A guerra como política de hegemonia dos EUA

Gustavo Carneiro

ODIARIO.INFO

Passaram 20 anos desde o início da agressão imperialista ao Iraque. É essencial avivar a memória (não será a comunicação social dominante que o fará) sobre o retrato que revela dos meios, das justificações mentirosas para a desencadear, do desprezo pelo direito internacional e pela soberania dos países, pelos direitos dos povos, da escala dos crimes que o imperialismo dos EUA está disposto a executar para afirmar a sua dominação. No quadro atual, essa hegemonia foge-lhe das mãos. Lembremos aquilo do que é capaz.

Tem-se falado muito de guerra, a propósito da dramática e perigosa situação que se vive no Leste da Europa. Nas cadeias (des)informativas, cada vez mais reduzidas à condição de voz do dono, não há contexto nem história e a realidade é distorcida e apresentada em narrativas simples e mistificadoras. O Ocidente e os seus ditos valores são exaltados na exata medida em que se oculta a responsabilidade dos EUA, da OTAN e da UE na presente escalada e os crimes que cometeram ao longo das últimas décadas, com total impunidade, nos quatro cantos do mundo.

Nada disto é novo e o exemplo do Iraque é paradigmático: não por ter sido a primeira guerra do denominado mundo unipolar surgido do desaparecimento da União Soviética e do campo socialista europeu, que de fato não foi (antecederam-na as guerras na Somália, na Iugoslávia, no Afeganistão ou no próprio Iraque, logo em 1990), mas pela dimensão que assumiu e pelo que revelou.

A Operação Choque e Pavor (nome esclarecedor, reconheça-se) foi desencadeada em março de 2003 pelos EUA de modo unilateral, com desprezo pelas Nações Unidas e sem contar sequer com o apoio unânime na OTAN, face à oposição da França e da Alemanha, que mantinham interesses próprios com o petróleo iraquiano. A OTAN seria posteriormente chamada a desempenhar um papel central na ocupação do país.

Contudo, naquele momento apenas alguns Estados, como o Reino Unido, a Espanha ou Portugal, seguiram a iniciativa estadunidense. Portugal assumiu uma posição «absolutamente desprestigiante, porque serviçal», como afirmou na época o PCP a propósito da cessão da Base das Lajes para acolher a cúpula entre George W. Bush, Tony Blair e Jose Maria Aznar, na qual foi anunciada a decisão de atacar o Iraque: não tardaria muito até o então primeiro-ministro, Durão Barroso, ser recompensado pela subserviência demonstrada, deixando o governo do país para assumir a presidência da Comissão Europeia.

Se dúvidas ainda subsistissem, ficou então evidente que, naquele início do século XXI, os EUA procuravam afirmar-se como a potência imperialista dominante, única e incontestada, nomeadamente pelos seus «aliados». A nova ordem mundial – imperialista – era, acima de tudo, estadunidense.

É esta hegemonia, hoje seriamente posta em causa, que os EUA se esforçam por manter a todo o custo. Doa a quem doer…

Guerra de mentiras

Os EUA procuraram justificar a agressão insistindo em dois pretextos, comprovadamente falsos: o desenvolvimento de armas de destruição em massa pelo Iraque e as ligações do seu governo com a Al-Qaeda de Bin Laden. Contaram, para isso, com um verdadeiro arsenal midiático, que integrava as principais agências, cadeias televisivas e jornais de circulação mundial.

Mas as referidas armas, de que o Secretário de Estado dos EUA Colin Powell garantia (numa célebre alocução no Conselho de Segurança da ONU) ter provas sustentadas em «fontes sólidas, muito sólidas», nunca foram encontradas. Pela simples razão de que não existiam. Hans Blix, antigo diretor geral da Agência Internacional de Energia Atômica, diria mais tarde ao El País (19.02.2004) que antes da ofensiva estadunidense «não encontramos qualquer prova que mostrasse que o Iraque desenvolvia atividades proibidas». E, lembra, foram inspecionados os locais referidos por Powell como sendo laboratórios, fábricas ou armazéns desse tipo de armamento. Também Rolf Ekeus, que entre 1991 e 1997 chefiou a equipe de inspetores de desarmamento das Nações Unidas no Iraque, garantia que o país se encontrava já então «fundamentalmente desarmado». Muitos outros observadores corroboram esta versão, documentada em diversos relatórios.

