O governo Lula está em disputa?
Por Gabriel Landi Fazzio
“Coloque tal sociedade civil, e vocês terão tal Estado político, que é somente a expressão oficial da sociedade civil.” (Marx, carta de 1846 a Pável V. Annenkov.)
“[…] o poder político é precisamente o resumo oficial do antagonismo na sociedade civil”. (Marx, 1847, em Miséria da filosofia.)
Com o retorno da esquerda liberal ao governo federal, retorna também à cena política a velha tese ideológica do “governo em disputa”. Segundo essa concepção, o rumo do governo Lula-Alckmin “pode pender para lá ou para cá, dependendo da evolução do quadro político e do desempenho dos partidos e dos movimentos populares diante das reformas em discussão no Congresso” – conforme resumiu um editorial do Correio da Cidadania, ainda nos idos de 2003 [1]. Para quem advoga essa perspectiva, a principal tarefa dos movimentos da classe trabalhadora no próximo período seria “atuar por dentro”, apoiando “a esquerda do governo” para tentar conquistar uma “hegemonia” de esquerda no seu interior, contra a “ala direita do governo”.
Mas o que isso significa, de fato? Significa, por exemplo, exigir a renúncia dos ministros liberais, como Simone Tebet? Dificilmente os governistas concordarão com essa conclusão. Mas, além disso: qual é essa “ala esquerda” do governo, quando até mesmo ministros petistas, como Haddad, defendem a mesma política econômica liberal que Tebet e a “ala direita” do governo? Ou seria Rui Costa, o mais reacionário dos petistas, que conduzirá as privatizações no setor de transportes, já tendo negociado com o governador de MG, Zema, a privatização do Metrô da capital mineira e agora barganha com o governador de SP, Tarcísio, a privatização do porto de Santos? [*]
Quanto mais refletimos sobre a concepção de um “governo em disputa”, mais evidente fica toda a confusão que essa terminologia produz e o quão pouco útil ela é para orientar efetivamente a luta do proletariado e do povo pobre. Não é à toa, portanto, que esse mantra seja repetido desde 2003 sem nenhuma consequência prática: ao longo de todos governos petistas, quem disputou o governo de modo eficiente foi, de fato, a burguesia, enquanto a classe trabalhadora amarrava suas próprias mãos e lutas em nome de “não desestabilizar o governo”, “não jogar água no moinho da direita” etc. Resultado: um projeto que pretendia acumular forças à esquerda para, depois, promover maiores mudanças… teve como resultado a desorganização e confusão ideológica do movimento proletário, por um lado; e, por outro lado, acumulou forças para a direita parlamentar, que se livrou assim que pôde do governo petista e ajudou a encubar uma extrema-direita renovada (parte da qual compusera antes, inclusive, a “base aliada” do governo – como é o caso do próprio Bolsonaro!). Mesmo no plano institucional, para nem falar na desmobilização das massas, a falência dessa tática se evidencia pelo refluxo, em vez do aumento, da bancada petista:
Deputados Federais do PT no parlamento:
2002 – 91/513
2006 – 83/513
2010 – 86/513
2014 – 68/513
2018 – 54/513
2022 – 68/513
E pronto: celebra-se como “um grande sucesso” o retorno ao tamanho de 2014, após uma diminuição de quase 30% na bancada em relação a 2002…
Ainda assim, existe até mesmo quem tente dar uma aura marxista a essa concepção liberal da luta de classes [2]. Vejamos o exemplo clássico do “eurocomunista de esquerda” (sic!) Nicos Poulantzas: partindo das duas frases de Marx citadas na abertura deste artigo, o grego afirmava que o Estado burguês não poderia ser concebido meramente como um “comitê gestor dos interesses da burguesia”, uma vez que é permeado por fissuras e contradições, atravessadas pelas lutas de classes. O Estado capitalista seria, portanto, uma condensação material de relações de forças, pois ele mesmo seria uma arena dos conflitos entre as classes e os grupos sociais. Conclusão: lançando para o dia de São Nunca a perspectiva de uma revolução proletária, essa visão prega a necessidade de “disputar o Estado” desde seu interior (ou, como dizem os menos endurecidos pelo burocratismo: “em um movimento de pinça, por fora e por dentro”), seja qual for a coalizão que permita aos movimentos dos trabalhadores “adentrar” o comando conjunto do governo ao lado da burguesia. A boa e velha ideia reformista da transição pacífica ao socialismo por meio do crescimento da maioria parlamentar do proletariado e da sua influência sobre o Estado burguês, apenas sob roupagem renovada.
