Colonialismo de substituição e o mito da emancipação pacífica
Luis Francisco – Militante do PCB no Paraná
O colonialismo de substituição, como foi praticado na Argélia, na África do Sul, na Rodésia, e em tantos outros projetos de colonização que pretenderam substituir uma população nativa por uma população estrangeira, é a forma mais completa de violência colonial. Aqueles que hoje defendem Israel não são únicos na nossa história; são versões ainda mais cínicas daqueles que, no século passado, condenavam os africanos por ousar se libertar. Basta lembrar que por quase quatro décadas, Nelson Mandela e seus aliados na luta contra o apartheid eram nada mais do que “terroristas” aos olhos da mídia no Ocidente.
Essa forma de colonialismo, praticada por europeus desde as suas primeiras incursões nas Américas, é especialmente bárbara justamente pela sua característica definidora: a substituição. A implicação é de que a população nativa deve ‘sumir’, dar lugar a um novo grupo, enquanto lenta ou rapidamente desaparece. Para o colonizador, não importa a forma que esse ‘desaparecimento’ toma, seja pelo genocídio físico e cultural, seja pelo deslocamento ou desapropriação; por isso, todas as opções estão na mesa.
A exploração da força de trabalho do colonizado é um bônus, a ser aproveitado pela iniciativa privada, mas não essencial ao objetivo: adquirir a maior quantidade de terra possível com o menor número de nativos. O colonialismo de substituição, em todas as suas formas, implica a prática constante da violência e da ‘limpeza étnica’ – um genocídio prolongado. Dos povos originários das Américas aos argelinos e sul-africanos, essa forma de colonialismo sempre vem acompanhada da expulsão, cercamento, extermínio e apagamento. Os povos “desaparecem,” e suas histórias são “esquecidas.”
Por isso, é importante lembrar que as guerras de libertação nacional são, necessariamente, contraofensivas; que toda violência do oprimido contra seu opressor é sempre autodefesa. Não existe colonialismo pacífico, assim como não existe movimento anticolonial sem luta anticolonial. Como escreveu o intelectual caribenho Walter Rodney ao defender a luta anticolonial: “Nos dizem que a violência é, por si só, um mal; que não importa a causa, ela é moralmente injustificável. Mas que tipo de moralidade é essa, onde a violência do escravo ao quebrar suas correntes é equiparável a violência do Senhor de escravos?”
Quem defende em abstrato os princípios da não-violência acaba por calar e condenar a reação do oprimido, esporádica e catártica, enquanto normaliza a violência diária da opressão colonial – constante e frequente o bastante para que nos acostumemos a condená-la sem agir contra ela. O colonialismo, como colocado por Frantz Fanon, “é a violência no seu estado natural e só sucumbirá quando for confrontada com uma violência ainda maior.” No caso de Israel, uma violência tão naturalizada no imaginário ocidental – onde um genocídio de 75 anos é pintado como uma “guerra milenar” e sem solução – que a sua existência não é mais questionada. Quanta arrogância e certeza de impunidade foi necessária para que Israel mantivesse 2.4 milhões de pessoas num campo de concentração a céu aberto por dezesseis anos, sem se preocupar com o que diria a “comunidade internacional”?
Assim como foi na África do Sul, o que permite essa violência é a certeza da impunidade, derivada de aliados complacentes – alguns inclusive, como os Estados Unidos, que até ontem praticavam sua própria segregação, que mantém até hoje campos de concentração nas suas fronteiras, ocupações militares em países terceiros (a exemplo de Guantánamo), e continuam a criminalizar grupos étnicos inteiros. Afinal, o colonialismo e o imperialismo, como toda violência, não são praticados em abstrato, mas sim pelos interesses militares e, em último nível, econômicos, de certas classes. O imperialismo britânico, por exemplo, causou imenso prejuízo às classes operárias e camponesas do Reino Unido, mas gerou fortunas bilionárias para suas elites.
Não foi da ideologia racista que surgiram a colonização e a escravidão, mas justamente o inverso: o racismo, assim como o sionismo, existe para justificar a violência de impérios e a colonização dos povos. Da mesma forma que os europeus ou os africâners na África do Sul desumanizavam os africanos chamando-os de “selvagens,” usando como prova da sua “selvageria” a violência contra o colonizador, Israel desumaniza toda a população palestina ao chamá-los de terroristas – usando como “prova” desse terrorismo a violência contra os seus algozes.