Mas houve um tempo em que o Iraque possuía armas químicas e procurava desenvolver o seu próprio programa nuclear, com material e equipamento fornecidos pelos EUA: era a altura da guerra contra o Irã, travada com o apoio – e o estímulo – dos EUA. Nessa altura não se ouviu uma crítica e um lamento por parte das administrações norte-americanas relativamente à utilização deste tipo de armamento contra o Irã ou a guerrilha curda no Norte do Iraque. Bem pelo contrário.

Mas o próprio processo das inspecções revelou-se complexo, com múltiplas acusações dirigidas contra os EUA, que as procuravam manipular para servir os seus objetivos militaristas. Scott Ritter demitiu-se de inspector por essa razão e o já referido Rolf Ekeus denunciou em 2002 a utilização de inspetores em tarefas de espionagem e provocação, que pudessem levar a reações do Iraque que justificassem o recurso à ação militar (FT, 3.7.2202).

Inventadas foram, também, as «ligações» entre as autoridades iraquianas e a Al-Qaeda. Mas o 11 de Setembro de 2001 tivera demasiado impacto junto aos norte-americanos para não ser utilizado em favor da estratégia agressiva do imperialismo. Já um ano antes, aliás, o Projeto para um Novo Século Americano (PNAC), grupo de pressão com forte presença na administração de George W. Bush, tinha sublinhado a necessidade de um «acontecimento catastrófico e catalizador, como um novo Pearl Harbour», para que um programa de guerra tivesse apoio público…

Mas a evidência da mentira utilizada como pretexto para a guerra no Iraque e as divisões entre as potências capitalistas foram de tal ordem que os protestos contra a guerra (nos EUA, no Reino Unido, um pouco por todo o mundo e também em Portugal) foram massivos, os maiores desde a guerra contra o Vietnã.

Agressão e resistência

As reais motivações para a guerra foram outras, bem mais prosaicas: o controle das vastas reservas petrolíferas iraquianas, o reforço da presença militar no Oriente Médio e a ambição da afirmação dos EUA como potência mundial incontestável. Todos estes objetivos confluíam para um outro, enunciado em 2006 pela Secretária de Estado Condoleezza Rice: a criação do que chamou um Novo Oriente Médio, com fronteiras redefinidas em função dos interesses do imperialismo. Para além do Iraque, eram alvos (como efetivamente foram e ainda são) o Irã, a Síria, o Líbano e até a Líbia, com as ligações que tinha junto ao movimento de resistência ao imperialismo na região.

Muito embora tivessem sido assumidos por uma administração Republicana, estes objetivos eram partilhados por amplos setores do establishment estadunidense. Aliás, parte considerável do caminho de ingerência e cerco que criou condições para a agressão militar foi trilhado pela administração Democrata de Bill Clinton.

O Iraque foi destruído, martirizado, empobrecido, segmentado e, duas décadas passadas, lá permanece a presença militar dos EUA, apesar da exigência do parlamento iraquiano de retirada das tropas estrangeiras. Com uma cultura milenar, resiste ainda como país e busca a reconstrução do seu Estado e a defesa da sua unidade nacional. Queira ou não o imperialismo.

Crimes contra a Humanidade

Nunca é tarefa fácil a macabra contabilidade das baixas de uma guerra e esta não é exceção. Os números são diversos e impressionantes, e as fontes variadas: há quem conte apenas os mortos e feridos diretos (em bombardeios, atentados, tiroteios) e quem procure contabilizar os que resultam do caos e da destruição que a guerra provoca.

Um estudo de 2013 da Universidade de Seattle, publicado na revista PLOS Medicine, aponta para meio milhão de vítimas mortais só entre 2003 e 2011: às 405 mil mortes diretamente atribuídas à guerra e à ocupação soma as cerca de 56 mil que terão morrido a tentar sair do país; as restantes são as tais «vítimas indiretas», incluindo-se aqui desde ataques cardíacos fatais decorrentes do estresse provocado pela guerra aos mortos por falta de assistência médica, devido à destruição dos hospitais e outros serviços. Do lado dos ocupantes, principalmente estadunidenses e britânicos, foram reconhecidos oficialmente pelas autoridades quase 5000 mortos (www.nationalgeographic.com/history/article/131015-iraq-war-deaths-survey-2013).