Não é à toa que as concepções de Poulantzas foram recebidas com dureza por seu antigo professor, o marxista francês Louis Althusser, que retrucava ao seu discípulo: “Assim, defender que o Estado é ‘por definição atravessado pela luta de classes’, é tomar os seus desejos pela realidade. É tomar os efeitos, mesmo profundos, ou os traços da luta de classes (burguesa e proletária) pela própria luta de classes”. [3]
O que essa concepção revisionista reiteradamente perde de vista, justamente, é o significado econômico da concepção marxista do Estado como “síntese oficial do antagonismo na sociedade civil”: pensando a luta de classes e a sociedade civil sob um enfoque puramente político, esquece que a correlação de forças entre as classes em uma determinada sociedade é dada, antes de tudo, pela posição ocupada na divisão social do trabalho, ou seja, a posição social em relação aos meios de produção. Antes de analisar as correlações de forças políticas entre as diversas organizações sociais das classes em luta, é preciso compreender que o monopólio sobre os meios de produção determina, acima de tudo, os limites dentro dos quais essas correlações de forças podem se manifestar. Mesmo nas excepcionais situações de equilíbrio de forças [4], dentro de uma sociedade capitalista, ainda nelas a burguesia predomina, atua como classe social dominante, uma vez que seu monopólio sobre os meios de produção determina não apenas sua função social dirigente, como determina, também, a dependência material do proletariado em relação à burguesia. Dentro do capitalismo, ou seja, enquanto subsista a propriedade privada burguesa dos meios de produção, a “síntese oficial dos antagonismos da sociedade civil” sempre consagrará, em última análise, a dominação da burguesia sobre o proletariado e as demais classes da sociedade. Esse é, seja qual for a conjuntura, o limite último dessa “condensação material da correlação de forças”.
Refutar essa concepção confusionista não significa dizer, evidentemente, que a classe trabalhadora seja completamente impotente frente aos desígnios da burguesia. Significa dizer, pelo contrário, que, dentro de certos limites, todo governo capitalista está “em disputa”. Tomemos um exemplo prático. Ninguém ignora o grau de desorganização e fragilidade em que se encontrava o movimento sindical quando, em 2017, o governo Temer tentou encaminhar a aprovação da Reforma da Previdência. Em resposta, dois dias de greve geral política foram convocados (15 de março e 28 de abril) [5]. E, contudo, a despeito do ceticismo dentro da própria esquerda e das afirmações do governo e da imprensa burguesa minimizando o significado político da greve, essa vigorosa mobilização paralisou mais de 40 milhões de trabalhadores em todo país. Isso foi o suficiente para forçar o governo Temer a reavaliar sua tática: percebendo o rechaço massivo da população à Reforma da Previdência, Temer compreendeu que a “linha de menor resistência” passava por adiar esse projeto e, antes de mais nada, priorizar a aprovação da Reforma Trabalhista, não apenas porque essa era menos compreendida e rechaçada pela população, mas também no intuito de minar o financiamento dos sindicatos que tanta dor de cabeça lhe haviam causado.
Esse exemplo evidencia que a disputa pelos rumos da política burguesa se realiza muito mais contra o Estado do que em seu interior. Diante de uma maioria parlamentar burguesa que toma como refém mesmo o mais bem-intencionado dos governos sonhados, apenas a luta de massas da maioria social proletária pode impor a realização de medidas que beneficiem os trabalhadores ou bloquear a aprovação de medidas que os prejudiquem.
Outro exemplo: basta lembrar como, durante a Constituinte de 1988, a despeito de possuir uma ínfima presença na Assembleia Constituinte, o movimento popular dos trabalhadores logrou, com a força da mobilização de massas, arrancar à maioria parlamentar liberal uma série de demandas sociais significativas, como a previsão constitucional da reforma agrária, a afirmação do direito à moradia, a estruturação do SUS etc.
