O compromisso do governo Tarcísio com a especulação imobiliária

Por Vinícius Okada — PCB Campos Elíseos

Foto: Carlos Pires

Uma grande promessa eleitoral de Tarcísio Freitas foi a “revitalização” do bairro Campos Elíseos, no centro de São Paulo, região em que se concentrou, desde o início de 2022, a Cracolândia. Em seu programa de governo [1] consta a proposta de instalar o “Polo Administrativo Campos Elíseos”, isto é, organizar no bairro a sede do governo, que hoje é no Morumbi.

A promessa começa a tomar forma. Uma matéria recente veiculada pelo Estadão afirma que o governador busca dar os primeiros passos para viabilizar a “transferência da sede de governo de São Paulo para as proximidades da região da Cracolândia, no centro da capital” [2]. Os estudos sobre a parceria público-privada se iniciaram no mês passado. O governo prevê que “toda a estrutura pública se organize ao redor do Palácio dos Campos Elíseos, na Avenida Rio Branco, onde hoje funciona o Museu das Favelas e, no futuro, poderia servir como gabinete do governador”.

A ideia não é nova.

O Palácio dos Campos Elíseos já abrigou a sede do governo, de 1911 a 1965. Isso porque a formação do bairro Campos Elíseos data da segunda metade do século XIX, e está diretamente vinculado à burguesia cafeeira — sua instalação foi favorecida pela localização privilegiada perto da estação da Luz da estrada de ferro da São Paulo Railway Company, ligando Santos a Jundiaí. Este processo de ocupação e expansão da cidade, que acompanhava a expansão econômica, sobretudo com a produção cafeeira e a nascente indústria, se deu paralelamente ao loteamento e construção de bairros operários, em áreas menos valorizadas das várzeas, rodovias e indústrias, como o caso do Brás, Bom Retiro e Mooca.

O nome do vultoso empreendimento da burguesia paulistana reafirmava seu caráter de classe: o Campos Elíseos Paulistano se inspirava na Champs Elysées de Paris, uma das regiões mais aristocráticas da capital francesa. Em sua origem, o Campos Elíseos foi a “representação de uma nova cidade”, que se impôs através da economia cafeeira, com novas técnicas de construção e uma arquitetura inspirada e copiada dos modelos europeus [3]. Dessa forma, o governo estadual segue a lógica habitual burguesa de chamar como “revitalização”, a transformação de áreas da cidade em atrativos para os ricos, em detrimento dos mais pobres.

A promessa de Tarcísio de “revitalização” do centro de São Paulo se articula em duas frentes: primeiro, a demagógica, mudança da sede do governo estadual do Morumbi para o Campos Elíseos, segundo, a coercitiva, manutenção da política de guerra à Cracolândia, por meio da militarização crescente da região, junto do reforço da política de internações forçadas.

A respeito da Cracolândia, em janeiro deste ano, o governador anunciou, em parceria com a prefeitura, o programa Reencontro, pacote de medidas de combate às drogas, que, na realidade, nada mais é do que as mesmas medidas implementadas pelos governos anteriores, agora repaginadas e requentadas [4].

Aliás, a semelhança se inicia já nos nomes. O programa de Tarcísio, Reencontro, o programa de Rodrigo Garcia, ex-governador, Recomeço. Ambos estruturados pelos mesmos braços: investimento crescente na polícia militar e fomento das comunidades terapêuticas em detrimento dos CAPS-AD [5].

As comunidades terapêuticas tratam-se de clínicas antidrogas, de caráter manicomial, ligadas, em sua maioria, a grupos religiosos que ganharam notoriedade durante o governo Bolsonaro por conta dos massivos investimento federais que receberam, como alternativa em detrimento ao Sistema Único de Saúde (SUS) e os CAPS-AD (Centros de Atenção Psicossocial especializados no tratamento de pessoas com uso problemático de álcool e drogas) [6]. Além das várias denúncias de internação forçada, abuso sexual e psicológico, torturas, trabalho forçado e inúmeras violações aos direitos humanos [7], salienta-se que tais instituições, ao invés de trabalhar a partir da abordagem de “redução de danos” (abordagem que foca na autonomia do indivíduo para um uso controlado da droga, em que se trabalha a pessoa e sua ressocialização e não a droga em si), trabalham a partir de uma lógica moralista e individualista de abstinência forçada.

