Não à individualização do suicídio
Por Bruno Bianchi, psicólogo e militante do PCB e da UNIDADE CLASSISTA em Foz do Iguaçu/PR
Há anos, a campanha do Setembro Amarelo advoga em favor da “conscientização” sobre o suicídio no Brasil, organizada principalmente pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Em 2022, o lema da campanha é “A Vida é a Melhor Escolha”, porém, em nenhum momento a campanha coloca o debate sobre as condições de vida da maioria da população brasileira.
Pelo contrário, quando aponta sobre os fatores de risco, traz como centrais o histórico prévio de tentativas (como um comportamento em si mesmo, descontextualizado) e a existência de uma “doença mental muitas vezes não diagnosticada”. O que a campanha não faz é compreender a totalidade do contexto por trás dessas tentativas prévias e desse diagnóstico. Como é comum na psiquiatria, esses elementos são isolados em si mesmos e individualizados.
Além disso, o salto (i)lógico de associar casos de suicídio a “doenças mentais não diagnosticadas” serve apenas para eximir a responsabilidade social por conta do sofrimento produzido nos sujeitos, vinculando o sofrimento a fatores subjetivos isolados das suas determinações concretas. A “doença mental” é atribuída após-ato e justificada pelo próprio ato, sem nenhuma investigação profunda sobre as motivações e o contexto de vida do sujeito.
Da mesma forma, as intervenções propostas por essas entidades mantêm-se no nível individual: o atendimento ambulatorial, a medicalização, a internação e o isolamento. Intervenções que se mantêm quase sempre no âmbito da psiquiatria, não se referindo à interdisciplinaridade dos serviços de saúde mental. Na própria campanha se coloca que “a maioria dos casos poderia ser evitada se os pacientes tivessem acesso ao tratamento psiquiátrico e a informações de qualidade”, ignorando outros determinantes do adoecimento e que podem levar a uma tentativa de suicídio.
No Paraná, vemos um aumento crescente de casos de suicídio ano após ano, batendo recordes históricos desde 2018. É também um estado com uma taxa superior à média nacional. Nos últimos anos, foram mais de 900 óbitos por suicídio ao ano, o que equivale a praticamente um caso a cada 10 horas.
O aumento de casos, no entanto, não se restringe ao Paraná: nacionalmente, vemos um aumento progressivo de casos de suicídio desde 2017. Ainda que não dê para fazer uma relação de causalidade direta, é impossível ignorar fatores como sucateamento de serviços de saúde mental (promovidos por notas técnicas, além do teto de gastos, o corte recente da farmácia popular) e piora das condições de vida, da possibilidade de a classe adquirir itens básicos de alimentação, etc. , que podem incidir sobre o aumento do número de casos e de tentativas.
Também é relevante que o suicídio seja estatisticamente mais presente entre jovens em processo de profissionalização e entre idosos, ou seja, entre uma população que está se inserindo no mercado de trabalho (não podendo ser ignoradas as condições desfavoráveis para essa inserção, como a falta de empregos, a precarização das condições de trabalho) e entre uma população com diversas particularidades de saúde física, de demandas cotidianas e com recursos limitados (reforma da previdência, precarização do SUS, falta de medicamentos essenciais provocados, por exemplo, pelos cortes na Farmácia Popular).
Exemplifiquemos com apenas um determinante, pouco considerando pela Campanha. Considerando-se a situação do Paraná (mas que pode ser expandida para diferentes regiões do Brasil), deve-se destacar o papel que ocupa o Agronegócio e seu impacto sobre a classe trabalhadora. O Paraná, por exemplo, encontra-se entre os maiores produtores do agronegócio do país[1], geralmente disputando com estados como Rio Grande do Sul[2] e Mato Grosso. Não por acaso, são regiões com altos índices de suicídio, principalmente na zona rural, com aumento significativo dos casos concomitante ao aumento do uso de agrotóxicos. No Paraná, nos últimos seis anos, o número de casos praticamente dobrou[3].
Claro que não fazemos aqui uma relação direta entre o uso de agrotóxicos e o aumento expressivo de suicídios. Destacamos apenas um dos elementos de intensificação da produção e precarização do trabalho inerentes ao modelo capitalista, que afeta diretamente a saúde física e mental da classe trabalhadora. Estes, assim como outros determinantes essenciais, são ignorados completamente pela campanha do Setembro Amarelo, que acaba por moralizar e individualizar o ato suicida ao invés de considerá-lo como fenômeno social complexo e multifacetado.
Afinal, de que vale a afirmação da importância da “conscientização da importância que a vida tem” quando se considera essa vida apenas em abstrato? De que vale a afirmação de que “é importante falar sobre o assunto” para que as pessoas “entendam que a vida sempre vai ser a melhor escolha”, como se fosse uma simples questão de escolha moral.
Por último, vale apontar o limite da própria política de campanha. Assume-se que, desde o início da Campanha do Setembro Amarelo, em 2014, houve um impacto positivo desta sobre a conscientização do suicídio, quiçá uma diminuição das ocorrências ou uma melhora da opinião pública (diminuição da estigmatização, por exemplo). No entanto, os números de casos apenas aumentaram desde então, com possível subnotificação devido a estigmas religiosos, culturais ou mesmo econômicos. Em diversos estudos[4], notou-se não só a ausência de mudanças significativas desde o surgimento da Campanha Setembro Amarelo, mas possivelmente um efeito oposto ao desejado.