Um último exemplo, mais recente e localizado, mas muito significativo: na cidade de Piracicaba, no interior de São Paulo, o movimento de moradia acaba de ter uma grande vitória com a aprovação da Lei do Despejo Zero (Lei 226/22), que cria uma série de imposições à prefeitura antes de qualquer tentativa de realização de despejo em terreno ocupado pelos trabalhadores sem-teto (imposições que dizem respeito à obrigação de assegurar moradias alternativas dignas, desde as necessidades de saneamento, de atendimento médico e de transporte até as necessidades escolares das crianças etc). O Projeto da Lei foi elaborado pelas próprias comunidades sob risco de despejo, com o apoio orgânico e direto do Partido Comunista Brasileiro. Na Câmara, a única vereadora petista da cidade se dispôs a apresentar o projeto. É evidente que os outros 22 vereadores, liberal-conservadores em sua maioria, não tinham qualquer propensão inicial a apoiar um projeto que permite a defesa e ampliação do movimento local de ocupações urbanas. Ainda assim, a mobilização popular foi tão ampla e expressiva que pressionou todos os vereadores a aprovarem o projeto e, mesmo após o veto pelo prefeito (Luciano Almeida – Democratas), a novamente votarem em conformidade com a demanda popular, derrubando na Câmara Municipal o veto! Isso sim é uma demonstração prática da hegemonia proletária, sem negociatas ou concessões! [6]
A tese que considera os governos reformistas como estando “mais abertos à disputa” comete o pecado de tratar como virtude aquela que é a maior debilidade desses governos: o fato de serem governos de conciliação de classes, que cooptam lideranças da classe trabalhadora para postos políticos secundários em nome de “governar ao lado” dos grandes capitalistas – que, por sua vez, recebem os principais ministérios econômicos, a prioridade no atendimento às suas demandas etc. Acreditando “disputar” os rumos dessa coalizão, as lideranças proletárias apenas facilitam a disputa dos rumos do movimento popular pela própria burguesia, à qual amarram seu destino.
Assim, é evidente que devemos “disputar os rumos do governo atual”, se entendermos essa disputa em conexão com a independência política da classe trabalhadora, e não como uma desculpa para sua subordinação à política burguesa. Para isso, devemos cortar pela raiz as ilusões liberais que se infiltram no movimento proletário e popular pelo veio ideológico do reformismo, compreendendo com nitidez aquilo que não está em disputa no atual governo.
O que não está em disputa no governo Lula-Alckmin? Sua essência, seu sentido geral: seu caráter enquanto um governo que busca conciliar os inconciliáveis interesses dos trabalhadores com os interesses dos seus exploradores, sob o predomínio destes últimos. Ou, como Lula muito honesta e humildemente define seu programa político social-liberal: não está em disputa o fato de que esse governo se limita à perspectiva de “inserir o pobre no orçamento” público sem, com isso, erguer qualquer contestação à exploração capitalista e aos lucros bilionários dos grandes monopólios econômicos privados.
Não espanta, então, que o governo não consiga dar consequência prática a essa retórica de “disputa” – antes de mais nada, pelo simples fato de querer encontrar nas políticas públicas os remédios para os males estruturais da sociedade civil burguesa. “O intelecto político é político exatamente na medida em que pensa dentro dos limites da política.” [7] Incapaz de conceber a superação da dominação do proletariado pela burguesia, resta aos reformistas conceber formas de atenuar as agruras dessa dominação – um esforço digno de Sísifo, a personagem mitológica condenada pelos deuses a rolar eternamente uma pedra colina acima, apenas para depois vê-la rolar para o outro lado e recomeçar do zero seus esforços.
E esse esforço “conciliador” vai ainda além do terreno econômico: mesmo no terreno político, a impotência desesperada do governo fica evidente na busca por conciliar a retórica antigolpista à aliança com golpistas civis e militares de toda espécie (vide o emblemático Ministro da Defesa de Lula-Alckmin, que não esconde de ninguém seus laços com a extrema-direita dos quartéis).
A verdade é que os reformistas concebem sua “hegemonia” não de um ponto de vista marxista, mas de um ponto de vista liberal. Não como expressão da força social impositiva da classe trabalhadora, mas como resultado das negociatas em busca de meio-termos entre a esquerda liberal e a direita. Não consideram que “hegemonia” signifique arrastar irresistivelmente o centro da política em sua própria direção; consideram como “hegemonia” o movimento de deslocar-se voluntariamente em direção aos pontos de vistas dos seus adversários, para persuadi-los de boa fé no meio do caminho.