O que é o terrorismo se não os assassinatos de crianças, tortura de civis, destruição de infraestrutura, prisões arbitrárias, expulsões e confinamento em massa praticados por Israel contra os palestinos? O que é apartheid se não a segregação legal, física, e militarizada de povos ranqueados por etnia e local de nascimento dentro de um território ocupado? O que é genocídio se não o confinamento de milhões de pessoas, metade das quais menores de 14 anos, em um espaço menor que o plano-piloto de Brasília sem acesso regular a água, energia, alimentos, ou cuidados médicos?
Comparar Israel e a África do Sul durante o apartheid não é novidade, e por isso não vou me alongar na analogia. Os dois regimes eram muito próximos, e Israel chegou a auxiliar de forma vital no desenvolvimento das armas nucleares sul-africanas – um “botão de emergência” do apartheid que felizmente nunca foi apertado. O historiador israelense antissionista Illan Pappé, autor de diversos livros sobre a Nakbah e editor de uma imprescindível coleção de textos intitulada Israel e África do Sul: As Várias Formas do Apartheid, definiu o sionismo como “um movimento nacionalista europeu, mas que se tornou um movimento colonialista assim que seus líderes decidiram implementar sua visão de renascimento nacional na terra palestina.” Ter ciência desse processo, de que a ideologia muda e se adapta junto à prática colonial, é essencial para se compreender o que é o sionismo hoje, quando a era dos impérios coloniais já chegou ao seu fim: uma forma de supremacismo étnico baseado na ideologia colonial europeia, que justifica o massacre de todo um povo, sua substituição, sob o verniz de uma “disputa religiosa.” Não nos deixemos enganar: o conflito que o sionismo gera não é religioso, mas sim territorial.
Como última nota, gostaria de lembrar que a nossa maior arma é a verdade. Os leviatãs da mídia burguesa, que monopolizam narrativas a serviço de quem pagar melhor, continuam a defender com unhas e dentes a agressão sionista; pintam o agressor como se fosse a vítima, tentam chocar com imagens violentas. A serviço dos senhores da guerra, do “complexo industrial-militar,” dos objetivos estratégicos dos grandes impérios, distorcem a realidade sem remorso. Lhes pergunto: onde estavam enquanto soldados israelenses terraplanavam vilas inteiras, quando colonos torturavam e assassinavam palestinos, sob a proteção do estado sionista, ou nas repetidas vezes que Israel fez chover fogo sobre Gaza? Onde estavam enquanto seus colegas – Shireen Abu Akleh, Ahmed Abu Hussein, Yaser Murtaja, e tantos outros – eram assassinados por Israel ao cobrir suas ações militares, essas sim terroristas?
Defender nossos irmãos palestinos dos ataques midiáticos, das mentiras, das falsas narrativas, é também nosso dever internacionalista. Apelo a todos os aliados da causa palestina que se informem, que combatam as mentiras, que espalhem as palavras de ordem da liberdade para o povo palestino. Independentemente do resultado da histórica operação militar hoje em curso, sabemos que a resposta de um agressor tão impiedoso como o regime sionista será a intensificação dos massacres que já cometem faz 75 anos. Espalhar a verdade e combater a narrativa colonialista é um dever de todos que se entendem anticolonialistas.
Viva a Palestina Livre e Independente! Do Rio ao Mar!
Venceremos.
“Nós advocamos pela abolição das guerras. Nós não queremos guerras; mas a guerra só pode ser abolida através da guerra, e para que nos livremos de todas as armas, devemos primeiro pegar em armas.”
– Mao Tsé-Tung, Problemas da Guerra e da Estratégia.
Recomendações de leitura:
Ilan Pappé: A História da Palestina Moderna, The Biggest Prison on Earth e Dez Mitos Sobre Israel; Sara Roy: The Gaza Strip: The Political Economy of De-Development; Nilton Bobato e Paulo Porto: Palestina, Um Olhar Além da Ocupação; Edward Said: Sobre a Questão Palestina e Blaming the Victims; Frantz Fanon: Os Condenados da Terra e Em Defesa da Revolução Africana; Walter Rodney: Decolonial Marxism e Como a Europa Subdesenvolveu a África.