Citada pela National Geographic, a especialista em saúde pública Amy Hagopian, responsável pelo estudo, realçava que esta era «provavelmente uma estimativa por baixo (…). As pessoas têm de saber o custo em vidas humanas da decisão de ir para a guerra».

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A destruição do Estado iraquiano na sequência da agressão e da ocupação arrasou o equilíbrio em que se assentava o país – maioritariamente xiita, com uma liderança fundamentalmente sunita e uma considerável minoria curda. Até então, garante o jornalista britânico John Pilger, xiitas e sunitas «estavam em paz, casamentos mistos eram comuns (…). Bush e Blair explodiram tudo isto em pedaços.» (https://johnpilger.com/articles/from-pol-pot-to-isis-the-blood-never-dried).

O crescimento dos bandos armados verificou-se à medida que alastrava o desemprego e a pobreza, provocados pela destruição e pelas «terapias de choque» econômicas aplicadas pelos EUA e seus agentes. O próprio ISIS alimentou-se deste caos – para além, claro, do mal disfarçado apoio do dito «Ocidente».

Porém, o imperialismo não pode ser acusado de ter «apenas» aberto a porta à violência sectária, mas também de a ter alimentado diretamente. Numa entrevista concedida ao Avante! em 2006, o presidente da Aliança Patriótica Iraquiana, Abdul Jabbar al-Kubaysi, acusava as milícias sectárias de terem ligações com os círculos do poder mais próximos dos ocupantes e de nada terem a ver com a genuína resistência patriótica (Avante!, 16.03.2006).

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Mas há mais crimes a imputar aos invasores estadunidenses: a pilhagem de recursos naturais e tesouros arqueológicos; as prisões e centros de tortura secretos, como Abu Ghraib, denunciados à época pelo jornalista Seymour Hearsh (o mesmo que há semanas comprovou a responsabilidade dos EUA na destruição dos gasodutos Nord Stream); o uso generalizado de munições com urânio empobrecido e a utilização de armas incendiárias de fósforo branco sobre a população de Faluja, em 2004.

Estudos epidemiológicos realizados nesta cidade iraquiana, nos anos seguintes, revelaram a dimensão do horror: a mortalidade infantil entre 2006 e 2010 foi de 80 por mil nascimentos, contrastando na mesma altura com o Egito (19 por mil), a Jordânia (17 por mil) ou o Kuwait (9,7 por mil) e com tendência crescente no último período do intervalo (136 por mil em 2009/10).

Já as taxas de incidência de câncer eram 4,2 vezes superiores às expectativas para a região, valor que ascendia a 22 vezes no caso da leucemia. Doenças semelhantes já tinham surgido em militares norte-americanos que participaram na Operação Tempestade no Deserto, em 1990-91, no que ficou conhecido como Síndrome do Golfo.

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O massacre imperialista do povo iraquiano não começou em 2003. A Operação Choque e Pavor seguiu-se a mais de uma década de cerco sobre o país: as brutais sanções impostas após 1991 tinham provocado a morte de meio milhão de crianças, por doença ou subnutrição, garantiu em 1995 a revista científica britânica The Lancet.

Questionada no programa televisivo 60 Minutos sobre se todas estas mortes tinham valido a pena, para – diziam – «punir Saddam», a Secretária de Estado norte-americana Madeleine Albright não teve dúvidas em responder: «sim, pensamos que valeram a pena». Albright seria, em 1999, figura de primeiro plano de outra das guerras dos EUA/OTAN, desta feita contra a Iugoslávia.

Segundo a UNICEF, o Iraque tinha em 1990 uma das populações mais saudáveis e com níveis de ensino dos mais elevados. A taxa de mortalidade infantil era das menores em nível mundial. Os bombardeios de estruturas civis iraquianas durante a Guerra do Golfo, que segundo John Pilger fizeram o país regressar a um estado «pré-industrial», e as brutais sanções impostas ao povo iraquiano inverteram todos estes índices: o Iraque passou para os lugares derradeiros nestes e noutros indicadores.

A Operação Choque e Pavor e todas as suas dramáticas consequências, muitas das quais se sentem ainda hoje, encarregaram-se de destruir o resto.

Fonte: https://www.avante.pt/pt/2574/temas/171035/A-guerra-como-instrumento-de-afirma%C3%A7%C3%A3o-da-hegemonia-dos-EUA.htm?tpl=179