Não espanta que, nessa toada, o patamar da conciliação seja cada vez mais rebaixado e favorável à burguesia, uma vez que essa não se limita a “disputar o governo” de modo pacífico e diplomático. Ao contrário: vale-se de todo o tipo de terrorismo midiático e econômico (por meio das ameaças de fechamento de postos de trabalho ou da fuga de capitais, por exemplo, ou por meio das histerias especulativas da Bolsa etc.), e estando pronta inclusive para derrubar o governo de conciliação, quando este revele-se incapaz de atender a seus desígnios na envergadura e velocidade desejadas.
Existe uma vírgula sequer de novidade em tudo o que foi exposto acima? De modo algum. Há mais de um século, em 1901, a marxista polonesa Rosa Luxemburgo constatava (comentando a tática de Millerand e Jaurès, os primeiros socialistas a praticarem a participação dos socialistas em governos burgueses):
Assim, a tática de Jaurès, que com o sacrifício da oposição de princípio socialista buscou alcançar resultados práticos, provou-se a mais impraticável do mundo. Em vez de aumentar a influência dos socialistas sobre o governo e o parlamento burguês, os transformou em ferramentas involuntárias do governo e apêndices passivos dos radicais pequeno-burgueses. Em vez de dar um novo impulso às políticas progressistas da Câmara, a renúncia à oposição socialista eliminou a única força motriz que ainda poderia ter levado o parlamento e o governo a uma política decisiva e corajosa. […]
O socialismo, que é conclamado a abolir a propriedade privada dos meios de produção e a abolir o domínio de classe burguesa, participa do governo do Estado burguês, que tem a tarefa de preservar a propriedade privada e perpetuar o domínio de classe da burguesia. Os socialistas, conclamados a organizar o proletariado em um partido de classe particular e a conduzi-lo à luta contra todas as classes burguesas, transformam a classe operária em um apêndice da burguesia republicana.
A participação na subjugação do proletariado como um meio de libertação do proletariado e a articulação política com os partidos burgueses como um meio de luta contra a burguesia – a contradição interna parece saltar aos olhos. [8]
Como já dissemos, em certo sentido, todo governo capitalista está “em disputa”. Mas essa disputa não ocorre, como pensam os governistas, dentro dos governos, nem expressa a maior ou menor boa vontade desse ou daquele governo frente aos movimentos populares: essa disputa ocorre fora do governo, na sociedade civil, da qual o Estado nada mais é do que uma “síntese oficial”. Por isso mesmo, a única arma da qual a maioria trabalhadora da sociedade dispõe no capitalismo é a sua organização, a sua independência política, sem a qual é incapaz de travar uma luta até o fim por seus interesses. Novamente, nas palavras da camarada Rosa Luxemburgo:
Precisamente porque nós não concedemos nem um centímetro de nossa posição, nós forçamos o governo e os partidos burgueses a nos conceder os poucos sucessos imediatos que podem ser ganhos. Mas se nós começamos a perseguir o que é “possível” de acordo com os princípios do oportunismo, sem nos preocupar com nossos próprios princípios, e por meios de troca como fazem os estadistas, então nós iremos logo nos encontrar na mesma situação que o caçador que não só falhou em matar o veado, mas também perdeu sua arma no processo. [9]
Que os reformistas se limitem a negociar os rumos dos governos de conciliação. Os comunistas têm à sua frente uma tarefa muito maior: disputar os rumos da luta de classes, sem nos limitarmos ao quadro e ao ritmo da pequena política, ao quadro da sociedade capitalista e do Estado burguês (que alguns revisionistas apaixonados pela “Realpolitik” burguesa gostariam de chamar de “grande política”)[10].
Enquanto os utopistas da conciliação imploram desesperadamente pelo impossível (a pacificação social duradoura, a coalizão nacional-desenvolvimentista entre a burguesia e o povo trabalhador etc), os materialistas dialéticos trabalham pela única possibilidade progressiva dada na atual conjuntura da luta de classes: organização da independência política da classe trabalhadora, sem a qual a situação política tende cada vez mais irresistivelmente à direita.
Essa tarefa, embora aparentemente mais difícil, é, na realidade, a única viável – e isso, no fundo, é reconhecido pelos próprios reformistas, quando apelam às massas para quem entrem em cena, para que apoiem o governo, para que “por favor ajudem a empurrar à esquerda o governo” que esses próprios reformistas, com suas pressões institucionais e táticas de negociação não conseguem evitar que continue cedendo cada vez mais à direita.
