Como o bolsonarismo manipula o senso comum?

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Por G. Lessa

O pensamento cotidiano, conhecido como senso comum, é parte insuperável da subjetividade das pessoas e se relaciona intimamente com as outras formas de compreender o mundo: a religião, a ciência, a filosofia e a arte. O fascismo, por ser necessariamente irracionalista, faz a apologia do senso comum como tipo superior de representação da realidade social. Essa característica determina a hostilidade fascista contra o meio artístico erudito ou popular, a Universidade, as igrejas progressistas e outros pólos de produção cultural. Portanto, para fazermos uma crítica teórica e prática da estratégia de propaganda bolsonarismo em geral e, em particular, na campanha do segundo turno das eleições de 2022, é fértil refletirmos mais detidamente sobre o papel do pensamento comum na disputa por hegemonia e direção política.

Senso comum
O senso comum teria as seguintes características, segundo G. Lukács (Estética, Barcelona: Grijalbo, 1966): 1) materialismo espontâneo e pragmatismo diante dos fatos imediatos 2) foco exagerado nas relações de causa e efeito aparentes, as únicas que a pessoa leiga tem condições de perceber; 3) renúncia deliberada de compreender as mediações mais densas e explicativas dos fenômenos, o que abre flanco para a aceitação de teorias incoerentes, místicas ou mitológicas; 4) abertura para a absorver os resultados da religião, da ciência, da arte e da filosofia, mas sem poder adotar os métodos próprios destas formas mais complexas de conhecimento – esta característica implica na aceitação, via reconhecimento da autoridade, de referências intelectuais fora do senso comum; 5) tendência a generalizações exageradas a partir de poucos casos particulares; e 6) instabilidade na retenção do conteúdo adquirido das outras formas de conhecimento.

O fascismo/neofascismo/bolsonarismo busca estimular pela propaganda e a ação as propriedades irracionais do senso comum com o objetivo de hegemonizá-lo. Procura expulsar os resultados científicos/artísticos/filosóficos/religiosos progressistas presentes na mente dos indivíduos e provocar mudanças nas referências de autoridade intelectual em benefício de personalidades e grupos de extrema direita (“filósofos” alternativos, perfis fascistas nas redes sociais, igrejas conservadoras etc.). Divulga a “teoria” terraplanista, faz críticas infundadas às vacinas, tenta estigmatizar as lutas contra as opressões de gênero, defende o uso de medicamentos inúteis, entre outras “explicações” disparatadas, oferecidas como substitutos das explicações racionais sobre os mesmos fatos. Sem ter como vencer a disputa por hegemonia na Universidade, por exemplo, o fascismo instiga o irracionalismo no senso comum para desconectá-lo desta instituição.

O assédio fascista ao senso comum é combatido por socialdemocratas, comunistas, alguns segmentos liberais e outras correntes políticas comprometidas com valores racionalistas e humanistas, apesar de entre elas, claro, existirem disputas e interpretações diferentes de “razão” e “humanidade”. O resultado do embate dependerá de duas variáveis: 1) a experiência da população com políticas públicas e formas de mobilização propostas por cada tendência; 2) o conteúdo das mensagens e a estratégia de comunicação dos partidos. Como já tratamos da primeira variável em artigo anterior, e desejamos focar na estratégia discursiva antifascista para o segundo turno das eleições 2022, vejamos a segunda variável.

Combate ao uso fascista do senso comum

As tendências políticas racionalistas e humanistas não devem estimular as dimensões irracionais do senso comum. Por princípio, mas também por uma questão prática: quanto mais se instigar as dimensões obscuras do pensamento cotidiano (por exemplo, a partir de uma campanha de “fake news de esquerda”), mais ele será suscetível ao fascismo, na medida em que o materialismo espontâneo estará mais submetido a “teorias” absurdas.

No segundo turno das Eleições de 2022 e na luta contínua contra o fascismo/neofascismo/bolsonarismo, além de continuar a fazer discurso racional, focado na transmissão em linguagem popular da produção da ciência, da arte, da filosofia e da religião progressista, a esquerda precisa promover, por meio de mensagens e ações políticas, a autoridade intelectual das instituições produtoras de discursos racionais, no campo da erudição, como as Universidades públicas, bibliotecas e laboratórios estatais (Fiocruz, Butantã etc), e no campo da cultura popular, como as escolas de samba, os movimentos sociais e os grupos de esquerda da periferia. Sem deixar, evidentemente, de disputar hegemonia nestas instituições.

Não é razoável defendermos uma batalha da ciência/filosofia/arte contra o pensamento cotidiano, como se ele fosse um hóspede indesejado e o vilão da história da mente. Sem o senso comum, a humanidade não teria sobrevivido nos milhares de anos da chamada Pré-história e nem se diferenciado da natureza. Mesmo contemporaneamente, a inexistência deste tipo de pensamento tornaria inviável a vida cotidiana, pois não temos tempo para considerações científicas diante das centenas de decisões que somos obrigados a tomar durante um dia.

O melhor caminho é entendê-lo, respeitá-lo e lhe transferir os melhores resultados das formas racionais de entendimento (entre os quais está o pensamento religioso progressista, pois ele junta a fé com resultados da ciência/filosofia/arte). Em síntese: para combater o fascismo no campo das ideias, precisamos agir para reconectar o senso comum com as referências racionais de autoridade intelectual.

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