Comício da Central, 60 anos
Foto: Arquivo Nacional / Correio da Manhã
É preciso estar atento e forte
Esquecer o golpe e a ditadura como “coisas do passado”, interditar às instituições de governo promoverem eventos que recuperem a catástrofe que o período significou, é uma ofensa aos que resistiram e uma traição à classe trabalhadora. É assumir, voluntariamente, o risco de favorecer a reescrita da história, como a produção ideológica neofascista vem fazendo nos últimos anos, exaltando a “obra” da ditadura.
Por Leonardo Silva Andrada
BLOG DA BOITEMPO
Em 13 de março de 1964, uma multidão se aglomerou em frente à Estação Central do Brasil. Após três horas de discursos em defesa do povo e da nação, contra o latifúndio e o imperialismo, subiu ao palco o Presidente da República. O governo João Goulart, desde que se livrara das amarras do parlamentarismo imposto pelo setor reacionário concentrado na UDN, acenava para sua base de apoio entre os trabalhadores, mas conduzia uma política econômica que em larga medida atendia aos interesses do capital. Enfrentava, com isso, pressões de ambos os lados, com os trabalhadores organizados e pressionando por uma política decididamente favorável a suas demandas, enquanto frações burguesas, fazendeiros e representantes do capital externo se articulavam em conspirações com setores das Forças Armadas. Por muito que já se aguardasse um golpe que vinha sendo nutrido há mais de uma década, tanto governo quanto seus apoiadores acreditavam contar com um dispositivo militar, um acalantado setor nacionalista entre as Armas, que permaneceria leal a Jango e defenderia os interesses nacionais contra o golpe reacionário, de caráter antipopular e antinacional.
Em seu discurso, o presidente abandonou o vacilo que caracterizava seu mandato e assumiu abertamente a posição nacional-reformista, sintetizada em um programa de reformas que deveria estabelecer os alicerces da verdadeira independência nacional, acompanhada de melhoria no padrão de vida das classes trabalhadoras. As Reformas de Base envolviam, entre as ações de maior destaque, realizar uma reforma agrária, enfrentando o ancestral problema do exclusivo agrário, obstáculo material a uma plena modernização, concomitante à promulgação de um Estatuto do Trabalhador Rural, que deveria estender aos trabalhadores do campo os direitos que a CLT restringiu aos urbanos; a reforma urbana, em combate à especulação para garantir moradia a todos; uma pequena reforma bancária, que sem tocar na fortuna dos financistas, pretendia favorecer a oferta de crédito para impulsionar as iniciativas desenvolvimentistas; na educação, um programa nacional de alfabetização que aproveitaria a experiência bem sucedida de Paulo Freire com cortadores de cana em Pernambuco, uma reforma universitária para superar o peso das tradições que engessavam a vida acadêmica, e a valorização do magistério; uma reforma fiscal que promovesse justiça na arrecadação e regulamentasse adequadamente o envio de lucros das multinacionais para suas matrizes; e uma reforma eleitoral que devolveria a legalidade ao PCB, atuando na ilegalidade desde a cassação de seu registro, em 1947.
Ainda que tenha sido apenas um gesto político, sinalizando a disposição de se empenhar na consolidação de uma revolução burguesa que os supostos interessados nunca tenham se disposto a conduzir, esta era uma rota de desenvolvimento capitalista que extrapolava em muito os apertados marcos da via colonial que sempre caracterizou nossa modernização conservadora. Nosso processo histórico de objetivação do modo capitalista de produção campeou pela conciliação entre os dominantes, como estratégia segura para a permanente exclusão popular da vida pública, garantindo a preservação de uma exploração econômica em patamares que permitem margens de acumulação portentosas, mesmo com o pedágio devido ao império. Nossos compatriotas burgueses, incapazes de construir sua própria hegemonia, encontraram a solução para encaminhar seus interesses na composição política com o latifúndio descendente do sistema de capitanias hereditárias. Conciliar impõe custos, e o preço cobrado à burguesia é a inviabilidade de completar o seu processo de transformação histórica, o que resulta em uma formação social capitalista que permanentemente renova as condições de preservação do atraso.