A tarefa dos comunistas não é a mera adesão passiva ou reboquismo espontâneo diante do tabuleiro de xadrez da “Realpolitik” burguesa. É preciso preparar a classe trabalhadora para uma luta direta pelo poder, para arrancar em absoluto todo o poder político das mãos dos proprietários privados dos grandes meios de produção e estabelecer a dominação política exclusiva do proletariado e do povo trabalhador. Levando em conta o estágio presente da luta de classes, é evidente que o trabalho de preparação para essa luta definitiva é tão urgente quanto subestimado pela maioria das lideranças populares, que depositam sua fé nas melhorias graduais pela via institucional. E isso mesmo depois dessa via ter desembocado em um golpe parlamentar e na impotência para evitar que todas as melhorias fossem revertidas, muitos mantêm-se incapazes de pensar para além da receita tradicional da conciliação! Não à toa, a luta ideológica pelo marxismo revolucionário entre os movimentos proletários e populares salta aos olhos como um dos mais indispensáveis aspectos desse trabalho de preparação. Mas, evidentemente, essa luta ideológica é insuficiente por si só.
Por isso, há apenas uma alternativa efetiva para aqueles que desejam engajar-se imediatamente nessa luta pelo poder, sem cair no aventureirismo blanquista, por um lado, ou no reboquismo reformista, por outro (dois desvios complementares, que decorrem ambos do quão “distante” parece a possibilidade da revolução proletária). Essa alternativa é a estratégia e a tática do Poder Popular: atuar decididamente em torno dos instrumentos de organização e de luta da classe trabalhadora no sentido de uma luta independente, contra o Estado burguês, impondo as demandas e reivindicações populares por meio da força de massas da classe trabalhadora organizada em torno dos seus próprios interesses, e não em torno dos jogos palacianos das diversas esferas da política burguesa (inclusive a política burguesa para operários, como Lênin designava o reformismo social-liberal aos moldes do sindicalismo inglês).
“Participar em cada luta de massas, intervindo através de uma agitação e propaganda revolucionária coordenada, capaz de lançar luz sobre cada aspecto da vida social, elucidando as tarefas históricas do proletariado e os caminhos para sua emancipação – eis a tarefa histórica dos comunistas brasileiros.” [11]
O centro de nossa tarefa não deve ser o poder burguês vigente, mas o poder proletário em formação. Em seus estágios embrionários, esse segundo poder invariavelmente se bate sob o primeiro, enquanto não é capaz de mais do que barganhar contra tal ou qual retrocesso, em favor de tal ou qual pequena concessão. Mas, para os marxistas, o poder da massa organizada não se limita a ser uma “força de pressão da sociedade civil sobre o Estado”, como concebem os reformistas: é, muito mais que isso, o ponto de partida para a expropriação da burguesia e para a reorganização socialista da sociedade.
Depois de um longo período de ataques frontais e de hegemonia dos elementos mais reacionários da burguesia brasileira, não é incompreensível que muitos trabalhadores se desarmem em otimismo, diante das promessas de melhorias e avanços sociais – ou, no mínimo, diante da promessa de interrupção das pioras e retrocessos sociais. Mas os comunistas alertam que só se pode garantir avanços ou evitar retrocessos, numa sociedade cindida em classes, pela própria luta direta das classes exploradas contra as classes exploradoras. Trocando em miúdos: o gado burguês precisa sentir no seu cangote a força da organização do proletariado, por meio de sua luta de massas, de suas greves, ocupações e mobilizações. Só assim é possível desencorajar as aventuras golpistas, que saberão o tamanho da resistência material contra a qual terão de se bater. Só assim é possível constranger a maioria burguesa no parlamento e quaisquer governos submetidos à chantagem burguesa a fazer concessões e evitar ataques. O resto é pura utopia social-liberal.