Falar responsavelmente de prevenção ao suicídio e da vida como a “melhor escolha” significa debater concretamente as condições de vida da população brasileira, que tem passado por situações de miserabilidade e insegurança crescentes. É preciso apontar os efeitos da crise econômica produzida pelo capital sobre os sujeitos e sobre os serviços que deveriam ampará-los. Acesso à tratamento e informação – que não são neutros ou imparciais – é apenas um formalismo quando não vamos às causas reais.
Quando se debate o acesso a um tratamento adequado, deveria ser ponto chave denunciar os retrocessos e o desmonte da saúde mental pública, da Rede de Atenção Psicossocial, de toda a rede substitutiva que tem sido alvo de políticas reacionárias – muitas com o apoio das entidades que organizam o Setembro Amarelo. Sobre isso, nenhuma palavra das entidades responsáveis pela campanha. Ou melhor, uma defesa explícita desse desmonte. Exemplar, nesse sentido, é o documento Considerações à Nota Técnica 11/2019 do Ministério da Saúde sobre a nova política nacional de saúde mental e drogas[5], assinada pela ABP, CFM e outras entidades. Neste, as entidades apontam alguns dos “avanços” da nova política de saúde, como a inclusão do Hospital Psiquiátrico na RAPS e desconsiderando o caráter substitutivo da RAPS aos manicômios, “não fomentando mais fechamento de unidades de qualquer natureza”. Também podemos citar, entre outros posicionamentos retrógrados, a defesa das Comunidades Terapêuticas e o uso da Eletroconvulsoterapia.
Dado o histórico recente destas entidades, devemos retomar a afirmação feita pela Campanha: “a maioria dos casos poderia ser evitada se os pacientes tivessem acesso ao tratamento psiquiátrico e informações de qualidade”. Qual é o tratamento psiquiátrico e informação de qualidade? É aquele que desconsidera o desmonte do SUS, o retorno de práticas excludentes e desumanas? Aquele que coloca o aumento dos suicídios no Brasil na última década na conta de aumento de diagnósticos pura e simplesmente, desconsiderando a complexidade do adoecimento psíquico e das precárias condições de trabalho, alimentação e vida da população?
Considerando a realidade do próprio SUS, a situação é ainda mais tenebrosa quando consideramos a escassez de profissionais de saúde mental que compõem a RAPS, tanto na Atenção Primária quanto na Secundária e Terciária. Profissionais de Psicologia, por exemplo, são uma raridade e a fila de espera para um atendimento psicológico (e poderíamos tecer críticas sérias à forma e aos limites do trabalho da psicologia na Atenção Primária, considerando o modelo produtivista cada vez mais presente no SUS) pode impedir que alguém que necessite de um acolhimento e acompanhamento se veja desamparado pela rede pública de saúde mental.
Por isso, são necessárias medidas urgentes que garantam a existência material da população, a curto prazo, e a reestruturação e fortalecimento da RAPS, a médio e longo prazo. Entende-se que os serviços existentes, ainda que fundamentais, são insuficientes para acolher as demandas psicossociais da população. É necessária a construção de novos equipamentos que tenham como norteadores ético-políticos o cuidado em liberdade, territorializado, com atendimento humanizado e que respeite as particularidades dos sujeitos, tal como preconizam as diretrizes e princípios do SUS.
Ora, não somos contra a conscientização, o debate sem preconceitos em relação a um tema tão importante como o suicídio. Mas defendemos que este deva ser realizado de forma coerente com a verdadeira valorização da vida, considerando a realidade da classe trabalhadora e nosso compromisso com a superação das relações de produção capitalista, que ampliam a exploração e opressão da população.
Se “a vida é a melhor escolha”, então devemos escolher a vida que queremos viver. Não uma vida de miserabilidade, de exploração, mas uma vida para que possamos nos desenvolver plenamente, dispor de tempo livre para lazer e cultura, trabalhar de forma digna. Para além de um discurso moral, o debate sobre suicídio deve ser um debate sobre a necessidade de uma vida plena para todos.
[1] Disponível em: https://www.agrichem.com.br/blog/os-detalhes-do-agronegocio-no-parana
[2] No caso do RS, ver, por exemplo, o impacto sobre os produtores de tabaco. Disponível em: https://apublica.org/2022/01/depressao-ansiedade-e-suicidios-a-realidade-dos-que-plantam-tabaco-no-brasil/
[3] Disponível em: https://www.bemparana.com.br/noticias/parana/numero-de-suicidios-registrados-no-parana-praticamente-dobra-em-seis-anos/
[4] Ver, por exemplo, OLIVEIRA, M. E., et. al, Série temporal do suicídio no Brasil: o que mudou após o Setembro Amarelo, e LIMA, D. P & BRANDÃO, C. B., 5 anos de Campanha Setembro Amarelo: Estamos conseguindo prevenir suicídios?
[5] Disponível em: http://abpbrasil.websiteseguro.com/portal/wp-content/upload/2019/05/02-05_Considerações_ABP_CFM_ABIPD_FENAM_FENAEMD.pdf