uma violência ainda maior por parte dos condenados da terra. Para ilustrar isso tem uma cantiga de Ògún, da tradição de Ketu que diz:
“Seu poder nos protege nas lutas, Ògún Onirè
Pedimos que use as suas armas para vencer nossas lutas
Ògún Akoro pedimos que nos dê forças e nos ajude a vencer nossas lutas”
Em território brasileiro e sob a carga histórica de luta organizada em quilombos, a figura de Ògún além de virar o símbolo de proteção para as casas das comunidades terreiros – através da folha de mariô (folha de palmeira) no batente das portas, como quem diz “Ògún protege essa casa e comunidade tanto no mundo físico quanto espiritual” – para os iorubás, agora sob o açoite do modo de produção colonial e em território estrangeiro, passa a ser também a liderança para liberdade almejada, tendo em vista que a urgência era a de insubordinação e sede de sangue do seus exploradores e opressores. A situação concreta impôs aos negros a necessidade da luta e ela foi acatada, tanto antes quanto depois da chegada do orixá ao Brasil.
“Ògún, dono de dois facões,
Usou um deles para preparar a horta
e o outro para abrir caminho.
No dia em que Ògún vinha da montanha
ao invés de roupa usou fogo para se cobrir
E vestiu roupa de sangue.”
(Trecho de um Oriki de Ògún)
Iyá Akalá, Iyá Adetá e Iyá Nassô, nomes que foram preservados pela tradição oral são as responsáveis pela base do culto aos orixás, através do primeiro terreiro de candomblé do Brasil, a Casa Branca do Engenho Velho (Ilê Axé Iya Nassô Oká), que firmou as suas raízes na Bahia. Terreiro esse que anos mais tarde teria como um de seus filhos Carlos Marighella. O espaço terreiro foi, e é para negros e negras, historicamente, um espaço religioso, político e de planejamento tático-estratégico. E Ògún funcionou nesses locais como dínamo e símbolo da luta para subverter a ordem social vigente.
A organização preta sempre infligiu medo ao modo de produção colonial. Palmares e a Revolução Haitiana – que inclusive teve seu pontapé inicial num ritual de Vodu, onde dentre outras divindades o orixá guerreiro também foi exaltado – fez com que, tanto a igreja católica com o sincretismo e a demonização, quanto a polícia criminalizando os cultos de matriz africana, não fossem suficientes para subjugar culturalmente e nem para apagar o caráter belicoso de Ògún da mente e dos coração de todos aqueles, pretos ou não, que não aceitavam dobrar os joelhos e evitar o bom combate.
Haja visto que, sob o sincretismo, Ògún vira São Jorge guerreiro e que hoje é símbolo e o santo de simpatizantes de religiões negras, umbandistas e todos aqueles que de, certa forma, se relacionam com a marginalidade imposta, é impressionante como, tanto Ògún quanto São Jorge estão presentes no cotidiano do trabalhador brasileiro. Seja nos medalhões nos pescoços periféricos, seja em imagens na prateleira mais alta de um bar ou seja no assentamento na porta e ao lado de seu irmão Exú, feito do mais puro ferro, onde quem passa deixa seu quinhão.
Ògún, de tão próximo aos humanos que é, como um Prometeu que não foi punido por seu amor a humanidade, se recusa a viver no mais alto patamar das divindades e prefere, assim como Exú, caminhar entre nós e está presente em cada movimento mecânico, no trabalho cotidiano e, principalmente, nos atos de resistência. É o ferro que moldado prefere ser valorizado por seu auxílio à vida, mas é útil na violência, caso necessário. Exaltado por Tincoãs, Alcione, Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Clara Nunes e Racionais MCs, Ògún é imortal na cultura marginal brasileira. E é exatamente onde ele prefere estar: na roda de samba, comendo feijoada em abril.
Assim, em um momento de radicalização da luta de classes no Brasil, devemos lembrar que luta significa agressão mútua e ninguém melhor que Ògún para nos ensinar que a luta é necessária para a resistência, para a construção da estrada do progresso de nossas vidas e para a obtenção da nossa verdadeira emancipação e para que um dia possamos usar as ferramentas tecnológicas para nossos interesses.
Como sua própria saudação diz, ÒGÚN YÈ! (ÒGÚN VIVE!)
Pela autodeterminação dos povos colonizados!
Pelo poder popular!