Notas:
[1] https://www.correiocidadania.com.br/antigo/ed348/editorial.htm
[*] https://valor.globo.com/politica/noticia/2023/01/05/queremos-fugir-de-dogmas-na-economia-diz-ministro-da-casa-civil.ghtml
[2] “Não basta dizer que a luta de classes só se torna autêntica, consequente, desenvolvida, quando abrange o domínio da política. Também em política é possível limitar-se a pormenores insignificantes ou ir mais fundo, até ao fundamental. O marxismo apenas reconhece a luta de classes como inteiramente desenvolvida, ‘nacional’, quando ela não só abrange a política, mas toma na política aquilo que é mais essencial: a organização do poder de Estado. Pelo contrário, o liberalismo, quando o movimento operário adquiriu alguma força, não ousa mais negar a luta de classes, mas procura reduzir, truncar, castrar o conceito de luta de classes. O liberalismo está pronto a reconhecer a luta de classes também no domínio da política, mas com a condição de que no seu domínio não entre a organização do poder de Estado. Não é difícil compreender quais os interesses de classe da burguesia que suscitam essa deformação liberal do conceito de luta de classes.” Lênin, em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1913/05/05.htm
[3] ALTHUSSER, Louis (1994). Écrits philosophiques et politiques. Tome I. Paris: Stock, Imec, p. 448. A posição de Lênin, no escrito citado na nota 2, é plenamente coerente com essa argumentação de Althusser: “Todas as lutas de classes são lutas políticas . É sabido que os oportunistas, subjugados pelas ideias do liberalismo, compreenderam erradamente estas profundas palavras de Marx e se esforçaram por interpretá-las de forma deturpada. Entre os oportunistas figuraram, por exemplo, os economicistas, irmãos mais velhos dos liquidacionistas. Os economicistas pensavam que qualquer choque entre classes é já uma luta política. Os economicistas reconheciam por isso como ‘luta de classes’ a luta por um aumento de 5 copeques por rublo, recusando-se a ver a luta de classes mais elevada, desenvolvida, nacional, por objetivos políticos. Deste modo, os economicistas reconheciam a luta de classes embrionária sem a reconhecerem na sua forma desenvolvida. Por outras palavras, os economicistas reconheciam na luta de classes apenas aquilo que era mais tolerável do ponto de vista da burguesia liberal, recusando-se a ir mais longe que os liberais, recusando-se a reconhecer uma luta de classes mais elevada, inadmissível para os liberais. Os economicistas transformavam-se assim em políticos operários liberais. Os economicistas renunciavam assim ao conceito marxista, revolucionário, da luta de classes.” A esse respeito, em Marx: Manifesto comunista e Miséria da filosofia.
[4] Para o conceito de “equilíbrio de forças”, vide a obra Estratégia e tática, de Marta Harnecker. Em Lênin:
“1) O resultado até hoje (segunda-feira, 30 de outubro) é um equilíbrio de forças […].
2) O czarismo não é mais forte o suficiente; a revolução ainda não é forte o suficiente para vencer.
3) Daí a tremenda vacilação. Por um lado, o espantoso e enorme aumento de acontecimentos revolucionários (greves, comícios, barricadas, comitês de segurança pública, completa paralisia do governo etc.); por outro lado, a ausência de medidas repressivas resolutas. As tropas estão vacilando. […]
A Corte está vacilando e ganhando tempo. A rigor, essas são suas táticas corretas: o equilíbrio de forças a obriga a aguardar seu tempo, pois o poder está em suas mãos.
A revolução chegou a um estágio em que é desvantajoso para a contra-revolução atacar, assumir a ofensiva.
Para nós, para o proletariado, para os democratas revolucionários consistentes, isso não é suficiente. Se não subirmos a um nível superior, se não conseguirmos lançar uma ofensiva independente, se não esmagarmos as forças do czarismo, se não destruirmos o seu poder atual, então a revolução vai parar no meio do caminho, então a burguesia vai ludibriar os trabalhadores.”
Em: https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1905/oct/17d.htm
[5] Vide:
[6] https://pcb.org.br/portal2/30040
[7] A esse respeito, a reflexão de Marx mantém toda sua atualidade:
“Pode o Estado comportar-se de outra forma?
O Estado jamais encontrará no “Estado e na organização da sociedade” o fundamento dos males sociais, como o “prussiano” exige do seu rei. Onde há partidos políticos, cada um encontra o fundamento de qualquer mal no fato de que não ele, mas o seu partido adversário, acha-se ao leme do Estado. Até os políticos radicais e revolucionários já não procuram o fundamento do mal na essência do Estado, mas numa determinada forma de Estado, no lugar da qual eles querem colocar uma outra forma de Estado.