Segundo Eduardo Ribeiro, coordenador da INNPD (Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas), em entrevista à Ponte Jornalismo em 2019, tal política “parte de uma proposta anticientífica, irrealizável, e comprovadamente ineficaz enquanto método: a abstinência. Mas não é isso que se busca no fundo. O que de fato importa é a possibilidade de ampliação irrefreada do sequestro de pessoas, sobretudo negras, por instituições que se alimentam do sofrimento das famílias para desviar recursos públicos, explorar trabalho escravo, fazer proselitismo religioso e incidir na política brasileira de forma antidemocrática” [8].

O programa Reencontro, do governo atual, prevê 264 leitos para desintoxicação em hospitais e mil vagas de internação em comunidades terapêuticas, para as quais não se descarta a internação forçada [9].

A Cracolândia existe há mais de 30 anos. Nesse período, mudou inúmeras vezes de lugar, sobretudo por meio de megaoperações policiais que prometem sempre “resolver definitivamente” o problema, mas que curiosamente sempre “falham”,
resultando só em novos deslocamentos. O que não falha, porém, é o avanço da especulação imobiliária que acompanha a “guerra às drogas”. A cada ciclo de deslocamento da Cracolândia para um novo local, o valor imobiliário do entorno cai,
comércios fecham, moradores se mudam… E, assim, surgem novas promessas do Estado a respeito de novas operações urbanas para “revitalizar” a cidade [10].

O caso da região da Luz, por exemplo, é emblemático — pelo menos desde 1990 a região é alvo de operações urbanas por parte do Estado, tendo como justificativa a Cracolândia — o braço armado do Estado sempre vem acompanhado de novas
remoções e operações urbanas, e o que segue é o avanço da especulação imobiliária [11].

Não é preciso que Tarcísio cumpra sua promessa, porém, para que nos deparemos com o avanço da especulação imobiliária no Campos Elíseos. No início de 2022, a Cracolândia se muda para a Praça Princesa Isabel, de lá para cá seguiram-se inúmeras ações policiais que removeram as pessoas, cercaram a praça, espalharam a Cracolândia pelo bairro, transitando entre ruas da região de acordo com as ações policiais. Soma-se a isso, atualmente, a intenção de Tarcísio de concentrar toda a estrutura do governo estadual na Avenida Rio Branco, numa espécie de “esplanada dos ministérios” paulistana — o empreendimento colossal, para se concretizar, dependerá da iniciativa privada, da aquisição de imóveis pelo Estado, além de inúmeras obras de grande porte na região.

Dessa forma, a “revitalização urbana” é a transformação em terra arrasada daquilo que existe no território — suas práticas, sua população, seu perfil de classe — em favor de uma intervenção saneadora, de substituição em favor de uma nova estrutura, dentro de novos padrões de consumo estabelecidos, que se apresenta, no discurso ideológico, como “democrática”, “cultural”, “civilizatória” — oculta-se, assim, a essência da violência de classe segregadora. Dentro desse padrão, o Estado surge como indutor da “revitalização” de maneira a ampliar a infraestrutura local, atraindo, assim, o capital privado, e requalificando usos.

Com a revalorização da região, o aumento do valor dos imóveis e dos aluguéis, os mais pobres são forçosamente expulsos, tudo dentro da “legalidade democrática” da força do poder econômico: é o velado apartheid brasileiro. Foi nesse contexto, por exemplo, que se criou o Museu da Energia no Campos Elíseos, instalado no antigo palacete Santos Dumont, entre as alamedas Cleveland e Nothmann. O casarão havia sido ocupado por trabalhadores pobres desde os anos 1980, em decorrência da carestia, e transformado em cortiço. Foi desocupado em 2001, “revitalizado”, assumida a função “cultural” de museu, e os antigos moradores expulsos [12].