O histórico Comício da Central foi o sinal para acelerar um processo que vinha amadurecendo desde agosto de 1954, quando as “forças e os interesses contra o povo”, que pretendiam dar um golpe em Getúlio Vargas, provocaram o suicídio que causaria a comoção popular e liberaram a força que evitaria esse desfecho por toda a década seguinte. Foi reeditado em novembro de 1955, quando os mesmos atores, amargurados com a derrota eleitoral da UDN, ameaçaram impedir a posse de Juscelino Kubitschek. Nessa quadra histórica, cumpriu papel de relevo a resistência do setor militar liderado pelo Marechal Lott, que ao mesmo tempo em que evitou o golpe, iluminou a cisão entre facções militares, que culminaria com a derrota dos nacionalistas, progressivamente expurgados das três forças após o golpe. Os conspiradores não reconheciam a derrota, e novamente se levantaram em agosto de 1961, quando Jânio Quadros renuncia, e os renitentes liderados por Carlos Lacerda tentam escavar uma possibilidade de manobra, impedindo a posse do vice, João Goulart. Uma vez mais, foi fundamental para impedir a vitória da conspiração, o acerto entre lideranças populares e parcelas nacionalistas entre os militares. O trabalhista Leonel Brizola comandou a Rede da Legalidade, e contou com o apoio de sargentos e suboficiais, representantes castrenses do movimento popular que se adensava no período.
Menos de vinte dias transcorridos do ato na Central do Brasil, as frações burguesas, o latifúndio e seus funcionários no sistema político, forças bem modernas associadas ao imperialismo e que historicamente extraem sua vitalidade da manutenção do atraso, finalmente executaram um golpe de Estado bem-sucedido. Removeram a coalizão que pretendia executar as reformas, instituindo uma autocracia que promoveu as adaptações necessárias à nova etapa do desenvolvimento capitalista dependente projetado para a economia brasileira. Ainda hoje, os efeitos desse processo são marcas profundas no sistema político, na infraestrutura econômica e na composição social do país. Entre as principais tarefas históricas desempenhadas por esse regime baseado no arbítrio, constava a destruição da base social de sustentação do projeto nacional-reformista. O sindicalismo urbano e rural sofreu intervenções às centenas, suas principais lideranças sofreram toda forma de perseguição. Logo no primeiro dia, a sede da União Nacional dos Estudantes foi invadida e incendiada, simbolizando de forma dramática a repressão que sofreria o movimento estudantil. O Partido Comunista Brasileiro, que crescia e se tornava força hegemônica no movimento sindical, mesmo nas difíceis condições de clandestinidade, teve muitos de seus militantes presos e fisicamente aniquilados. O breve sumário aponta alguns dos exemplos trágicos de forças populares que foram perseguidas, censuradas, reprimidas, controladas e aniquiladas. A ditadura burgo-militar que se seguiu exterminou quadros valiosos da organização de trabalhadores, para garantir a passagem do projeto de modernização conservadora que promoveria a inserção subalterna no ciclo internacional do capital monopolista e financeiro.
O intervencionismo controlador, doutrina sintetizada por Góis Monteiro ainda no primeiro Vargas, permanece uma presença ameaçadora na mentalidade da caserna, mesmo que seus atuais operadores tenham se mostrado ineptos para envolver as frações burguesas em seu projeto de poder. No decênio entre o suicídio de Getúlio e a deposição de Jango, os futuros próceres da ditadura foram perspicazes o suficiente para compor a coalizão golpista na condição de executores. A participação de Golbery do Couto e Silva no IPES, junto a representantes das frações de ponta da burguesia, do latifúndio, de lideranças da UDN e de seus estafetas nos aparelhos ideológicos, é um emblema da composição do condomínio golpista por ideólogos da Doutrina de Segurança Nacional, dos desertores da conciliação de classes e de seus agitadores na alta cultura e nos meios de comunicação de massa. A conjuração vitoriosa em 1964 contava, portanto, com quadros de relevo nos setores envolvidos. Seu sucedâneo em 2022 foi composto por outra cepa de golpistas, animados muito mais pelo deslumbramento com a leitura distorcida da história do que por uma acurada análise da conjuntura e da viabilidade de sua intervenção.
A chusma que pretendia tomar o poder de assalto após a derrota eleitoral tinha por epítome um capitão maliciosamente conduzido à reserva, após três prisões por indisciplina. Sua interrompida carreira militar, muito mal avaliada por seus superiores, serviria de inspiração para a não tão breve atuação legislativa, igualmente tumultuosa e inexpressiva. Envolveu também parte da alta oficialidade que alcançou destaque no comando da repressão às classes baixas, no Brasil e no Haiti, marcada por desmandos, abusos e suspeitas de envolvimento com negociatas. Teve como referência intelectual um astrólogo cuja pretensa filosofia consistia na tradução do virulento anticomunismo estadunidense, embalado em ofensas e palavrões; seus disseminadores foram blogueiros e youtubers, cuja indigência intelectual não permite operação mais qualificada do que a tentativa mambembe de reprodução dos xingamentos proferidos pelo professor, e a repetição pueril de preconceitos contra minorias. Seus correspondentes na estrutura de classes são, fundamentalmente, elementos da média burguesia comercial sem qualquer expressão de liderança no conjunto do setor, tendo conseguido alguma evidência com a exposição de suas posturas tacanhas nas redes sociais; uma lumpenburguesia relacionada ao extrativismo ilegal e contrabando; e como representantes de verdadeiro peso econômico, setores da agroexportação de commodities alijados de suas entidades representativas.