O Estado e a organização da sociedade não são, do ponto de vista político, duas coisas diferentes. O Estado é o ordenamento da sociedade. Quando o Estado admite a existência de problemas sociais, procura-os ou em leis da natureza, que nenhuma força humana pode comandar, ou na vida privada, que é independente dele, ou na ineficiência da administração, que depende dele. Assim, a Inglaterra acha que a miséria tem o seu fundamento na lei da natureza, segundo a qual a população supera necessariamente os meios de subsistência. Por um outro lado, o pauperismo é explicado como derivando da má vontade dos pobres, ou, de acordo com o rei da Prússia, do sentimento não cristão dos ricos, e, segundo a Convenção, da suspeita disposição contra-revolucionária dos proprietários. Por isso, a Inglaterra pune os pobres, o rei da Prússia admoesta os ricos e a Convenção guilhotina os proprietários.
Finalmente, todos os Estados procuram a causa em deficiências acidentais intencionais da administração e, por isso, o remédio para os seus males em medidas administrativas. Por que? Exatamente porque a administração é a atividade organizadora do Estado.
O Estado não pode eliminar a contradição entre a função e a boa vontade da administração, de um lado, e os seus meios e possibilidades, de outro, sem eliminar a si mesmo, uma vez que repousa sobre essa contradição. Ele repousa sobre a contradição entre vida privada e pública, sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Por isso, a administração deve limitar-se a uma atividade formal e negativa, uma vez que exatamente lá onde começa a vida civil e o seu trabalho, cessa o seu poder. Mais ainda, frente à consequências que brotam da natureza a-social desta vida civil, dessa propriedade privada, desse comércio, dessa indústria, dessa rapina recíproca das diferentes esferas civis, frente a estas consequências, a impotência é a lei natural da administração. Com efeito, esta dilaceração, esta infâmia, esta escravidão da sociedade civil, é o fundamento natural onde se apoia o Estado moderno, assim como a sociedade civil da escravidão era o fundamento no qual se apoiava o Estado antigo. A existência do Estado e a existência da escravidão são inseparáveis. O Estado antigo e a escravidão antiga – fracas antíteses clássicas – não estavam fundidos entre si mais estreitamente do que o Estado moderno e o moderno mundo de traficantes, hipócritas antíteses cristãs. Se o Estado moderno quisesse acabar com a impotência da sua administração, teria que acabar com a atual vida privada. Se ele quisesse eliminar a vida privada, deveria eliminar a si mesmo, uma vez que ele só existe como antítese dela. Mas nenhum ser vivo acredita que os defeitos de sua existência tenham a sua raiz no princípio da sua vida, na essência da sua vida, mas, ao contrário, em circunstâncias externas à sua vida. O suicídio é contra a natureza. Por isso, o Estado não pode acreditar na impotência interior da sua administração, isto é, de si mesmo. Ele pode descobrir apenas defeitos formais, casuais, da mesma, e tentar remediá-los. Se tais modificações são infrutíferas, então o mal social é uma imperfeição natural, independente do homem, uma lei de Deus, ou então a vontade dos indivíduos particulares é por demais corrupta para corresponder aos bons objetivos da administração. E quem são esses pervertidos indivíduos particulares? São os que murmuram contra o governo sempre que ele limita a liberdade e pretendem que o governo impeça as consequências necessárias dessa liberdade.
Quanto mais poderoso é o Estado e, portanto, quanto mais político é um país, tanto menos está disposto a procurar no princípio do Estado, portanto no atual ordenamento da sociedade, do qual o Estado é a expressão ativa, autoconsciente e oficial, o fundamento dos males sociais e a compreender-lhes o princípio geral. O intelecto político é político exatamente na medida em que pensa dentro dos limites da política.”
https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/08/07.htm
[8] Rosa Luxemburgo, em A crise socialista na França. Disponível em: https://lavrapalavra.com/produto/a-outra-rosa-pre-venda-promocional-entregas-a-partir-de-5-4/
[9] https://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/1898/09/30.htm
[10] “Grande política (alta política) – pequena política (política do dia-a-dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas). A grande política compreende as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A pequena política compreende as questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política. Portanto, é grande política tentar excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política.” (GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Vol. III. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 21.) Ainda assim, os marxistas vulgares insistem em chamar a política institucional burguesa, a diplomacia entre as potências capitalistas etc. de “grande política”.
[11] https://lavrapalavra.com/2019/12/02/o-poder-popular-gramsci-e-a-dualidade-de-poderes-no-ocidente/