Foi também nesse contexto, por exemplo, que, nos anos 1990, moradores da Favela do Gato, às margens do rio Tamanduateí, foram desalojados pela prefeitura e ocuparam o terreno das ruínas do antigo Moinho das Indústrias Matarazzo, formando a Favela do Moinho, hoje, a única favela do centro de São Paulo [13]. A qual, entre 2011 e 2012, em meio a disputa pela posse do terreno (que, aliás, segue até hoje na justiça), foi atingida por dois incêndios de grandes proporções — nos anos em que vários incêndios foram registrados em favelas de São Paulo em meio a disputas pela terra [14]. Também foi nesse contexto que, recentemente, a Favela do Moinho conquistou água e esgoto após 30 anos de luta dos moradores por seus direitos mais básicos, lutando também contra a violência do Estado, e constantes pressões e chantagens para que deixassem suas casas [15].

Foi dentro do atual processo de avanço do capital imobiliário no Campos Elíseos que se inaugurou no bairro, em 25 de Novembro de 2022, o Museu das Favelas. Uma iniciativa que promete integração e visibilização das lutas entre as diversas
favelas e comunidades periféricas da cidade e que promete ser não um “museu de arte”, mas sim de um “museu de vivência”, um “lugar de reconhecimento” e “empoderamento” da “cultura periférica” [16].

No contrato de gestão da OS que administra o museu [17], consta como área estratégica para construção de vínculos e projetos justamente a Favela do Moinho. Apesar disso, o Museu ainda não planejou com a favela qualquer atividade conjunta, pelo contrário, a Favela do Moinho é uma grande ausência no acervo. Enquanto a entidade prevê um orçamento de quase R$ 5 milhões de reais para 2023 [18], o Centro Cultural da Favela, gerido por seus moradores, encontra dificuldades extremas de financiamentos para se reerguer após a pandemia — no final de 2022, inclusive, teve de reformar o telhado de seu edifício, que caiu por conta da chuva.

A promessa de Tarcísio pretende usar o Palácio do Campos Elíseos como sede do governo, colocando em dúvida, até mesmo, a existência do Museu [19]. Entre promessas vazias, cheias de dúvidas, resta, porém, a certeza de que o Campos Elíseos é uma região estratégica para o mercado imobiliário, que seguirá avançando sem dó, com total compromisso do Estado pela manutenção da segregação urbana.

Referências:

[1] Proposta de Governo de Tarcísio Freitas:
https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/candidato/2022/2040602022/SP/250001615967
[2] Tarcísio de Freitas quer PPP para mudar sede do governo paulista – Estadão
[3] Campos Elíseos no centro da crise: a reprodução do espaço no centro de São Paulo. Tese de doutorado de Evânio dos Santos Branquinho ao programa de pós-graduação em geografia humana, do departamento de geografia da FFLCH-USP,
de 2007. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-01062007-132814/pt-br.php.
[4] Ver Plano de Tarcísio e Nunes para a Cracolândia insiste em polícia e internação e também Governo de SP anuncia plano de ação para a Cracolândia
[5] Rodrigo Garcia e sua política de ferro e fogo para os dependentes químicos em São Paulo
[6] Artigo | Por que a política de drogas e saúde mental de Bolsonaro é um desastre- Ponte Jornalismo
[7] Ver a reportagem: ‘Me amarraram pelado, no frio e de madrugada’, revela ex-interno de clínica de reabilitação; e principalmente: Relatório da Inspeção Nacionalem Comunidades Terapêuticas – CFP
[8] Entenda os retrocessos previstos na nova política de drogas aprovada no Senado – Ponte Jornalismo
[9] Ver nota 4.
[10] Por que a cracolândia funciona? – Outras Palavras
[11] Ver Apesar de quatro planos de intervenção urbana, Luz não mudou e também Região da Luz em Disputa: Mapeamento dos processos em curso – LabCidade
[12] Ver, novamente, a tese de doutorado de Evânio dos Santos Branquinho.
[13] Idem.
[14] Para um estudo sobre os incêndios nas favelas de São Paulo e sua relação com a especulação imobiliária e com o Estado, ver a tese de doutorado de Rodrigo Dantas Bastos, intitulada, Na rota do fogo: especulação imobiliária em São Paulo,
apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, em 2018. Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/1061132.
[15] Como uma favela de SP conquistou água e esgoto após 30 anos – BBC News Brasil
[16] Museu das Favelas é inaugurado hoje em São Paulo | Metrópoles
[17] Documentos Transparência | IDG
[18] Idem.
[19] Tarcísio quer mudar sede do governo para o centro e provoca receio por ‘higienização’ da região

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