O rap e a revolução: entrevista com Don L

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Por Pedro Diniz via Revista O Ipê

“Lutar do lado errado é já perder a guerra
Do lado certo a gente vence mesmo quando perde
E quando vence, vence duas vezes” Don L

No dia 6 de agosto de 2022, o famoso coro do Partidão de “Lutar, Criar, Poder Popular!” foi o que ecoou no eixo cultural Ibero-americano pela noite de Brasília. Endossado por Don L no palco, o público bradava as palavras de ordem, criando uma atmosfera inconformada e esperançosa em um show onde a busca pelo poder popular era o fio condutor da crítica e da rima.

Era uma atmosfera criada por uma paixão quase aristotélica, movendo o público de uma situação de inércia para a ação: a ação do questionamento e da poesia. As vozes uníssonas cantando que temos “pânico de nada” pois “eles sangram como eu sangro”; os rostos que por ação dos canhões de luz e fluir do suor no rosto iam espocando iluminados em meio à penumbra da noite; o movimento dos corpos dançando em meio ao pó da terra seca do DF – eram todos elementos que contribuíam para a aura de paixão revolucionária que crescia ali.

Foi com esse cenário vívido em mente, as vozes já desgastadas da catarse musical que havíamos passado e a ansiedade pelo o que viria, que a revista O Ipê teve o prazer de entrevistar Don L.

RI: Qual o papel do rap na vindoura revolução brasileira?
Don L: Acho que o rap, assim como outros estilos de música popular brasileira, é uma contribuição cultural para que a gente possa se ver como um povo, um coletivo em luta pela revolução e um país com poder popular onde um povo tenha autonomia. Mas acho que não só o rap, mas também outros estilos de música têm esse papel de ser uma construção cultural nossa como povo.

RI: Então tocará boombap ao fundo da revolução?
Don L: ‘Pode pá’! Muito boombap, muito samba, muito trap… O Brasil é muito rico culturalmente. De uma ponta a outra do país nós temos muitos ritmos e essa diversidade estará toda presente, eu tenho certeza disso.

RI: Já entrando na seara do RPA2 [Roteiro Pra Aïnouz, vol.2, último disco de estúdio de Don L]: um ponto que a gente percebe é que o álbum tem uma cronologia histórica, começando com a exploração em Vila Rica chegando até a Volta da Vitória. E isso nos traz uma sensação de esperança, pois é um álbum que foge do pessimismo de uma guerrilha que perde, mas fala sobre a vitória da revolução. E você? Qual o seu otimismo quanto à revolução brasileira?
Don L: Eu acho que é inevitável, é a revolução ou é o fim. É o capitalismo ou barbárie mesmo, porque a gente não tem opção. E essa parada de colocar o passado e o futuro [no álbum] dá uma distanciada melhor e você consegue ver o seu tempo histórico com mais clareza. Porque às vezes parece que já passou muito tempo ou que a gente já perdeu por estar em um ponto muito distante das nossas últimas vitórias. Mas se você puder colocar um distanciamento maior, isso tudo pode fazer parte de um pequeno momento da nossa história em que a gente teve dificuldades, mas que enfim fomos vitoriosos.

RI: E um ponto que é muito candente em todo mundo que se percebe enquanto comunista são as chaves de virada da sua radicalização. Qual foi a chave de virada da radicalização do Don L?
Don L: Eu tive vários momentos de radicalização na minha vida pessoal. Mas a compreensão política vem aos poucos. Então eu acho que eu não tive um “momento X”, tá ligado? Foi uma construção lenta que veio com a minha vivência pessoal. E você viver nesse país da maneira como ele é, com esse nível de violência, e tentar pensar uma solução e um futuro para o país torna a radicalização inevitável. Ela vem com o estudo, vem com você conseguindo entender a história, de onde vem os nossos problemas e onde você se encontra agora. E comigo foi muito isso: foi por causa de uma busca e de não ver conciliações possíveis. Precisamos de grandes rupturas para poder mudar. Porque a gente está em uma situação, assim como sempre estivemos, que é muito violenta.

RI: Um ponto marcante no teu álbum, seja em sua parte lírica ou no uso dos visualizers, é que seu conceito é perpassado pela interseção das artes. Na própria letra, é possível ver uma narrativa cênica se desenrolando, visualizar as cenas descritas. Além disso, o álbum se chama Roteiro para Aïnouz, o que expõe o vínculo de seu contexto com o diretor Karim Aïnouz. Como você faz essa miscelânea de artes na sua composição?
Don L: Eu sempre tive essa parada de ter uma rima visual, as pessoas já me diziam isso antes de eu pensar a minha rima assim. E eu acho que a forma como eu componho já é assim naturalmente, porque sempre que eu estou compondo eu vejo as imagens, isso acaba se materializando na música e as pessoas sentem. Pois eu sempre fico pensando como um filme e foi por aí que eu decidi fazer uma trilogia, porque eu já componho desse jeito.

E sobre essa questão da mistura de artes e as diversas influências: tem a ver com a minha ambição artística de querer dialogar com outros tipos de arte, com artes visuais para trazer uma imersão, uma experiência completa. E eu acho que o diálogo entre as artes é meio tabu, pois as pessoas dialogam pouco a música com as artes visuais, com a videoarte. Pois a gente tem isso feito muito mediado pelo mercado, ou é uma coisa hollywoodiana, ou algo muito cult destinado a uma pequena parcela da população que tenha acesso a uma ‘alta cultura’.

Então eu tento fazer algo que dialoga com uma certa tradição cultural brasileira – que é popular, mas às vezes é elitizada – trazendo para uma acessibilidade popular com imersão, trazendo para as pessoas que curtem rap – que é uma música extremamente popular – um acesso para uma outra coisa, um ‘bagulho’ mais requintado de arte. Pois isso também é uma forma de exclusão, separando as artes.

RI: Para finalizar: qual o recado que você pode deixar para a garotada do meio do rap que é bombardeada diuturnamente com ideologia burguesa – por vezes de dentro da própria cena de rap – sempre ensinando que o objetivo é a acumulação de capital?
Don L: Acho que devemos observar a realidade. Observar as coisas que estão acontecendo à nossa volta, pois essa é a maior escola. Ser sagaz em tentar colocar os discursos que a gente recebe na sua imaginação para ver se faz sentido, porque se você observar bem, você verá que não faz muito sentido.

A gente precisa sair desse estado de sono e despertar um pouco para um estado de mais consciência da realidade, mas lidando com as nossas contradições sempre. Pois somos seres que vivemos em um tempo histórico e vivemos dentro do capitalismo, e temos as nossas contradições dentro desse sistema que temos que aprender a lidar. Mas sempre sem perder o horizonte de uma mudança concreta. E a luta é coletiva.

A gente é sempre bombardeado com essa história do indivíduo, que a mudança está nas costas do indivíduo, e eu não quero fazer isso. Não quero dar um recado para o moleque que tá começando o rap, como se a responsa fosse toda dele. Porque senão fica aquele bagulho: “vou na minha quebrada distribuir cesta básica”. E isso não vai mudar a realidade, entendeu? Eu acho que tá mais para a gente se ver como parte de um coletivo e enquanto coletivo a gente pensar no que a gente pode fazer para uma mudança efetiva.

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