A frustração de três ensaios golpistas, entre as eleições de 2022 e o 8 de janeiro de 2023, não significa a impossibilidade de seu sucesso – nossa história republicana recomenda cautela. Nada garante que os beneficiários do circuito financeiro concluam, em algum momento, que a conciliação impõe custos em excesso, e que a remoção de seus executores se apresente, uma vez mais, como o movimento tático mais ajustado à recomposição de suas margens de acumulação. Podem, inclusive, recorrer a essa mesma Armata Brancaleone para completar a tarefa. A consagrada análise do 18 de Brumário demonstrou como o apoio burguês serve de contrapeso à estupidez dos operadores do golpe e da ditadura. Mais importante que as capacidades intelectuais e político-administrativas, é o suporte conferido pela adesão das frações dominantes à camarilha que controla o Estado, como a história do desmonte da ditadura burgo-militar igualmente sinaliza.
É pertinente sintetizar o exposto acima: a resistência às sucessivas tentativas golpistas, entre o suplício autoimposto de Getúlio e a deposição de Jango, resultou, em cada momento, da composição de forças entre um movimento popular vigoroso e que se tornava cada vez mais consistente e autônomo, e um setor militar de orientação nacionalista, com uma ala na base da tropa identificada com as demandas da classe trabalhadora. Não há no horizonte qualquer indício de formação de uma coalizão com esses traços. Desde os primeiros atos de truculência da ditadura de 1º de abril, os militares identificados com a luta nacional-reformista foram incluídos entre os inimigos tratados com maior ferocidade. Foram expulsos, presos, torturados, principalmente os animadores do movimento de sargentos e suboficiais, mas também os últimos comandantes publicamente comprometidos com um projeto nacional independente. Entre as intervenções mais bem sucedidas da ditadura, está a purificação das fileiras das Forças Armadas com o expurgo de todas as bases de conformação de um “dispositivo militar” comprometido com seu povo. A propaganda ideológica com maior penetração e capilaridade entre a tropa, atualmente, é o neofascismo bolsonarista. Por seu turno, o movimento popular vem de décadas de ação defensiva, diante da reestruturação produtiva, o desemprego, a precarização, a perda de direitos e a consequente subjetividade ultra individualista que emerge desse cenário. A experiência concreta de viver nas duras condições impostas pelo neoliberalismo impõe obstáculos materiais ao desenvolvimento da solidariedade de classe que impulsiona a organização em sindicatos, movimentos e partidos, fragilizando os operadores políticos que podem cumprir o papel de organizar a classe. Como consequência, é incontornável a constatação de que, se o movimento de massa teve um papel de relevo na derrota do neofascismo, o resultado foi possível graças a uma momentânea crise de dominação no bloco burguês, o que deve servir de alerta para os riscos envolvidos na sua eventual recomposição. Não é abusivo insistir, não há no cenário presente qualquer indício de que os representantes da extrema direita estejam efetivamente derrotados, pelo contrário. Os recentes resultados eleitorais na Argentina e Portugal, e uma possível vitória Republicana nos EUA, conduzem a conclusões opostas.
Esquecer o golpe e a ditadura como “coisas do passado”, interditar às instituições de governo promoverem eventos que recuperem a catástrofe que o período significou, é uma ofensa aos que resistiram e uma traição à classe trabalhadora. É assumir, voluntariamente, o risco de favorecer a reescrita da história, como a produção ideológica neofascista vem fazendo nos últimos anos, exaltando a “obra” da ditadura. Nas condições de agitação e propaganda que os aplicativos de mensagem, redes sociais e demais recursos de internet proporcionam, não é tarefa fácil combater o revisionismo histórico e a profusão de fake news. A extrema direita conta com recursos em abundância, para ter à disposição os melhores profissionais e ferramentas que as modernas tecnologias podem oferecer, e os lutadores do povo não podem ser abandonados por representantes que se dedicaram para eleger. É preciso estar atento e forte. A memória do que foi a ditadura serve como impulso para impedir que a brutalidade se repita e como apoio à adequada punição aos que tentaram reeditá-la.
Leonardo Silva Andrada é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora. É militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB)